Funcionário do governo libanês, familiarizado com os desenvolvimentos regionais, contou que aconteceu uma discussão – que, para ele, ficou entre briga e reprimenda –entre os ministros do Exterior da Arábia Saudita e do Qatar, numa das reuniões que estão acontecendo paralelas à uma conferência internacional para arregimentar apoio armado a grupos da oposição síria.
A discussão focou-se nas causas do fracasso na Síria; teve de tudo: de procurar desculpas a recusar qualquer culpa pelo que aconteceu. O funcionário libanês disse que o ministro saudita vinha adotando tom acusatório, até que ouviu pesada resposta do ministro do Qatar.
Em resumo, o ministro qatari disse que:
Nós fizemos tudo na Síria durante dois anos e conseguimos que todo o planeta abraçasse a causa da oposição síria. Você [príncipe Bandar] assumiu, e bastaram dois meses para que todo o planeta se transferisse para o lado de Bashar al-Assad.
Esse parágrafo pode resumir todos os desenvolvimentos na Síria e no Oriente Médio nas últimas semanas ou, mais especificamente, desde que Moscou e Washington firmaram um acordo para destruir as armas químicas da Síria, e começaram a surgir sinais de reaproximação entre os EUA e o Irã.
Mas o curso de todos esses eventos começou, de fato, há uma década, quando os EUA decidiram derrubar Saddam Hussein. Os sauditas apoiaram, mas a Síria opôs-se.
Pouco depois da queda de Bagdá, em abril de 2003, começou a tornar-se cada vez mais claro que os sauditas, aliados do vencedor da guerra do Iraque, estavam perdendo no campo político o que tinham suposto, erradamente, que teriam ganho graças à força militar de outros. Simultaneamente, os sírios, que se mantiveram aliados da parte derrotada, começaram a colher benefícios políticos, paralelos aos ganhos geoestratégicos de seus aliados iranianos.
As primeiras semanas do ataque contra a síria podem ser identificadas nesse paradoxo observado naquele momento, sobretudo quando a coalizão dos derrotados começou a aumentar, incluindo George W. Bush, Jacques Chirac e a Casa de Saud e seus aliados no Líbano, os quais tinham muito a ganhar e muito a perder, tanto em Damasco quanto em Beirute.
Assim aconteceu a decisão de tirar do Líbano as forças de Assad – para destruir seus ganhos em Bagdá. Mais uma vez, os sauditas foram convencidos pelo comportamento de seus “delegados” norte-americanos. Mas a coisa durou pouco. Apenas alguns meses depois que o exército sírio saiu do Líbano, dia 26/4/2005, começou a ficar visível que os norte-americanos estavam também se recolhendo aos limites demarcados pelo próprio pragmatismo.
Os sauditas exigiam que os EUA apontassem a pistola para a cabeça da Síria, mas, em vez disso, Bush preferiu seguir uma abordagem de “porrete-e-cenoura”. Os sauditas queriam a “des-Baath-ificação” na Síria, mas os norte-americanos queriam mudar o comportamento do regime, não mudar o próprio regime.
A violenta resposta dos sauditas a Washington não demorou a aparecer. Como aconteceu outra vez recentemente, dia 20/9/2005 o ministro de Relações Exteriores saudita, Saud al-Faisal, criticou furiosamente o governo dos EUA, em discurso no Conselho de Relações Exteriores em New York City.
Faisal disse então que a política dos EUA no Iraque estava aprofundando divisões sectárias, preparando a balcanização do país, o que poderia levar o Iraque a cair nas mãos do Irã.
A briga entre Riad e Washington por causa do Iraque continuou durante anos, até que surgiu uma ocasião para que os dois países novamente convergissem. O primeiro ponto de convergência entre ambos acontecera no momento de expulsar do Líbano as forças sírias de Assad; o segundo foi o acordo para restaurar o equilíbrio no Iraque, apoiando Iyad Allawi nas eleições de 2010.
Quando Assad aceitou o projeto Allawi em Bagdá, a coordenação Síria-sauditas começou em Beirute. Todas as questões que envolviam os sauditas no Líbano foram postas na gaveta, inclusive o cargo de primeiro-ministro para Saad al-Hariri, o Tribunal Especial para o Líbano, as armas do Hezbollah e a presença síria – como se dispôs num famoso “documento de concessões” do movimento “14 de Março”, que Walid Jumblatt divulgou dia 21/1/2011, poucas semanas depois de o projeto Allawi estatelar-se contra o muro, em Bagdá.
O timing não foi simples coincidência. De fato, nas últimas semanas de 2010, o eixo Síria-Irã conseguiu, mais uma vez, abortar o sonho saudita. Allawi venceu as eleições no Iraque, mas foi Nouri al-Maliki quem, afinal, constituiu o governo. O eixo Síria-sauditas teve morte súbita em Beirute. E pouco depois começou o “levante” em Damasco.
Esses são os elementos de uma equação bem ampla que afinal se pôde ver: em 2003, os sauditas perderam o Iraque; os EUA então decidiram garantir-lhes compensação no Líbano e na Síria, pelas perdas sauditas no Iraque. Em 2005, os EUA recuaram em Damasco. Pela terceira vez, sauditas e EUA perdiam: no Líbano, na Síria e no Iraque. Então decidiram virar a mesa toda, de vez, na cadeia central, e derrubar o governo de Assad em Damasco.
Os EUA são lacaios do Reino Saudita, ou é exatamente o contrário?
Mas os cálculos no Oriente são seguidamente muito complexos e, talvez, difíceis demais para que os compreendam um cowboy distante ou um beduíno próximo. Os EUA então voltaram à região, com um projeto inspirado, agora, na Primavera Árabe.
O projeto, de fato, era ideia bem simples, com roteiro assinado por Recep Tayyip Erdogan da Turquia e dirigido pelos arquitetos dos “levantes coloridos”: entregamos o poder em toda a Região à Fraternidade Muçulmana, e os Irmãos, em troca, atendem três demandas – garantem a segurança de Israel, os interesses dos EUA e a estabilidade dos governos, sem que Washington tenha de pagar a conta.
O trem até que andou bem por esses trilhos nos primeiros tempos, na Tunísia, no Egito e na Líbia, mas a hostilidade dos sauditas contra a Fraternidade Muçulmana os levava a temer que os Irmãos, mais dia menos dia, tomassem o poder nas “cidades de sal” no Golfo.
Os sauditas, contudo, mantiveram-se em silêncio por quase um ano e meio. Opor-se a projeto bem-sucedido é sempre tática não recomendável, e eles se mantiveram recolhidos, até que, afinal, amadureceram as condições para o fracasso do projeto dos EUA.
Dia 11/9/2012, a promessa de proteger os interesses de Washington entrou em colapso em Benghazi, com o assassinato do embaixador dos EUA. Em novembro, a demanda de que a segurança de Israel seria preservada também fracassou, quando irromperam confrontos em Gaza, e o Hamás não conseguiu fazer valer o compromisso firmado entre a Fraternidade Muçulmana e Israel. E, no início de 2013, já era absolutamente evidente que a promessa de estabilidade nos países da Primavera Árabe estava reduzida a simples piada.
Tudo estava maduro para que os sauditas retomassem a iniciativa. Tinham tudo preparado para um contra-ataque, pelo menos desde meados de julho de 2012, quando o príncipe Bandar foi nomeado espião-chefe do reino.
Por muitos meses, os sauditas haviam feito todo tipo de pressão contra os EUA e os países árabes, persuadindo Washington pela quarta, ou centésima-milionésima vez, a fazer o jogo: Mohamed Mursi fora derrubado. O Qatar fora pacificado. A Turquia fora marginalizada. E Riad assumiu para ela todos os dossiês.
Até aí, parecia que os sauditas teriam triunfado completamente, e só eles, pela primeira vez em décadas. Mas naquele momento, surgiu o acordo das armas químicas, construído por Moscou. O sorriso nuclear de Hassan Rouhani surgiu em New York. E tudo veio abaixo.
É esperável e normal que Riad perca completamente a compostura, a sobriedade e até a razão. Todas as arenas converteram-se em caixas de mensagens a transmitir as objeções e rejeições dos sauditas, de Maaloula a Trípoli; e do Tribunal Especial para o Líbano ao Conselho de Segurança da ONU, com Bandar a esbravejar e berrar, e todos confusos, sem entender o relacionamento com os sauditas: os EUA são lacaios do Reino Saudita, ou é exatamente o contrário?
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segunda-feira, 28 de outubro de 2013
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O que o ministro do Qatar disse ao ministro saudita?
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