Derrota militar dos EUA na Síria: gatilho para o colapso financeiro, por Dmitry Orlov - Noticia Final

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quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Derrota militar dos EUA na Síria: gatilho para o colapso financeiro, por Dmitry Orlov

Dmitry Orlov,* Club Orlov

Traduzido pelo coletivo da vila vudu

Nos idos de 2007, escrevi Reinventing Collapse, onde comparei o colapso da URSS e o iminente colapso dos EUA. Há dez anos passados escrevi o seguinte:
"Os EUA que continuem imaginando que levar ao colapso uma moderna superpotência militar-industrial seria como fazer sopa: pique alguns ingredientes, aqueça e mexa. Os ingredientes que gosto de usar na minha sopa de colapso de superpotência são: déficit severo e crônico na produção de petróleo cru (esse elixir viciante mágico das economias industriais); severo e sempre crescente déficit na balança de pagamentos; orçamento militar descontrolado e crescente dívida externa. Obtêm-se o aquecimento e a mexida, muito eficientes, com alguma humilhante derrota militar e medo disseminado de catástrofe que se aproxime" (p. 2).


Uma década depois, todos esses ingredientes estão reunidos, com alguns pequenos acertos. A falta de petróleo não é, no caso dos EUA, falta de petróleo físico, mas falta de dinheiro: no cenário de declínio terminal do petróleo convencional nos EUA, o único aumento significativo na oferta vem do fracking, mas foi financeiramente ruinoso. Ninguém jamais fez dinheiro vendo petróleo extraído por fracking: o processo é caro demais.

Ao mesmo tempo, o déficit na balança de pagamento só faz alcançar recordes e mais recordes, o gasto da Defesa só faz aumentar, e os níveis da dívida não só já são estratosféricos como, além disso, continuam a aumentar. O medo da catástrofe advém dos furacões que acabam de pôr debaixo d'água partes significativas do Texas e da Flórida, dos incêndios de proporções jamais vistas no ocidente, dos aterradores rugidos do supervulcão de Yellowstone e da compreensão de que toda uma densa espuma de bolhas financeiras pode começar a espoucar a qualquer momento. Só faltava um ingrediente nos EUA: uma humilhante derrota militar.

Derrotas militares vêm em vários tamanhos e formatos, e o caso em que o inimigo massacra todos os seus soldados é apenas um caso dentre muitos. Igualmente palpável é o caso em que o derrotado é incapaz de se impor sobre oponente mais fraco e menor. Infligir danos acidentalmente às próprias forças também é altamente humilhante. E o golpe de misericórdia no caso de império militar no ocaso é absolutamente não conseguir dar combate, de jeito nenhum, ao oponente.

Hoje já temos amostras nos EUA de todos esses tipos de derrotas. Temos barcos rápidos da Marinha dos EUA equipados com o que há de mais moderno em termos de radares e equipamentos de navegação, mas barcos que inexplicavelmente colidem com enormes e lentos cargueiros, colisão que resulta em morte de marinheiros. Temos o exemplo da Síria, onde vários anos de esforço concertado para desmembrar o país e derrubar o presidente eleito resultou em um desastre depois do outro. 

E agora temos o exemplo da República Popular Democrática da Coreia ("Coreia do Norte"), que testa mísseis balísticos e armas nucleares para grande consternação de todos, enquanto os EUA fazem manobras militares sem qualquer sentido – sem sentido, porque os EUA absolutamente não têm qualquer carta militar para jogar que não resulte na completa aniquilação do mesmo aliado que os EUA juraram proteger.

O impasse dos EUA na Coreia do Norte provavelmente se arrastará por algum tempo, mas a derrota na Síria já está bem perto de se completar. Assim sendo, examinemos o caso sírio em detalhe, porque oferece visão muito interessante do que faz dos EUA, nesse ponto, tão menos que qualquer tipo de superpotência militar. (Os créditos dessa pesquisa são especialmente de Yevgeny Krutikov, e de outros, numerosos demais para listar aqui.) 

A derrota dos EUA na Síria não é resultado de alguma operação considerada em si, mas de uma completa sequência de operações, e cada uma delas só pode ser descrita como fracasso épico. Toda a campanha dos EUA na Síria também pode ser descrita como incansável busca de fracasso após fracasso. E ilustra vários dos traços que fazem dos EUA uma máquina militar pior que apenas imprestável. Era uma vez quando o objetivo do gasto militar dos EUA era justificar o gasto militar dos EUA; hoje já nem isso consegue fazer. Elementos chaves desse fracasso são:


– A completa inabilidade para responsabilizar os responsáveis pelos fracassos, sejam políticos ou oficiais militares.

– A completa inabilidade para aprender dos próprios erros e ajustar estratégias, fazendo e voltando a fazer coisas que já se sabe, comprovadamente, que não funcionam.

– A completa inabilidade para aceitar a verdade da situação, em vez de sempre preferir viver num reino da fantasia, pura ficção, povoado por terroristas moderados, líderes tribais amigos dos EUA, arco-íris e unicórnios.

– A completa inabilidade para se opor, enfrentar e resistir a todos os tipos de corrupção, inclusive a esquemas fraudulentos que incluem o roubo descarado de propriedade pública.


Todo o envolvimento militar dos EUA começou no verão de 2014. Naquele momento, havia uma construção [chamado "um composto" (ing. a compound)], armada, próximo de Raqqa, em torno da qual enxameavam jihadistas barbudos que talvez fossem, talvez não fossem, associados ao Estado Islâmico no Iraque e Síria [ing. ISIS]. Tinham lá muitos reféns, dentre os quais havia soldados sírios e cidadãos norte-americanos e britânicos que por um motivo ou outro acabaram na Síria. Depois de demorada análise, a CIA decidiu que a tal construção tinha de ser atacada e ocupada, e os reféns, libertados.

No início de junho, umas poucas dúzias de soldados das forças especiais foram lançados nas vizinhanças do tal acampamento. Depois de uma batalha de três horas (só até aí já se veem sinais de fracasso: operações para resgatar reféns só fazem sentido se durarem minutos, não horas), os soldados norte-americanos mataram cinco dos terroristas e assumiram o controle de um prédio perfeitamente vazio, solitário no meio do deserto. Não havia reféns, nem inimigos de alto escalão –, havia absolutamente nada que prestasse. Depois se soube que os reféns haviam sido retirados de lá um dia antes do início da operação, o que fez surgir todos os tipos de perguntas dentro CIA sobre possíveis vazamentos.

Poucos dias depois, um "Jihadi John" e seu grupo de três britânicos árabes que se autodenominavam "os Beatles", sob pseudônimos de John, Paul e Ringo degolaram algumas pessoas diante das câmeras. Dentre eles, o fotógrafo James Foley, o jornalista Steven Sotloff, o trabalhador de missão humanitária David Heins, o motorista de táxi, britânico, Alan Henning (que trabalhava para a mesma missão humanitária que Heins) e, por último, mas não menos importante, Peter Kassig, ex-membro das forças armadas dos EUA, mas naquele momento também trabalhando para algumas missões humanitárias com bases em Beirute e na Turquia, mas que a todo momento aparecia na Síria – sempre ilegalmente e para finalidades ignoradas.

Foi a morte de Kassig que, especificadamente, gerou reação estranhamente muito forte de Barak Obama, que declarou que Kassig "foi roubado dos EUA num ato de puro mal por um grupo terrorista que o mundo corretamente associa à desumanidade." O surto discursivo foi amplamente interpretado como demonstração de que Kassig trabalhava ou para a CIA ou para a inteligência militar dos EUA. E chama a atenção que fosse o único que, no cativeiro, convertera-se ao Islã e adotara nome islâmico.

Adiante começaram a surgir outros fatos estranhos. Ficou-se sabendo, especialmente, que "Jihadi John" havia negociado com o governo dos EUA e com a família de James Foley, tendo exigido ou 100 milhões ou, sabe-se lá por que estranhíssima razão, especificamente 132 milhões de dólares para libertar Foley. O último comunicado dele chegara uma semana antes da malsucedida operação das forças especiais dos EUA, mas os norte-americanos recusaram-se a pagar pelo resgate. O representante oficial do Pentágono, Almirante da Reserva James Kirby culpou a CIA. Chama a atenção, isso sim, que os responsáveis por esse espantoso desastre não tenham metido uma bala na própria cabeça, como teriam de ter feito por questão de honra e, em vez disso, tenham tocado adiante suas ilustres carreiras.

Para que não restassem dúvidas, houve logo depois outros fracassos ainda mais épicos. Os EUA começaram os voos de vigilância sobre território sírio, mapeando cuidadosamente o deserto, primeiro se servindo de drones, depois de aviões regulares, sempre sem ter nenhuma noção do que estivessem vendo e mapeando. Mas tudo indica que vissem imagens de coisas que bem pareciam ser excelentes alvos, porque no outono daquele ano Obama anunciou ao mundo sua intenção de se pôr a bombardear o ISIS na Síria.

Anunciou também o início de um programa para "treinar e equipar" um Exército Sírio Livre, com o objetivo de derrubar Bashar Assad. A CIA selecionou grupos promissores, deu-lhes armas e assistiu ao processo de os selecionados se integrarem ou ao ISIS ou à Frente al-Nusra, em massa. Simultaneamente, oficiais e funcionários públicos norte-americanos continuavam a falar desses empenhados e interessados terroristas como "oposição moderada".

Adiante, o mito criado e cultivado pelos EUA sob o codinome Exército Sírio Livre se quebraria em mil cacos, para grande incômodo de todos. Mas, outra vez, o incômodo não foi suficiente para que os responsáveis fizessem o que a honra manda fazer e metessem uma bala na cabeça, cada um na própria cabeça.

Verificado o fiasco número dois, vamos ao fiasco número três. Depois que o Exército Sírio Livre de ficção dissolveu-se na névoa da manhã, a CIA decidiu apostar tudo nos curdos, e nasceu a (ing.) Operation Timber Sycamore.** Foi declarada top secret e diretamente autorizada por Obama, com a assinatura de Hillary Clinton em praticamente todos os documentos. Em vários sentidos replicava as lições aprendidas de fracasso norte-americano prévio, conhecido como "Irã-Contras" ou Caso Oliver North.

Foi usado dinheiro saudita para comprar armas obsoletas, da era soviética, primeiro nos Bálcãs, para embarcá-las para Turquia e Jordânia, sempre usando documentos forjados para evitar a aparência de ilegalidade. Dali, as armas deviam ser infiltradas para dentro da Síria e terminar nas mãos dos curdos, que naquele momento defendiam a cidade de Kobani que estava sendo atacada pelo ISIS. Não surpreendentemente, nada disso saiu conforme os planos. O mercado clandestino de armas no Oriente Médio começou a sufocar sob oferta gigante, que incluía armamento pesado. Funcionários da inteligência dos EUA começaram a comprar Ferraris, recusando-se a receber propinas em papel moeda –, só barras de ouro. Pequenos comerciantes de armas enriqueceram repentinamente e puseram-se a combater uns contra os outros, por maiores fatias do mercado. Num único tiroteio dentro de uma base militar jordaniana morreram dois oficiais jordanianos e três fornecedores de armas, dois norte-americanos e um sul-africano. (E que negócio ilegal de armas jamais existirá sem um sul-africano?) 

Quando a escala do fiasco tornou-se óbvia, os jordanianos envolvidos foram demitidos, mas nada foi confiscado. Hillary Clinton andava lívida. Foi exposta como pessoa realmente do mal, quando pessoa esperta postou num website do governo dos EUA um contrato para entrega de toneladas de armas saídas da Bulgária para os portos de Tasucu (Turquia) e Aqaba (Jordânia), e Wikileaks começou a escavar à procura dos detalhes.

Descobriu-se que o governo Obama queimara meio bilhão de dólares só no Exército Sírio Livre e na Operação Timber Sycamore. Em vez de se culparem eles/elas mesmos(as), os/as envolvidos(as) (a maioria dos/das quais está ainda nos mesmos postos, nenhum deles até hoje sem uma muito merecida bala de honra na cabeça), puseram-se, em tempo integral, a culpar a Rússia por os ter impedido de "acabar o serviço".

Dinheiro do Pentágono, para 'rebeldes' sírios (Sputnik News)

Eis aí um belo gráfico, cortesia de Wikileaks, que detalha a quantidade espantosa de fundos que os EUA desperdiçaram completamente no desmando alucinado que cometeram na Síria.

OK. Conferido o fiasco número três – avante com o fiasco número quatro. Em vez de simplesmente investigar o negócio das toneladas de armas soviéticas obsoletas compradas na Europa Oriental com dinheiro 'lavado' e documentação forjada e que já estavam na Síria, os EUA decidiram que assumiriam de vez papel ativo "em solo".  Em outubro de 2015, os primeiros 15 instrutores norte-americanos foram entregues por helicóptero no Curdistão Sírio. Desse momento em diante, os norte-americanos dedicaram-se de todo o coração a cultivar as Forças Democráticas Sírias (os dois maiores grupos armados curdos) plus, em respeito à diversidade étnica, uma ou duas tribos árabes locais.

Em maio de 2015 o general Joseph L. Votel, comandante das forças dos EUA no Oriente Médio, foi levado por ar, em (relativo) segredo, para a Síria e reuniu-se com comandantes curdos. Bem que tentou convencê-los a aceitar conselheiros norte-americanos no Curdistão, com a missão de preparar os locais para a ação. Nem os comandantes curdos nem os líderes tribais interessaram-se pela proposta. Mas exigiram que os norte-americanos lhes fornecessem armamento pesado. Por sorte, Votel não tinha autoridade para obedecer. Assim, quando os curdos começaram a sitiar a fortaleza do ISIS em Raqqa só os norte-americanos tinham artilharia e morteiros, com os Marines encarregados da segurança. Até hoje permanece muito questionável a efetividade dessas ações.

Como aliados, os curdos mostraram-se teimosos e pouco cooperativos. O principal objetivo deles é arrancar o máximo de território que consigam e, depois, usar o território na negociação com o governo em Damasco, para estabelecer a maior área possível de autonomia curda. De modo geral não se mostram dispostos a arriscar-se para fora do que determinem os planos deles. Não deram sinal de especial interesse em combater sequer por Manjib, que tem maioria étnica curda, e quanto ao interesse para tomar Raqqa era totalmente inexistente.

Mesmo assim, os norte-americanos acharam razoável pensar que, dado que o ISIS está completamente morto (ao ritmo atual, é questão de poucos meses) esses mesmos curdos os ajudarão a estabelecer e a manter controle sobre toda a margem oriental do Eufrates até a fronteira do Iraque. Não apenas os curdos absolutamente não dão sinal de motivação para fazer tal coisa, como também os sírios já estão cuidando de reforçar uma cabeça de praia e montar uma ponte flutuante [ing. pontoon bridge] em Ayash ao norte da recentemente liberada Deir ez-Zor. Nos últimos poucos dias, moveram armamento pesado pelo Eufrates para a margem oriental, expulsaram dos arredores os últimos remanescentes do ISIS e preparam-se para avançar rumo à fronteira do Iraque. Não fazem segredo do projeto de restabelecer pleno controle sobre todo o território sírio.

Tudo sugere que o fiasco número quatro já está semiassado no forno. Mas, como sempre, nada disso impede os norte-americanos de injetar mais e mais conselheiros e armas, os quais aconselharão pessoas que se recusarão a seguir conselhos deles e armarão pessoas que rapidamente aceitem lutar seja por eles seja contra eles. Também estão injetando outros recursos para construir bases militares em território sírio, que absolutamente não controlarão nem por um minuto. Há o campo de pouso em Rmeilan, uma base maior em Kobani e ainda mais um campo de pouso em Tal Beidir. O Curdistão sírio está agora brincando de hospedar umas poucas centenas de norte-americanos armados com armas leves, Hummers e Strykers que jamais param de reclamar das condições "não padrão" de sobrevivência e da falta de inteligência que preste sobre o que se passa em torno deles.

Não satisfeitos com deixar que o fiasco número quatro cumpra seu destino, os norte-americanos lançaram-se preventivamente no fracasso número cinco: construir uma base militar no sul da Síria. Estranhamente, mesmo depois de tudo que aconteceu, acharam que seria de bom alvitre soprar algum novo alento no Exército Sírio Livre, e também dar algum uso para suas bases na Jordânia que foram muito desmoralizadas pelo desempenho na Operação Timber Sycamore. Com essa finalidade, conversaram com uns grupos armados obscuros que entraram na Síria saídos da Jordânia e, com ajuda deles, estabeleceram uma base em Al Tanf, suficientemente armada para manter o território por muito tempo e, possivelmente, para servir como posição avançada para uma invasão pelo sul.

Em vez disso tudo, o que aconteceu foi que sírios e iranianos rapidamente cercaram Al Tanf, assumiram o controle da fronteira do Iraque (com plena cooperação com os iraquianos), o que torna completamente irrelevante a base Al Tanf. Reconhecendo essa evidência, os norte-americanos já começaram a desmontar e a evacuar a base, enquanto os grupos armados obscuros com os quais haviam conversado já desistiram e até se renderam aos sírios, ou fugiram e uniram-se ao ISIS. Agora, o fiasco número cinco está completo.

O fiasco número quatro ainda está em andamento, mas o resultado final já é claro. Em breve já não haverá ISIS algum remanescente na Síria contra o qual os EUA finjam que lutam. A posição dos EUA, no Oriente Médio e em todo o mundo é mais fraca a cada dia. Além da Síria, o país que mais tem a extrair dessa situação é a Rússia. Considerem o seguinte:


– Arábia Saudita foi o maior financiador da guerra na Síria, mas até os sauditas cansaram-se da precipitação ensandecida dos EUA e tentam iniciar negociações com os russos.

– Quando os israelenses viram que Síria estava conclusivamente "perdida" para eles, Netanyahu meteu-se imediatamente num avião para ... Moscou, claro, para suplicar que lhe dessem algumas migalhas da mesa do patrão.

– Turquia decidiu que cooperar com a OTAN deixou de ser parte da estratégia e decidiu comprar os sistemas russos de defesa aérea S-300, os quais, diferentes das armas fornecidas por EUA e aprovadas pela OTAN, não são limitados por sistema inflexível de identificação que só vê ou amigos ou inimigos e não se opõem a por abaixo alvos marcados com "OTAN".

– Até a Alemanha – o mais obediente dos poodles dos EUA desde o fim da 2ª Guerra Mundial – acaba de iniciar uma investigação de embarques de armas para a Síria, para grupos internacionalmente considerados terroristas, e armas que passaram pela base militar Rammstein e são ilegais perante a lei alemã.


Com o ISIS já praticamente destruído pelos sírios, com apoio aéreo dos russos, os norte-americanos, seguindo a tradição, estão culpando a Rússia pelo vexame, se não pela completa derrota estratégica. Se esse joguinho idiota de 'a culpa é sua' não for sinal garantido de fraqueza extrema, não sei que outro melhor sinal haveria. O fim do jogo pode não estar ainda perfeitamente claro, mas já estão claro no seguinte ponto: para que uma superpotência deixe de ser superpotência basta qualquer derrota militar, ainda que relativamente pequena, desde que seja derrota suficientemente significativa. O desempenho dos norte-americanos na Síria é de tal ordem que os EUA serão afastados das negociações internacionais sobre o futuro da Síria – porque as posições dos EUA são hoje tão fracas que podem ser simplesmente ignoradas. E no que tenha a ver com derrotas militares significativas, derrota autoinfligida é, de longe, a mais eficaz.

A Síria não é o único lugar onde o poder militar dos EUA vai-se mostrando nem um pouco poderoso. Há também o Afeganistão, onde os Talibã estão ocupados reconquistando o norte do país – a parte que foi mais facilmente "libertada" quando os norte-americanos invadiram o país pela primeira vez, em 2001. E há também a República Popular Democrática da Coreia ("Coreia do Norte"), cuja liderança conseguiu aplicar bem-sucedido xeque-mate nos EUA, deixando-os com exatamente zero opções militares viáveis – situação que os norte-americanos são constitucionalmente incapazes de aceitar. Então, põem-se a xingar os norte-coreanos, os quais os xingam de volta, o que leva o resto do planeta a um gargalhar nervoso.

Para concluir, permitam-me deixar o limbo e arriscar um palpite sobre o lugar para onde tudo isso está andando. Acho que agora que todas as evidências dizem que o status de superpotência dos EUA não passa de reminiscência nostálgica da Guerra Fria, o que vem a seguir é... o castigo. O que fazem mamãe e papai quando o filho mimado detonou seus cartões de crédito espalhando dinheiro sobre balcões de bar, brinquedinhos estranhos e putas? Ora essa! Tiram do rapaz os cartões de crédito, claro!

No caso dos EUA, o castigo atende pelo nome de desdolarização. Os que tentaram coisa semelhante antes – gente como Saddam Hussein e Muammar Qaddafi – foram rapidamente assassinados e os respectivos países, destruídos. Mas agora países do padrão de China e Rússia puxam o movimento de desdolarização – países que os EUA absolutamente não podem nem sonhar com destruir, especialmente se agem concertadamente –, e a resposta dos norte-americanos até aqui não passa de ameaças vazias, sanções sem dentes e sem pegada e muito resmungar irado e incoerente.

Para descrever a situação nos termos mais simples possíveis: a função dos militares dos EUA é intimidar outros países para que deixem os EUA comprem o que bem entendam, imprimindo quantos dólares sejam necessários, e essencialmente assaltando o resto do mundo à mão armada. Tão logo se esvaia a capacidade dos EUA para intimidar o mundo e reduzi-lo a total submissão, também se esvairá a capacidade dos norte-americanos para esfolar o planeta. E tão logo essa capacidade se esvaia, só restará do "país mais rico do mundo" uma pilha de papel imprestável, sem valor.

Não se sabe quando precisamente chegará esse momento, mas nem é preciso saber exatamente quando chegará, desde que possamos nos planejar para a chegada.

Recomendo vivamente que se planejem – se ainda não se planejaram.



* Dimitri Orlov é ensaísta, mantém um blog muito conhecido e escreve em Patreon,onde todos podem contribuir para ajudar a manter seus vários projetos. Atualmente, DO trabalha num projeto de produzir casas-barcos por preço acessível, onde as pessoas possam morar. Ele próprio vive numa casa-barco.
** Literalmente "Operação Madeira de Figueira Brava". O título pode ser uma referência macabra a um sicômoro, "figueira brava". O sicômoro mais conhecido no mundo é árvore de mais de 2.000 anos, ainda existente na entrada de Jericó, na Cisjordânia, território da Palestina, chamada "o sicômoro de Zaqueu". Diz a Bíblia que Zaqueu escalou essa árvore para ver Jesus que chegava a Jericó (Lucas 19:1-10) [NTs].

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