Passou exatamente um ano desde aquele dia em que os distúrbios na praça da Independência (Maidan Nezalezhnosti, em ucraniano), em Kiev, acabaram por se transformar em sangrentas batalhas de rua, dando origem, ato seguido, a um golpe de Estado na Ucrânia.
Os efetivos da Berkut, a polícia antimotim ucraniana, foram desde os primeiros dias participantes ativos daqueles eventos, e são precisamente eles a quem os novos governantes ucranianos chamam agora de traidores de seu próprio povo, culpando-os de numerosas vítimas.
Aleksandr Popov e Sergei Khairulsky são dois ex-agentes da Berkut. Eles se mudaram para a Rússia e ingressaram no serviço do centro moscovita de Polícia especial, sob ordens do Ministério do Interior da Rússia, mas não mudaram seus pontos de vista sobre os acontecimentos de há um ano. Eles seguem acreditando que na altura agiram de forma absolutamente correta nas ruas de Kiev.
“Não temos nada de que nos envergonhar, nós não traímos a Ucrânia. Cumprimos com dignidade e até o fim o nosso dever. É a Ucrânia que nos traiu”, dizem eles.
Sputnik: Qual foi o motivo de sua mudança para a Rússia?
Aleksandr: Agora nos consideram criminosos na Ucrânia. Embora, na realidade, tivéssemos desempenhado estritamente as nossas funções, formando o aparelho de segurança para proteger a ordem pública, e nunca, absolutamente nunca excedemos as medidas necessárias para tal. Mas a Ucrânia retribuiu isso com cinco processos criminais abertos contra nós.
Sergei: Já houve lá casos em que membros da Berkut foram presos, condenados a passar 23 ou 24 anos atrás das grades. É o princípio da absorção de penas menores pela maior, que está em vigor na Ucrânia. Mas no caso dos nossos colegas eles recorreram mesmo às penas maiores. Não se pode condenar aos mesmos anos de prisão um homicida e nossos colegas, quando estes só protegeram a lei e a ordem em Kiev.
Sputnik: A sua opinião sobre esses eventos não mudou durante o ano passado?
Aleksandr: Não. Pelo contrário, agora entendo ainda mais claramente que, se me encontrar mais uma vez em uma situação semelhante, eu estarei até ao último instante na fileira, mesmo que me prometam mundos e fundos em troca da traição. Não traí ninguém na altura nem muito menos vou trair agora. Mas tudo o que está acontecendo agora na Ucrânia, no meu entender, são consequências de uma verdadeira traição.
Sergei: Se agora fosse possível voltar um ano atrás, eu teria agido da mesma forma. Quem nos mandou para lá, quem dava as ordens, eles tiveram todas as possibilidades de evitar o desastre. Em reiteradas oportunidades conseguimos dispersar toda essa chusma criminosa, mesmo a custo da nossa própria vida. Mas os altos chefes tinham medo de nos ordenar que aplicássemos medidas radicais, eles simplesmente voltavam a nos enviar, desarmadoss, repetidas vezes ao encontro das balas.
Soldados da polícia de choque Berkut – © SPUTNIK/ ANDREI STENIN
Sputnik: E como aconteceu ter sido precisamente a Berkut que começou a ser rotulada de inimigo principal da Maidan?
Aleksandr: Isso não aconteceu de um dia para o outro. Quando Yanukovych desistiu de assinar o acordo com a União Europeia, a tensão começou a crescer gradualmente. No início, os ativistas reclamavam apenas a assinatura do acordo com a União Europeia, a exigência de demissão do governo surgiria mais tarde. O governo não tomou a sério essa reivindicação, e eles começaram a bloquear as ruas centrais da cidade, amontoando pneus, sacos e peças de madeira.
Os moradores do centro de Kiev ainda se lembram das ruas convertidas em uma imensa lixeira malcheirosa, das entradas de casas imundas, dos saques e quebra-quebras da primeira “revolução laranja”. Aventureiros, criminosos e sem-teto chegados de todo o país num fechar e abrir de olhos converteram os bairros centrais em um vespeiro.
Lembrando-se de tudo isso, os moradores de Kiev começaram a bombardear a polícia com suas denúncias: “Quanto tempo mais se pode aguentar isso?! Ou as autoridades devem ceder, ou a polícia deve desbloquear as ruas! Nós não queremos que isso se repita pela segunda vez!”
Foi então que a Berkut recebeu pela primeira vez a ordem de desocupar a praça. Depois de nos terem transferido com antecedência para Kiev, distribuíram-nos em várias zonas de modo que pudéssemos acudir rapidamente a qualquer ponto em caso de os distúrbios eclodirem lá. Antes de sair pela primeira vez para policiar, recebemos instruções bem claras: não aplicar nenhumas medidas de coerção física, mesmo em resposta a eventuais provocações.
Sergei: Disseram que havia regimentos inteiros, uma hoste de nossos combatentes para reprimir a Maidan. Na realidade, a Berkut contava com cerca de seis mil pessoas em todo o território da Ucrânia. Tendo em conta o número de funcionários da unidade central, dos departamentos de pessoal e de logística, havia uns três mil agentes que podiam policiar as ruas.
Aleksandr: Formando uma cadeia, de braços unidos, fizemo-los recuar, desocupando calmamente a praça. Mesmo assim, foram registrados casos em que nos atacaram com pedras e paus. A histeria foi inflada até tal grau como se nós tivéssemos espancado metade de Kiev. Assim que saímos da praça, eles voltaram a ocupá-la, exigindo já a renúncia do Azarov e a dissolução da Berkut. Acabaram por nos declarar inimigos jurados.
Sputnik: Todas as pessoas que se encontravam na Maidan apoiaram a condenação da Polícia?
Aleksandr: Nada disso! Para a maior parte das pessoas, essa Maidan era como um circo ou um parque de diversões. Vinham multidões ao centro de Kiev, mas só para ver. Havia também grande número de pessoas vindas de outras cidades. Porém, após o início da fase ativa da operação policial, já não havia lá pessoas de bom senso. Ficaram apenas aqueles que foram pagos.
Sergei: Havia aqueles para quem a Maidan era como um trabalho. Após seis horas de lida diária nas barricadas, recebiam o pagamento e iam-se embora.
Aleksandr: Sim, é verdade. Quando estávamos os afastando da praça pela primeira vez, na multidão havia homens e mulheres desse tipo, com idades de 40 a 45 anos, que nos pediam: “Rapazes, deixem-nos ficar aqui até às seis da manhã, por favor. Pagaram-nos até às seis. Vamos fingir que resistimos a vocês e, às seis, nos iremos embora”.
Lembramo-nos muito bem dos fãs de futebol. Por que motivo eles nos chamaram a atenção? Porque nós fornecíamos segurança durante os jogos de futebol em todas as regiões do país, não havia nem uma só partida que se realizasse sem o aparelho de segurança providenciado pela Berkut. Somos capazes de identificar os fãs não só pelo nome da equipe, mas até mesmo pela cor dos cachecóis. Ora bem, em Kiev havia fãs de todas as zonas do país. Grupos especialmente numerosos provenientes das regiões ocidentais.
Sputnik: Quando a situação começou a se tornar particularmente tensa?
Aleksandr: Quando surgiu a moda de derrubar estátuas de Lenin. Lembro-me do primeiro, acho, caso desses. Uma companhia da Berkut, cerca de 30 rapazes da cidade de Chernigov, foi enviada para impedir a demolição. Eles não fizeram mais que formar um anel em torno do monumento. Ato seguido, uns 300 militantes revoltados os cercaram e começaram a espancar.
Bateram neles com correntes de ferro, arrancaram os policiais da fileira, e a multidão raivosa os espancou violentamente. Uma vendedora salvou um agente, todo magoado, com numerosas fraturas e inconsciente, arrastando-o para a sua tenda e escondendo debaixo do balcão. Não houve nem um só efetivo que não sofresse lesões, pois a chusma estava pronta a esfrangalhá-los.
O comando enviou um reforço para salvar os rapazes. Ora, que deitem abaixo o seu monumento, mas deixem-nos salvar os nossos rapazes. Não, eles responderam atirando no ônibus uma bomba caseira, recheada de parafusos e porcas para ferir um maior número de nossos colegas.
Sergei: Quando Kiev fala hoje na “centúria celeste”, sempre me pergunto por que é que nenhum dos meios de comunicação ucranianos faz menção aos policiais mortos? Houve, provavelmente, mais de uma centena de efetivos falecidos lá. Só eu vi com os meus próprios olhos três colegas tombados. Quanto aos feridos, não fui capaz de contá-los. Posso imaginar que 10% do pessoal caiu lá. Mas nem um só canal ucraniano, nem uma só notícia se referiu a isso.
Sputnik: Se recordam de alguns momentos especiais vividos na altura?
Aleksandr: Lembro-me do napalm ardendo e se espalhando pelas costas… Eu fui atingido com um coquetel Molotov. Um jato de fogo escorreu pelas costas, derretendo a proteção da farda, mas o que eu senti foi um frio entre as omoplatas. Não queimadura, não dor, mas como se fosse um gelo derretido a se espalhar. O cartão de identidade ficou queimado e quase tudo o que tinha no bolso. Mas foi essa sensação de frio que se me gravou mais profundamente na memória.
Sergei: O que mais me impressionou a mim foi o caráter bem orquestrado e as proporções do apoio financeiro daqueles eventos. A Maidan gozou de fortes patrocinadores, que pagavam a seus atores e os “aqueciam” com drogas. Isto, reitero mais uma vez, foi visto a olho nu, o vimos ao vivo e a cores e não através de imagens na Internet.
Repare bem, nós permanecíamos nas posições, sem abandoná-las, durante dois e até mesmo três dias, sem comer e descansar, dormindo em qualquer lugar. Apesar de estarmos preparados para atuar em tais condições, os nossos efetivos se extenuavam seriamente. Enquanto isso, no outro lado víamos pessoas bem ativas e vigorosas, correndo velozmente. Lembramos de seus rostos, é um hábito profissional. Alguém conhece muitas pessoas comuns, sem treinamento e preparação especial, que sejam capazes de pular agilmente durante três dias seguidos sobre as barricadas, carregar materiais e construir barricadas, atirar pedras e gritar slogans? Na Maidan havia dezenas de sujeitos como esses.
Sputnik: Os seus comandantes sabiam de tudo isso?
Aleksandr: Claro que sim. É que nós praticávamos incursões secretas na Maidan. Disfarçados, trajados à civil, íamos lá para ver as posições a partir de dentro. E informávamos o nosso comando, dizendo que haveria uma catástrofe, que era necessário recorrer a medidas radicais. Nós mesmos vimo-los trazendo arsenais de armas e preparando granadas de cloreto em pó, com que nos atacariam mais tarde. Essa substância química corrói os olhos e, quando aspirada, provoca em seguida queimaduras e intoxicações, deixando pessoas incapazes de atuar.
Os dirigentes de Kiev não queriam tomar a decisão. No decorrer de um dos confrontos, a situação chegou a tal ponto que nos faltavam apenas 50 metros para acabar de “limpar” a praça. Alguém tinha de tomar a decisão, mas ninguém quis fazê-lo. Ninguém tinha vontade de assumir a responsabilidade. E recebemos a ordem de retroceder.
Depois, quando eles começaram a usar armas indiscriminadamente em toda parte, a situação se tornou ainda mais ruim. Ponho só um exemplo: estávamos dispersando a multidão, já nos aproximávamos de uma barricada e, de súbito, eclodiram rajadas de tiros disparados a partir dessa barricada. As balas assobiavam ceifando pessoas, um sem-número de feridos evacuados do local… E nessas condições não nos deixaram usar as armas e ordenaram que seguíssemos atuando sem armas para desocupar a praça. E foi assim muitas vezes, uma após outra.
Sergei: Se na altura um membro da Berkut caía prisioneiro, quase sempre equivalia à morte. Uma vez, passando de carro perto da nossa posição, os da Maidan lançaram um vulto. Era um dos nossos companheiros de armas da região de Zaporozhiye. Eles tinham-no torturado, quebrado os braços e as pernas, crivado o corpo com uma sovela e depois levaram-no para junto de nós e jogaram semimorto no solo. Nós enviamo-lo à unidade médica, mas não sei se ele sobreviveu ou não…
E em meio de tudo isso, eles não paravam as tentativas de nos fazer passar para o seu lado. Gritavam-nos perguntando por que defendíamos aqueles que nos pagavam salários miseráveis… Colavam cartazes prometendo apartamentos em Kiev e tanto dinheiro quanto quiséssemos. As jovens mandavam-nos cartas escrevendo que iriam se casar com quem passasse para o lado deles. Em resumo, procuravam desmoralizar-nos e convencer-nos de que bastava só depor o escudo e desertar, e seríamos recompensados generosamente… Se houvessem conseguido o seu objetivo, mesmo em um só caso, teriam podido usá-lo para organizar toda uma campanha propagandística. Mas esperaram em vão, nenhum dos nossos companheiros fugiu para o lado deles.
Um manifestante joga coquetel Molotov contra a Berkut – © AFP 2015/ VASILY MAXIMOV
Sputnik: Como avaliam agora, passado um ano, tudo o que tem acontecido na Ucrânia?
Aleksandr: Se há um ano na Ucrânia tivesse acontecido o que está acontecendo agora, eu teria me, talvez, demitido por vontade própria e não teria ido à praça da Independência. Mas agora tudo mudou horrivelmente. Na altura alguns queriam aderir à União Europeia, e agora todos querem, elementarmente, um trabalho, o aquecimento funcionando em casa e que não haja guerra…
Recentemente, uma amiga minha, ao conversar pelo telefone com seus parentes em Kiev, disse manter contato com um membro da Berkut. As pessoas quase com lágrimas perguntam lá quando nós voltaremos.
Sergei: Ouvi falar que Avakov (ministro do Interior da Ucrânia, multimilionário) também procurou pôr-se em contato conosco, através de qualquer site ou rede social na Internet. Chamando para que esqueçamos tudo e voltemos à Ucrânia, e dizendo que nos enviaria para a ATO (sigla em ucraniano para “operação antiterrorista”, ou seja, a operação militar no Donbass), onde deveríamos expiar com o sangue a nossa suposta culpa. Promete, nesse caso, fechar os processos criminais que abriram contra nós por termos sido fiéis ao juramento prestado.
Mas não, nem tenho sequer ideia de voltar à Ucrânia, não. Mudámo-nos para a Rússia e isso é para sempre. Vamos estabelecer-nos aqui até o fim dos nossos dias, pois não somos amigos de vida peregrina. A Rússia acolheu-nos muito bem, e nunca vamos traí-la.
Infelizmente, agora as condições não permitem manter contato com todos os colegas. Não obstante, sabemos que nenhum de nós mudou de ideia e ninguém passou para o lado da ATO. No nosso batalhão não conhecemos ninguém que o tenha feito.
Aleksandr: Eu não acho que tenha traído a Ucrânia. Penso muito nisso, é claro. Agora é um Estado fascista na sua essência, infectado com o vírus Bandera (ideólogo do nacionalismo ucraniano, autor de vários ataques terroristas; durante a Segunda Guerra Mundial colaborou com os nazis). Eu sigo amando a Ucrânia como minha terra natal, mas detesto o que os governantes atuais estão fazendo com ela.
Sergei: Efetivamente, nós ainda podemos voltar à Ucrânia. Aliás, eu estou pronto para voltar lá com um único propósito: limpar a seita que destruiu o meu país.
Fonte: Sputnik / Plano Brasil
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