Adivinhem portanto o que a terminalmente paranoica Casa de Saud está tentando: pôr as mãos numa bomba atômica para responder ao ataque da inexistente “bomba iraniana” – que Teerã, pela voz do Supremo Líder Aiatolá Khamenei, repetidas vezes já esconjurou e decretou que é arma não Islâmica; e de qualquer modo nem que quisesse o Irã jamais teria bomba atômica, porque o país terá de receber inspeções rigorosas, como parte do acordo sobre armas nucleares.
O proverbial “ex-funcionário do Pentágono” vazou para um dos jornais de Rupert Murdoch que a Casa de Saud está a um passo de comprar bomba atômica pré-fabricada, do Paquistão. A escolha do veículo que recebeu o “vazamento” já é uma pista: o príncipe Alwaleed bin Talal é um dos principais acionistas da News Corporation.
A questão de “por que agora?” sobre o vazamento tem resposta óbvia, mas o território do “quem-fez” é mais complexo e nebuloso.
Enquanto isso, acrescentando combustível ao fogo jihadista, com os wahhabistas de Riad a sonhar com se tornarem – literalmente – nucleares, os seus irmãos de fé em todo o “Siriaque” vão-se tornando metaforicamente nucleares, somando vitória sobre vitória com os seus coturnos em solo; do ataque a Palmyra, joia da era-Rota da Seda do deserto na Síria, à tomada de Ramadi no ex-“triângulo da morte” no Iraque.
A “bomba iraniana” jamais foi verdadeira preocupação para sucessivos governos dos EUA; jamais passou de pretexto conveniente para cercar, atormentar, sancionar e “isolar” a República Islâmica, ex-gendarme do Golfo nos tempos do Xá. O governo dos EUA sempre soube que é possível comprar bombas atômicas no mercado negro; portanto, nada muda se Teerã estiver fazendo ou não sua bomba nuclear própria.
Por sua vez, a Casa de Saud pode – a palavra operativa aí é “pode” – já ter uma bomba, de fato há muito tempo, para destruir Israel. E “podem” tê-la comprado de, e pagado por ela a, Islamabad. Não há provas conclusivas.
O que é garantido é que a – inexistente – “bomba iraniana” é o que a Casa de Saud, outros asseclas seus no Conselho de Cooperação do Golfo e, não podemos esquecer, o governo de convergência de extremistas fundamentalistas de Bibi Netanyahu, todos esses, consideram “ameaça existencial” à sua [deles] sobrevivência.
Irã e o Acordo Nuclear… e Netanyahu por Dave Granlund |
O problema é que não podemos descartar surtos de loucura desse tipo como se não passassem de casos de surrealismo geopolítico. Mito corrente – extremamente popular no Departamento de Estado na avenida Beltway — reza que Riad tem algum crédito com Islamabad, porque a Casa de Saud teria investido bilhões de dólares nos anos 1970s para desenvolver o programa nuclear paquistanês, como contragolpe ao programa nuclear da Índia.
Já em dezembro de 2011, a Casa de Saud anunciou publicamente que estava procurando uma bomba atômica. Mas só quando avançou a possibilidade de real acordo nuclear com o Irã, os sauditas decidiram embarcar na empreitada tipo cauda-que-balança-o-cachorro de controlar a política exterior dos EUA.
Israel entrou no jogo já em novembro de 2013, quando a BBC noticiou um suposto negócio nuclear entre Riad e Islamabad. Citação chave veio de ex-chefe da inteligência militar israelense, Amos Yadlin: se o Irã tiver uma bomba, “os sauditas não esperarão nem um mês. Já pagaram pela bomba; irão ao Paquistão e trarão o que tiverem de trazer”.
Compare-se isso com o esperto príncipe Turki, ex-chefe da inteligência saudita e camarada próximo de um dito Osama bin Laden, que sempre acenou com a possibilidade de uma Casa de Saud nuclear. A última vez foi mesmo em abril/2015, no South Korean Asan Plenum: “O que os iranianos tiverem, nós também teremos”.
O novo Chefão da gangue de Riad, o rei Salman, queria que Islamabad fornecesse soldados para a guerra que ele mantém contra o Iêmen. Islamabad respondeu Não, obrigado. Em vez dos soldados, pode – e a palavra operativa, outra vez, é “pode” – ter sido fechado um negócio nuclear. Naturalmente, nenhum alto funcionário nem de Riad nem de Islamabad jamais confirmará qualquer detalhe disso tudo.
Considere do ângulo paquistanês
O rei Salman sabe muito bem que no caso de o ISIS/ISIL/Daesh conseguir a “mudança de regime” na Síria – possibilidade ainda muito remota – o alvo seguinte será a Casa de Saud.
E há também o fato de Washington continuar a esconder as infames 28 páginas do relatório sobre o 11/9, perfeitamente ocultas por todos esses anos. Ter sua bomba nuclear pode, sim, servir como “argumento” de que os sauditas podem lançar mão tanto contra Washington como contra a inexistente “bomba iraniana”.
Paquistão, os wahhabistas sauditas e a… BOMBA! |
Além da propaganda, permanece o fato de que vários VIPs e Masters of the Universe estão realmente fartos da Casa de Saud em várias questões chaves, sobretudo agora, com a guerra saudita dos preços do petróleo a dizimar a indústria norte-americana do petróleo de xisto.
Mas, seja como for, a Casa de Saud jamais poderá virar – literalmente – nuclear atômica, sem uma luz verde de Washington.
A visada do Paquistão ajuda a dissipar a névoa. O chefe do projeto nuclear paquistanês A.Q. Khan — com algum apoio ou, no mínimo, com a concordância de Islamabad — vendeu, sim, tecnologia de armas nucleares à República Popular Democrática da Coreia (“Coreia do Norte”), ao Irã e a Líbia. Mas todo o programa nuclear paquistanês custa menos de US$ 450 milhões. Resmas de analistas paquistaneses destacam que foi assim tão barato porque Islamabad foi ajudada pela China, não pela Casa de Saud.
Ambos, Irã e Arábia Saudita são fornecedores chaves de energia para os chineses. Ambos, Irã e Paquistão serão atores chaves no projeto emergente da(s) Nova(s) Rota(s) da Seda liderado pelos chineses. Islamabad seria completamente idiota se pusesse em perigo seu relacionamento com Pequim, fornecendo uma arma nuclear que será usada para ameaçar um vizinho não nuclear – o Irã – que não apenas é aliado estratégico dos chineses, mas também terá papel chave no solucionamento dos problemas energéticos do Paquistão, via o oleoduto Irã-Paquistão (IP), parcialmente financiado por – e quem mais seria? – Pequim.
Assistam à Batalha de Ramadi – remix
O wahhabismo, como é praticado na Arábia Saudita amiga de degoladores, é e continuará a ser a matriz ideológica de todas as formas de salafismo-jihadismo que foram disparadas no Oriente Médio e além. Isso se aplica ao seu mais espetacular ISIS/ISIL/Daesh apaixonado pelas mídias sociais.
ISIS/ISIL/Daesh – para consternação do “mundo civilizado” – tomou a pérola da Antiga Rota da Seda, Palmyra. A UNESCO está “consternada”. A Casa Branca está “preocupada”.
Palmyra é encruzilhada estratégica no centro da Síria, e dali o falso Califato poderá lançar ataques em todas as direções e acossar o eixo vital do governo sírio, de Damasco a Aleppo. Já tomaram também o ponto crucial de controle sobre a fronteira Síria-Iraque, al-Walid, em território sírio.
Palmira – centro geográfico da Síria |
Além disso, cerca de 1/3 dos 200 mil habitantes de Palmira já estão convertidos em refugiados. Centenas foram feitos reféns. O macabro show de degola prossegue.
E o Império do Caos – o qual, em tese, está em guerra contra o falso Califato – está fazendo alguma coisa para salvar as ruínas romanas de valor inestimável que há em Palmira da destruição possível, iminente, pelos bárbaros wahhabistas? É claro que não.
Ruínas romanas de Palmira |
E o mesmo se aplica a Ramadi, capital da província de Anbar, a apenas 110km de Bagdá, que os EUA não “perderam”, porque nunca foram donos dela. Enquanto ISIS/ ISIL/ Daesh vangloriava-se da vitória com megafones em todas as principais mesquitas, o Pentágono disparava press-releases segundo os quais se tratava de “campo de combate fluido e contestado”; e insistia em “apoiar [os iraquianos] com fogo aéreo”.
Não deixem de ver o flamante comboio de Toyotas dos bandidos do Califato, rindo do alto de suas Kalashnikovs, enquanto deixam sua marca no “campo de combate fluido e contestado”. O Pentágono pode “apoiar” o que quiser com “fogo aéreo”, mas o bombardeio não estraga a fluidez. O Pentágono perdeu todos os seus alvos. ISIS/ISIL/Daesh não é patinho na lagoa; estão numa guerrilha assimétrica, com alta capacidade para deslocamento rápido.
ISIS/ISIL/Daesh investiu em muito planejamento estratégico para tomar Ramadi. O simbolismo aí é de longo alcance: uma grande derrota não só para Bagdá mas, também para o Império “liderando-pela-retaguarda” do Caos, por mais que um Barack Obama absolutamente sem noção só faça repetir que “não estamos perdendo” a luta contra o Califato.
O Primeiro-Ministro iraquiano, Haydar al-Abadi, está começando, afinal, a entender a coisa toda. Reuniu-se com líderes chaves das milícias xiitas – que terão de fazer o trabalho pesado de cruzar o Eufrates e tentar retomar Ramadi antes de que os bandidos do Califato decidam avançar em direção à cidade santa de Karbala, que guarda o túmulo de Imam Hussein, neto martirizado do Profeta Maomé. É uma corrida contra o tempo, porque ISIS/ ISIL/ Daesh pode também tentar tomar as bases militares iraquianas próximas e os respectivos depósitos de armas.
Iraque e principais cidades (incluindo Ramadi e Karbala) |
Quanto aos xeiques tribais sunitas em torno de Ramadi, como possíveis adversários contra o Califato, estavam – e permanecem – absolutamente furiosos, porque jamais receberam as armas que Bagdá lhes prometeu. Além disso, ninguém sabe por que o Exército Iraquiano no local não recebe apoio aéreo; helicópteros de combate, armados, naquele local, teriam feito picadinho de muitos e muitos bandidos do Califato.
Al-Abadi afinal agiu e removeu a proibição que ele mesmo impusera, pela qual as milícias xiitas foram proibidas de operar na província de Anbar, de sunitas hardcore; antes, as milícias lá estiveram, obedecendo ordens do respeitado Aiatolá Sistani.
Entrementes, o comandante do Badr Corps e comandante geral das milícias xiitas, Hadi al-Ameri, tem certeza de que retomar Ramadi é mais fácil que combater no norte de Bagdá, na província Salahuddin – onde as milícias, com o Exército do Iraque, retomaram Tikrit e Beiji, do controle do ISIS/ISIL/Daesh. Nos dois casos, as bombas despejadas pelo Império do Caos tiveram papel mínimo.
Al-Abadi também se reuniu com o Ministro da Defesa do Irã, brigadeiro-general Husain Dehqan, em Bagdá. Repetiu que ambos, Irã e Iraque, estão combatendo contra o extremismo terrorista (sunita). E disse, crucialmente importante, que “nós não apoiamos a guerra contra o Iêmen” – o que põe Bagdá em conflito direto com Riad.
E a coisa ainda fica melhor: al-Abadi foi a Moscou, onde espera conseguir muito apoio – e armas. Afinal, o ISIS/ISIL/Daesh está cheio de chechenos. Moscou quer o Califato esmagado, o quanto antes; enquanto ele continuar ativado por lá, permanece uma ameaça direta de renascimento do jihadismo na Chechênia.
Assim sendo, está montado o cenário para a Batalha de Ramadi — remixed. Milícias xiitas mais tribos sunitas, o estranho conselheiro norte-americano, o discreto apoio de Irã e Rússia, contra os bandidos do Califato, muitos dos quais mercenários, apoiados com prodigalidade por vários wahhabistas ricos, na Arábia Saudita e por todo o Golfo. No que tenha a ver com o Império do Caos, “Dividir e Governar” ainda é o mais doce jogo que há hoje na cidade.
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today, e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Redecastorphoto / Oriente Mídia
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