24/9/2015, Pepe Escobar, RT
Tradução Vila Vudu
É o suspense geopolítico máximo da temporada: será que o presidente Barack Obama dos EUA finalmente decidirá conversar com o presidente Vladimir Putin da Rússia, ou nessa 6a-feira ou durante a Assembleia Geral da ONU, semana que vem em New York? O dramático movimento dos russos na Síria, que virou o jogo – não só entrega de armas, mas a real possibilidade de real intervenção pela Força Aérea da Rússia – deixou todos zonzos na área da Avenida Beltway. O ministro de Relações Exteriores da Síria Walled Muallem disse claramente ao jornal RT que o envolvimento direto dos russos na luta contra ISIS/ISIL/Daesh e os tais “moderados” (como os neoconservadores dos EUA os tratam) da Frente al-Nusra, codinome Al-Qaeda na Síria, é ainda mais importante que as armas fornecidas.Washington, entrementes, permanece enredada num buraco negro geopolítico, para tudo que tenha a ver com a estratégia de Putin.
A resposta do governo Obama está conectada como os dois lados de uma dobradura a como será recebido em todo o mundo o discurso de Putin na ONU, e a como se desenrolará a diplomacia frenética relacionada ao teatro de guerra na Síria.É ingenuidade interpretar o avanço militar dos russos como mero show de força, convite aos norte-americanos para que afinal se sentem e discutam tudo, do sudoeste da Ásia à Ucrânia.Também é ingenuidade interpretar o movimento como desespero, em Moscou, por algum diálogo, no sentido dequalquer diálogo. Não há ilusões no Kremlin. Obama e Putin trocaram umas poucas palavras em Pequim, ano passado – e foi só; nada de visitas oficiais, nada de encontros detalhados.
O que é certo é que a mais recente jogada do xadrez de Putin tem potencial para reduzir a cacos a ‘estratégia’ do governo Obama pós-Maidan de isolar a Rússia. Daí o medo previsível, o ranger de dentes e a paranoia que tomou conta de toda a área da Avenida Beltway.
Velhos hábitos de Guerra Fria 2.0 são duros de morrer – se é que morrem. Washington pode estender o proverbial “apoio financeiro” à falida e falhada Ucrânia, e a pressão sobre a União Europeia para que mantenha as sanções ao longo de 2016 permanecerá. Toda a ‘Think-tank-elândia’ nos EUA continua a repetir e divulgar freneticamente que o governo Obama “não está pronto” para negociar com a Rússia.
Bem, pelo menos a Casa Branca e o Departamento de Estado parecem ter afinal compreendido que aqueles mísseis terra-ar e Sukhois que agora estão na Síria lá estão para proteger a base aérea em Latakia. O Pentágono que trate de explicar para um John Kerry perfeitamente desentendido de tudo: eles lá estão como “força de proteção“.
A nova remessa já entregue inclui 4 jatos de combate multifuncionais Su-30SM; 12 jatos de ataque em terra Su-25; 12 jatos de ataque Su-24M; e seis possíveis helicópteros de ataque Ka-52. Segundo
IHS Jane’s, “é significativa capacidade para atacar rebeldes que se opõem ao governo sírio e para prover a perfeita segurança de Latakia, terra natal do presidente Bashar al-Assad.”A elucidação veio depois que o El Supremo do Pentágono, Ash Carter e o ministro da Defesa da Rússia Sergei Shoigu mantiveram conversa de 50 minutos por telefone. O fato de ter sido o primeiro telefonema entre os dois em mais de um ano diz tudo que é preciso saber para avaliar as competências “diplomáticas” do governo Obama.
Inevitavelmente, Kerry teve de mudar sua conversa: as armas já não levantam “sérias questões“. Agora, Kerry está dizendo, essencialmente, que Moscou tem o direito de super turbinar sua ação de paz-para-a-Síria, e a Casa Branca já não repete em frenesi, incontáveis vezes, que Assad-tem-de-sair, desde que haja uma “transição”.
Observem o tabuleiro do xadrez
Putin fará discurso daqueles de fazer parar o espetáculo na ONU. Dedicará um breve parágrafo aos fantoches que ativaram a política externa do governo Obama, incluída a célula neoconservadora no Departamento de Estado. Putin, sob os olhos da opinião pública global anunciará o descarte total do ISIS/ISIL/Daesh, que deixará de existir como questão geopolítica chave dos tempos atuais; vai declarar que a tarefa será levada a cabo pela Rússia; e proporá que o ‘ocidente’ una-se à Rússia.Cenário 1: Washington e seus lacaios na UE decidem apoiar a ação dos russos, ou, pelo menos, a tal coalizão de oportunistas espertalhões liderada pelos EUA será posta a trabalhar lado a lado com a Rússia – e com o Irã.
Significa ajudar Damasco a vencer guerra de verdade contra o terror (do “Califato”). “Assad tem de sair” talvez, quem sabe; mas depois. E sairá como vencedor.
O governo Obama – além do sultão Erdogan, do Qatar, da Casa de Saud – serão expostos ao mundo como responsáveis por terem prolongado uma tragédia que poderia ter sido resolvida em 2012. E a Rússia será reconhecida como última frente de defesa eficaz e operante da civilização, contra a barbárie.
Cenário 2: Washington e seus lacaios na UE recusam-se a pôr-se lado a lado com a Rússia, e continuam a apostar no espantosamente ineficaz desempenho da coalizão dos oportunistas espertalhões – por exemplo, com Erdogan bombardeando curdos, não algumISIS/ISIL/Daesh, e os franceses encenando mini raid-izinhos aéreos invocando “autodefesa” (não estou inventando nada: é a versão oficial do Palácio Elysée.) Todo o mundo interpretará tal coisa pelo que a coisa é: o combo OTAN-CCG não tem mesmo interesse algum em derrotar qualquer salafista jihadista.
Imaginem o resultado diplomático/geopolítico cataclísmico de o mundo não ter como não ver no que deram os cinco anos da ‘operação’ ‘comandada’ por OTAN-CCG, de armar até os dentes jihadistas degoladores.
E o fecho de ouro: se o Exército Árabe Sírio/militares russos puserem fim à obra doISIS/ISIL/Daesh, adivinhem quem levará as honras.
Quer dizer que Putin vence nos dois cenários. Esqueçam a facinorosa incansável demonização, os memes de ‘novo Hitler’, ‘novo Stálin’. ‘Putin O Grande’ lá estará, nada menos que um Perseu eslavo – justiceiro matador da Medusa jihadi.
A grande potência voltou
Mas há mais, muito mais. Aconteça o cenário 1 ou o cenário 2, Putin está também, simultaneamente, regendo uma saída para o impasse na Ucrânia, que envolve o fim das sanções, provavelmente em 2017. As nações que realmente contam na UE já estão querendo acabar com as tais sanções. E acabarão com elas, se Putin fizer o que elas não poderão jamais fazer: acabar com o “Califato” que despacha ondas e mais ondas de refugiados diretamente para dentro da Fortaleza Europa.Em ”
Paz na Síria? Culpa de Putin!” já examinei como qualquer possível paz na Síria sempre será culpa de Putin. Agora, imaginem as consequências. A Rússia de volta, como a nação realmente indispensável – no Oriente Médio e para além dele. A Rússia de volta, como grande potência – ponto, parágrafo.Alguns, que já emitiram sinais de vida inteligente na União Europeia já perceberam o que está para acontecer.
Entra em cena
Helene Carrère d’Encausse, historiadora especialista em Rússia e membro da venerávelAcadémie Française desde 1990, da qual é secretária
perpétua. Madame d’Encausse compreende claramente como Putin vê-se, ele mesmo, como herdeiro de Pedro O Grande – grande modernizador.E ainda que reconheça que a Europa já não é o centro do mundo, Putin de modo algum é adversário da Europa. Mas ele sabe que para norte-americanos e europeus a Rússia é país que eles podem tratar com desdém. E isso tem, absolutamente, de ser revertido.
O projeto “Putin O Grande” visa a devolver à Rússia seu status de grande potência.
Quando Putin foi eleito à presidência em 2000 – eu estava em Moscou cobrindo aquelas eleições e lembro muito bem –. a Rússia estava em caos total, sendo destruída pelo mais desatinado neoliberalismo. Putin pôs a Rússia de volta nos trilhos.
O que Putin quer sobretudo – diferente do que pretende a leitura superficialíssima que reina na Think-tank-elândia norte-americana –, não é refazer algum império, russo ou soviético; quer é livrar o país da humilhação pela qual todos passaram nos anos 1990s – a década do saque generalizado –, e devolver o orgulho aos russos. Basta ver pelos índices de popularidade do presidente na Rússia: 85% e aumentando, que os russos entendem e concordam.
Madame d’Encausse faz uma referência histórica ao Conde Sergey Uvarov, estadista do império que atuava à sombra do czar Nicolau 1º, e que definiu a doxa na Rússia em meados do século 19, como “ortodoxia, autocracia e gênio nacional”. Para a especialista, aí está o coração da ideologia de Putin.
“Gênio nacional”, nesse contexto, refere-se a um senso de justiça social e a um espírito muito russo, de solidariedade. Putin sempre enfatiza esse espírito, que é componente essencial do que significa ‘ser russo’. E tudo está conectado com o nacionalismo. Basta reler Dostoievsky, para quem “a nação russa é fenômeno extraordinário na história do gênio humano.”
E há também, sim, o Islã – fator que complica extraordinariamente tudo.
Há na Rússia, mais de 20 milhões de muçulmanos. Putin reconhece que a Rússia também é estado muçulmano; de fato, é estado multiconfessional, e muitos russos muçulmanos são sunitas. Putin identifica claramente o ISIS/ISIL/Daesh como uma cruzada sunita contra xiitas. Ao mesmo tempo, mantém relações muito boas com o Irã xiita e com os alawitas na Síria. E dá-se conta de que há repúblicas sunitas, ex-russas e ex-soviéticas, plantadas às portas da Rússia.
Assim sendo, Putin tem de continuar a analisar o Islã levando em consideração simultaneamente a política nacional e a política exterior. O que ele já sabe com certeza é que um ‘Sunitistão’ de salafitas jihadistas no “Siriaque” é ameaça muito grave à segurança nacional da Rússia. Aleppo é praticamente a porta ao lado, de Grozny. Claro, ‘Putin O Grande’ é homem de grande ambição.
Mas é preciso começar pelo começo: Putin absolutamente não pode permitir que a grande potência ressurgente seja infiltrada e corroída por bárbaros inventados e armados pelo ocidente, ali, às portas da Rússia.
Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.
Oriente Mídia
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