4/9/2015, Ghassan Kadi, The Vineyard of the Sakerhttp://thesaker.is/the-capitulation-of-grand-liban/
Tradução Vila Vudu
“Grand Liban” em francês, ou Grande Líbano, i.e., o Líbano nas suas fronteiras hoje reconhecidas internacionalmente, é uma espécie de filho bastardo da França e subproduto do infame acordo Sykes-Picot que dizimou o Levante, primeiro numa partilha entre França e Grã-Bretanha, depois novamente dividido, antes de conseguir a própria independência.
A França prometera aos seus representantes locais no Líbano (basicamente, os líderes políticos cristãos maronitas, também chamados “Entidade Maronita Política”), que garantiria a independência e a soberania do Líbano e protegeria o país contra futuras tentativas dos sírios para retomar o país. Por isso os muçulmanos libaneses referem-se à França, com sarcasmo, como “a mamãezinha” do Líbano.
A “Entidade Política Maronita” ficou apreensiva com a inclusão das grandes cidades de Beirute, Tripoli e Saida – cidades de grande população muçulmana – no Grand Liban. Os franceses viram sentido naquele medo e estipularam, na Constituição libanesa, que o presidente do Líbano e o Comandante do Exército seriam maronitas. Aqueles medos incluíam o fato de os muçulmanos daquelas cidades verem-se repentinamente transformados em cidadãos de uma entidade que, para eles, não passava de vassala do ocidente; e estarem muito indignados por terem sido amputados da mãe Síria, e jogados no colo de um estado com o qual não se identificavam.
Quando Nasser ganhou proeminência, muitos muçulmanos libaneses o apoiaram e uniram-se aos nasseristas do Nacionalismo Pan-Árabe. A associação não durou muito, mas o que a substituiu foi muito mais complexo e sinistro. O pan-arabismo foi substituído pelo fundamentalismo sunita, e pela primeira vez na história do Líbano os xiitas começaram a ter voz.
Até mais ou menos os anos 1980s, os xiitas libaneses tiveram papel pouco destacado na política libanesa. Os acima referidos muçulmanos de Beirute, Tripoli e Saida são predominantemente sunitas. Garantiram para eles a posição de primeiro-ministro, e para os xiitas ficou o cargo de líder do Parlamento; não chega a ser posição estratégicamente muito importante, mas essa é só uma parte do problema. Os xiitas foram postos de lado, e suas regiões foram empobrecidas. O que acrescentou insulto à injúria foi que os xiitas foram concentrados em duas áreas do Líbano, no vale do Bekaa e no sul – e no sul tinham Israel como vizinho de fronteira.
Contra todas as probabilidades, os xiitas cresceram e conseguiram derrotar Israel, aplicando vitória histórica à entidade sionista, comparável à de David contra o gigante Golias.
O crescimento dos xiitas libaneses introduziu outra variável na equação da política libanesa, interna e em posição muito forte. Fato é que os xiitas estão hoje encaminhados para ir, de uma posição forte, para posição de ainda mais força, em futuro próximo.
O que se vê, mais provável a cada dia, é que o presidente Assad vencerá a batalha contra a coalizão que iniciou em 2011 a guerra contra a Síria. De fato, essa coalizão já nem existe. Foi fragmentada, e o exército de fundamentalistas que ela criou (o ISIS/ISIL/Daesh/Estado Islâmico) converteu-se em pesadelo para os países que ajudaram a criá-lo.
Enquanto isso, a “Entidade Política Maronita” encontrou novos aliados locais, na verdade os aliados mais improváveis, ninguém menos que sua ex-nêmesis: os sunitas libaneses. Os dois lados libaneses originais da política, sunitas e maronitas, deram-se conta de que ambos perderiam a estatura de antes, a menos que se unissem e lutassem contra os xiitas; ou, muito especificamente, contra o Hezbollah.
Dessa vez, a França teve no máximo um papel de apoio. A França já não é a superpotência de seus melhores dias nos anos 1920s, e seu alcance político e econômico é limitado. O apoio para a nova aliança libanesa teve de vir de fonte diferente, e, ironicamente, veio do mais fundamentalista dos estados muçulmanos – a Arábia Saudita.
Com fortes ligações com os sauditas e fortuna gigante, Saad Hariri, cabeça da tradicional “Entidade Política Sunita” libanesa, formou a espinha dorsal financeira de uma aliança com a Arábia Saudita e os EUA, com a França ao lado, uma aliança que visava a garantir a integridade e a soberania do Líbano como entidade independente da Síria. Assim, a chamada Aliança 14 de Março foi originalmente constituída da “Entidade Política Maronita” plus a “Entidade Política Sunita” liderada por Hariri e também pelo líder druzo Walid Jumblat; mas Jumblat logo deixou a aliança.
Do outro lado da política libanesa, há a Coalizão 8 de Março. O mais importante ator dessa coalizão é o Hezbollah, mas há nela outros elementos progressistas e seculares – como o Partido Nacional Socialista Sírio [ing. Syrian Socialist National Party (SSNP)], o Partido Comunista Libanês, e, contra todas as probabilidades, líderes maronitas como o ex-comandante geral do Exército, general Michel Aoun e Souleiman Franjieh que são alinhados com o “Eixo da Resistência”.
O Partido Nacional Socialista Sírio – que prega a unificação da Grande Síria – foi criado por um libanês cristão ortodoxo, Antoun Saade. É partido absolutamente secular e tem estado fortemente engajado na batalha na Síria ao lado do Hezbollah e do Exército Sírio.
Enquanto a união de maronitas e sunitas na Coalizão 14 de Março não passa de casamento de conveniência com objetivos sectários anti-xiitas, a Coalizão 8 de Março é coalizão realmente secular, apesar de seu principal fundamento ser o Hezbollah de base xiita. Os membros e apoiadores, nesse caso, especialmente os mais jovens, estão fartos da Constituição libanesa sectária, dentre outras coisas.
Além do mais, a presença do general Michel Aoun especificamente na Coalizão 8 de Março está sinalizando o fim da “Entidade Política Maronita”. Os próprios maronitas estão divididos, quase pela metade. Uma dessas partes quer manter o antigo status quo; a outra parte, liderada por Aoun, quer reformas e bom relacionamento com a Síria.
Entrementes, e dado que o desenrolar dos eventos na Síria não dava sinais de estar-se aproximando dos desejos da Coalizão 14 de Março, o atual rei saudita Salman fez o que, na prática, equivaleu a um golpe de Estado. Imediatamente depois de ter assumido o trono (23/1/2015), ele nomeou vice-príncipe coroado o próprio filho, pouco conhecido externamente, príncipe Mohammed. Na prática, Mohammed tornou-se uma espécie de rei não coroado da Arábia Saudita.
Em 1964, quando forçou seu irmão mais velho Saud, o corrupto, a abdicar, o rei Faisal iniciou linhagem nova no trono, que perdurou durante os reinados de Khaled, Fahed e Abdallah. Mas tudo mudou agora em março de 2015. E o novo príncipe coroado não gosta dos príncipes e assessores da velha guarda – entre os quais, Hariri.
Há recorrentes boatos, também, de que Hariri enfrenta gravíssimas dificuldades financeiras. Sua empresa libanesa, Oger Liban, está fechando as portas e só empregados com laços muito próximos com Hariri estão recebendo alguma indenização. Os demais estão sendo demitidos de mãos vazias. Mas a empresa-mãe, a própria Saudi Oger, ao que se sabe, deve em torno de 1 bilhão de dólares. No passado, Hariri recorreria aos cofres reais, em busca de ‘resgate’. Dessa vez, nada feito.
Quando a guerra na Síria terminar – momento que agora já não está muito longe –, Assad sairá vitorioso; o Hezbollah estará ainda mais poderoso; e as tradicionais “Entidade Política Maronita” e “Entidade Política Sunita” estarão absolutamente desgastadas e esvaziadas.
O que os observadores não parecem estar vendo é que o estado do Grand Liban está capitulando. Nada mais funciona: de recolher o lixo das ruas, a eleger o presidente.
Por falar em eleição, o Líbano vive há mais de um ano sem presidente. Se a fé maronita pressuposta no presidente algum dia foi garantia da sobrevivência do estado libanês, como é possível que, dessa vez, os maronitas não tenham sequer chegado a qualquer acordo entre eles mesmos, sobre um nome para candidatar-se à presidência?
Mas outra vez, não é só isso.
Depois que a Síria tiver vencido sua guerra, não poderá deixar desprotegida a área do “baixo ventre macio” junto à fronteira. O Líbano já foi invadido por milhares de ativistas e combatentes do ISIS. Estão localizados principalmente no norte e nordeste do país. Suas principais fortalezas estão na cidade de Arsal no Bekaa e na cidade de Tripoli – segunda maior cidade do Líbano. Esses radicais terão de ser desalojados e expulsos, e só o Exército Árabe Sírio e seus aliados libaneses estão qualificados para essa missão. Quem não cuidar de preparar-se para esses eventos, será colhido de surpresa quando, de probabilidades, passarem a fatos consumados.
Que nação ou que potência, poder-se-ia indagar, levantará a mão e chamará para si a defesa da integridade e da soberania do Líbano? Quem aparecerá para fazer o papel de “mamãezinha” dos maronitas? E de que maronitas? Os remanescentes da tradicional “Entidade Política Maronita”? Ou os seguidores do general Aoun?
O Grand Liban à francesa está capitulando. Sua constituição sectária apodreceu. Seu tecido político perdeu o chão sobre o qual se apoiava. As instituições decadentes, erguidas sobre corrupção e propinas, estão ruindo sob o próprio peso.
O “Grand Liban” foi uma mentira francesa, piada que nem o general Gouraud que a inventou supôs que perduraria; nem ele acreditaria, se soubesse que sua invenção está completando um século de vida!
O povo libanês de diferentes adesões políticas está de pé, furioso e desapontado com o que sobrou de seu governo e dos políticos libaneses. Milhares estão saindo às ruas cobrando reformas, mas não há reforma a fazer numa entidade cujos pilares estão sobre areia movediça, construída com palitos e só mantida ereta à custa de muito grude.
O lixo que enche as ruas e causa grave crise é manifestação de outros dejetos, mais profundos e mais sinistros, que contaminam a própria natureza do estado, sua soberania como nação independente capaz de se autogerir e sua Constituição sectária arcaica.
Assim sendo, de um lado há um espectro de governo libanês sectário, corrupto, fraco e disfuncional; e de outro lado está o Eixo Libanês da Resistência (também chamado Coalizão 8 de Março), que é secular, organizado, forte e capaz. Não resta dúvidas de que o Eixo Libanês da Resistência é hoje o corpo certo, já mais próximo de ser o efetivo exército do Líbano, que o próprio Exército Libanês regular. Não é difícil, portanto, propor que essa aliança pode, talvez deva, um dia, liderar o caminho para novas trilhas, seja rumo à governança seja rumo à própria identidade do Líbano.
Tão logo o Exército Árabe Sírio entre no Líbano, que dali nunca mais saia. O Líbano jamais terá paz, segurança, nem jamais poderá assumir sua verdadeira identidade se não se reunir à mãe Síria, e puser fim a esse século de só construir andaimes em torno do Líbano, tentando mantê-lo em pé. Ninguém dá sinais de querer ou de poder manter aquele passado. E todos os andaimes já caíram, reduzidos a ruínas.
* “O Estado do Grande Líbano foi um estado autônomo que, entre 1920 e 1926, fez parte da Síria mandatária – que era administrada pela França, por Mandato da Liga das Nações. Em 1/9/1920, o general francês Henri Gouraud proclamou o estabelecimento do Estado do Grande Líbano, uma expansão do chamado “Pequeno Líbano”, que desde 1861 recebera o estatuto de província otomana separada, semiautônoma – condição que manteve até 1915, quando o regime otomano, já em desintegração, decidiu recuperar o controle direto sobre o território. Em 1926, o Grande Líbano, cujas fronteiras geográficas eram as mesmas do Líbano atual, passou a chamar-se República Libanesa” [Wikipedia].
Oriente Mídia
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