Arábia Saudita é o Estado Islâmico que o mundo tolera
Por Adriana Carranca
O poeta Ashraf Fayadh faz parte de uma geração de artistas que tenta alargar os limites da liberdade de expressão na Arábia Saudita. Ele organizou a primeira exposição de artes de Jedá, foi co-curador da Bienal de Veneza e levou a arte saudita contemporânea a galerias como Tate Modern, de Londres, com o coletivo Edge of Arabia. Há dez dias, Fayadh foi condenado à morte por apostasia — entre as provas apresentadas contra ele estão o fato de usar cabelo comprido e fumar, hábitos considerados anti-islâmicos pelo juiz de Abha, berço da cena artística emergente. Fayadh pode ser decapitado por um carrasco da monarquia.
Fayadh já havia sido condenado por manter no celular fotografias ao lado de mulheres, tiradas em um vernissage no exterior, o que foi classificado como crime cibernético. A pena seria quatro anos de prisão e 800 chibatadas. A Arábia Saudita é o Estado Islâmico que o mundo tolera, o califado amigo.
Entre janeiro e novembro, enquanto as forças de coalizão combatiam o Estado Islâmico (EI) na Síria e no Iraque, pelo menos 152 pessoas foram executadas por Riad, a maioria decapitada em praça pública. É um número recorde de execuções, segundo a Anistia Internacional, determinadas por cortes islâmicas arbitrárias, que negam aos investigados o direito à defesa. Mais da metade foi executada por crimes não reconhecidos por leis internacionais.
Além de apostasia, a pena de morte na Arábia Saudita é aplicada a homossexuais, adúlteros, usuários de drogas e praticantes de bruxaria. Ler revistas e jornais censurados, fotografar prédios oficiais e religiosos ou criticar as autoridades implicam punições severas, assim como o consumo de álcool ou porco, proibidos no Islã.
Enquanto a comunidade internacional reage horrorizada às ações do EI, transmitidas como parte de sua propaganda, o regime saudita pratica quase sem oposição ações tão repugnantes quanto às dos terroristas — talvez ainda mais repulsivas porque cometidas por um Estado legal, que não apenas faz parte do sistema ONU como assumiu em outubro posição de comando no Conselho de Direitos Humanos da organização, em uma decisão escandalosa.
“O petróleo superou os direitos humanos”, disse então Ensaf Haidar, mulher do escritor Raif Badawi, de 31 anos, autor do blog “Liberte os progressistas sauditas”. Em janeiro, Badawi foi açoitado em público em Jedá com 50 das mil chibatadas a que foi condenado em 2012. Ele continua preso.
“O primeiro (EI) corta gargantas, mata, apedreja, decepa mãos, destrói a herança comum da Humanidade e despreza arqueologia, mulheres e não muçulmanos. O último (Arábia Saudita) é mais bem vestido e organizado, mas faz as mesmas coisas”, escreveu o jornalista argelino Kamel Daoud, em artigo no “New York Times”. “Em seu esforço contra o terrorismo, o Ocidente promove a guerra contra um, mas aperta as mãos do outro.”
Maior exportador de petróleo da Opep, a monarquia saudita investiu por quatro décadas algo como US$ 3 bilhões ao ano para propagar o wahhabismo, a vertente mais puritana e radical do Islã, que inspira terroristas em todo o mundo. Os petrodólares também patrocinaram jihadistas como Osama bin Laden e grupos radicais sunitas que inflamaram o Iraque após a queda de Saddam Hussein e lutam na Síria contra o regime de Damasco, ambos aliados aos xiitas de Teerã.
O regime saudita se afastou, oficialmente, do EI após o grupo ameaçar derrubar a monarquia, aliada do Ocidente, e impor seu califa.
Mas, enquanto os clérigos do Judiciário condenam poetas e blogueiros como Fayadh e Badawi, 25% das contas de Twitter que disseminam a mensagem do EI e recrutam combatentes em todo o mundo vêm da Arábia Saudita, segundo a Brookings Institution. Isso embora o rei controle todo o tráfego da internet, redirecionado a um servidor onde um filtro identifica conteúdo “imoral”, anti-Islã ou crítico ao regime, mas não o terrorismo. A monarquia censura livros e a imprensa. Cinemas foram fechados e não há escolas de arte.
Nesse contexto, a cena artística floresce à revelia. O preço pago pelos artistas e ativistas que tentam vencer as amarras do califado saudita, no entanto, é alto. Sua coragem é inspiradora, mas eles estão sendo silenciados e esquecidos nas prisões. Dezenas aguardam no corredor da morte. Merecem a mesma atenção dada aos cartunistas franceses do “Charlie Hebdo”, mortos em janeiro. Em ambos os casos, trata-se de um atentado contra a liberdade de expressão — um praticado por terroristas, o outro pelo Estado que os legitima.
Fonte: O Globo
Plano Brasil
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