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"A guerra é inevitável no Mar do Sul da China", Is war inevitable in the South China
Sea? (2/3)
27/7/2016, Pepe Escobar, RT (em tradução)
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
O Mar do Sul da China é e continuará a ser o ponto geopolítico mais importante de todo o jovem século 21 – muito mais que o Oriente Médio ou as fronteiras ocidentais da Rússia. Ali se disputa nada menos que o futuro da Ásia – e o equilíbrio de poder Oriente-Ocidente.
Para compreender o Grande Quadro, é preciso voltar a 1890, quando Alfred Mahan, então presidente da Academia Naval dos EUA, escreveu o seminal The Influence of Sea Power Upon History, 1660-1783 (ing.). A tese central de Mahan é que os EUA tinham de sair ao mundo à procura de novos mercados, e proteger essas suas novas rotas de comércio com uma rede de bases navais.
Esse é o embrião do Império de Bases dos EUA – que começou de facto depois da guerra EUA-Espanha, há mais de um século, quando os EUA alcançaram o status de potência do Pacífico, ao anexar Filipinas, Hawaii e Guam.
O colonialismo ocidental – norte-americano e europeu – é estritamente responsável pela batalha incendiária por soberania, em curso hoje no Mar do Sul da China. Foi o ocidente que surgiu com a maior parte das fronteiras terrestres – e marítimas – desses estados.
A relação é impressionante. Filipinas e Indonésia foram divididas por Espanha e Portugal em 1529. A divisão entre Malásia e Indonésia deve-se a britânicos e holandeses em 1842. A fronteira entre China e Vietnã foi imposta aos chineses pela França em 1887. As fronteiras filipinas fora decididas por EUA e Espanha em 1898. A fronteira entre Filipinas e Malásia foi traçada por EUA e britânicos em 1930.
Estamos falando de fronteiras entre diferentes possessões coloniais – o que implica problemas intratáveis desde o primeiro dia, problemas que, adiante, foram herdados pelas nações pós-coloniais. E pensar que tudo começou como configuração sem nenhuma rigidez. Os melhores estudos antropológicos (de Bill Solheim, por exemplo) definem as comunidades seminômades que realmente viajavam e comerciavam pelo Mar do Sul da China desde tempos imemoriais, como os Nusantao – palavra austronésia composta de "ilha do sul" e "povo".
Os Nusantao não eram grupo étnico definido, eram, mais, como uma internet marítima. Ao longo dos séculos, tiveram muitos entrepostos chaves, da linha costeira entre o Vietnã central e Hong Kong até o delta do [rio] Mekong. Não eram ligados a qualquer "estado" e a noção de "fronteiras" sequer existia.
Só ao final do século 19 o sistema de Westphalia conseguiu congelar o Mar do Sul da China dentro de uma grade inamovível. O que nos leva ao por que a China é tão sensível a tudo que tenha a ver com as próprias fronteiras; porque elas estão diretamente ligadas ao "século de humilhação" – quando a corrupção interna e a fraqueza da China permitiram que bárbaros ocidentais tomassem posse de terra chinesa.
Tensão na linha dos nove traços
O eminente geógrafo chinês Bai Meichu foi nacionalista feroz, e desenhou sua própria versão do que é conhecido como "Mapa da Humilhação Nacional Chinesa". Em 1936, publicou um mapa que incluía uma linha em forma de "U", que subia do Mar do Sul da China até o Baixio James [ing. James Schoal], que está a 1.500 km ao sul da China, mas a apenas pouco mais de 100 km de Bornéu. Muitos e muitos mapas foram copiados do mapa de Meichu. A maioria deles incluía as Ilhas Spratly, mas não o Baixio James.
O fato crucial é que Bai é o verdadeiro inventou da "linha de nove traços" promovida pelo governo chinês – então ainda não era comunista – ao status de lei em termos de "direitos históricos" da China sobre ilhas no Mar do Sul da China.
Tudo parou quando o Japão invadiu a China em 1937. O Japão havia ocupado Taiwan há muito tempo, em 1895. Imaginem agora os norte-americanos entregando as Filipinas aos japoneses em 1942. Significava virtualmente que toda linha costeira do Mar do Sul passava a ser controlada por um único império, pela primeira vez na história. O Mar do Sul da China havia-se tornado um lago japonês.
China alerta o Japão: fique longe do Mar do Sul da China
Mas não por muito tempo; só até 1945. Os japoneses ocuparam a Ilha Woody nas Paracels e Itu Aba (hoje Taiping) nas Spratlys. Depois do fim da 2ª Guerra Mundial e de os EUA bombardearem o Japão com bombas atômicas, as Filipinas tornaram-se independentes em 1946; e as Spratlys foram imediatamente declaradas território filipino.
Em 1947 os chineses fizeram de tudo para recuperar todas as ilhas Paracels e extraí-las do poder colonial francês. Paralelamente, todas as ilhas no Mar do Sul da China receberam nomes chineses. O Baixio de James foi degradado, de banco de areia para recife (é realmente submerso; mesmo assim, Pequim o vê como ponto extremo sul do território chinês).
Em dezembro de 1947, todas as ilhas foram postas sob controle de Hainan (ela própria uma ilha no sul da China). Vieram novos mapas – baseados no de Meichu –, mas agora com nomes chineses para ilhas (ou recifes ou baixios). O problema chave é que nenhum daqueles mapas explicava o significado dos traços (que hoje são nove, mas na origem eram onze).
Então, em junho de 1947, a República da China reclamou a posse de tudo que estivesse dentro da linha – embora se dissesse dali em diante aberta para negociar fronteiras marítimas definitivas com outras nações. Mas, antes das negociações, nada de fronteiras; assim nasceu a muito criticada e caluniada "ambiguidade estratégica" do Mar do Sul da China que dura até hoje.
A China "Vermelha" adotou todos os mapas – e todas as decisões. Mas a fronteira marítima definitiva entre China e Vietnam, por exemplo, só foi decidida em 1999. Em 2009 a China incluiu um mapa de linha "em forma de U" ou "dos nove traços" numa apresentação à Comissão da ONU para os Limites da Plataforma Continental; foi a primeira aparição oficial da linha em nível internacional.
Não surpreende que outros atores do Sudeste da Ásia tenham-se enfurecido. Foi a culminação da transição milenar, da "internet marítima" de povos seminômades, para o sistema de Westphalia. A "guerra" pós-moderna pelo Mar do Sul da China começou.
Como a ofensiva de charme de Pequim permite que a China resolva a disputa pelo Mar do Sul da China
Em 2013, as Filipinas – empurradas por EUA e Japão – decidiram levar seu caso sobre as Zonas Econômicas Exclusivas ZEEs [ing. Exclusive Economic Zones (EEZs)] no Mar do Sul da China para que fosse julgado pelos termos da Convenção da ONU sobre a Lei do Mar [ing. UN Convention on the Law of the Sea (UNCLOS)]. Os dois países, China e Filipinas ratificaram a convenção UNCLOS. Mas os EUA, não. As Filipinas queriam que a UNCLOS – não "direitos históricos", como os chineses queriam – servisse como critério para decidir o que é ilha, o que é rochedo e que direito tem cada país para declarar direitos territoriais (e, portanto, criar ZEEs) nas águas circundantes.
A própria convenção UNCLOS é resultado de anos de ferozes disputas judiciais. Mesmo assim, nações chaves – dentre as quais os BRICS China, Índia e Brasil, mas também, significativamente, Vietnã e Malásia – vêm lutando para mudar uma provisão crucial daquela convenção, que torna obrigatório que navios de guerra de outros países peçam permissão, antes de navegar por aquelas ZEEs.
E aqui entramos em águas realmente, profundamente turbulentas: a noção de "liberdade de navegação".
Para o império norte-americano, "liberdade de navegação", da Costa Oeste dos EUA à Ásia – por Pacífico, Mar do Sul da China, Estreito de Malacca e Oceano Índico – é questão estritamente subordinada à estratégia militar. Imagine se algum dia alguma ZEE for fechada para a Marinha dos EUA – ou se, a cada viagem, for preciso requerer uma "autorização"; o Império das Bases perderia acesso... às próprias bases.
Mas já não chega?! McCain insiste a favor de maior envolvimento do Pentágono no Mar do Sul da China
Acrescente-se a isso a paranoia que é marca registrada do Pentágono; e se uma "potência hostil" decidir bloquear o comércio global do qual a economia dos EUA depende? (mesmo que já a premissa – que a China considere possível esse movimento – seja, para começar, risível). O Pentágono atualmente trabalha a favor de um programa de Liberdade de Navegação [ing. Freedom of Navigation (FON)]. Para todas as finalidades práticas, é diplomacia de navio-canhoneira para o século 21, tipo aqueles porta-aviões gigantes navegando para lá e para cá no Mar do Sul da China.
O Santo Graal, no que tenha a ver com os dez membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático [ing. Association of Southeast Asian Nations (ASEAN)] é chegar a um Código de Conduta para resolver todos os conflitos marítimos entre Filipinas, Vietnã, Malásia, Brunei e China. É coisa que se arrasta há anos, principalmente porque as Filipinas quiseram 'cercar' os chineses num conjunto de regras cogentes, mas só aceitavam conversar depois que todas as dez nações membros da ASEAN aceitassem todas as tais regras.
A estratégia de Pequim é o oposto: discussões bilaterais para enfatizar sua poderosa alavancagem. Assim tem sido, com a China garantindo para ela o apoio do Cambodia – bem visível no início dessa semana, quando o Cambodia impediu uma condenação contra a China sobre o Mar do Sul da China em importante reunião de cúpula no Laos; China e a ASEAN concordaram com "autocontenção".
Entra em cena a pivotagem de Hillary
Em 2011, o Departamento de Estado dos EUA vivia absolutamente em pânico ante a retirada que o governo Obama planejava, do Iraque e do Afeganistão; o que aconteceria à projeção da superpotência? Mas o pânico acabou em novembro de 2011, quando a então secretária de Estado Hillary Clinton cunhou o então famoso "pivô para a Ásia".
"Seis linhas de ação" foram incorporadas no "pivô". Quatro dessas Clinton furtou de um relatório de 2009 do CSIS,think-tank de Washington: revigorar as alianças; cultivar relações com potências emergentes; desenvolver relações com corpos multilaterais regionais; e trabalhar em íntima conexão com países do Sudeste Asiático, sobre questões econômicas. A esses, Clinton acrescentou mais dois: ampla presença na Ásia, nas bases militares; e promoção da democracia e direitos humanos.
Era bem claro desde o início – e não só no Sul global – que, se lido por baixo do nevoeiro retórico – o dito "pivô" era expressão em código para uma ofensiva militar para conter a China. Ainda mais grave, uma disputa no sudeste asiático em questões de território marítimo se entrecruzava naquele momento com a confrontação global entre o hegemon e um "concorrente".
O que Clinton realmente tinha em mente quando falava de "cultivar relações com potências emergentes" era, em suas próprias palavras, "unir os EUA na modelagem, com participação, numa ordem global e regional baseada em regras". Mais palavras em código significando 'regras cunhadas pelo hegemon' – como em todo o aparelho do consenso de Washington.
Apesar dos alertas de desastre que vêm de Pequim, almirante norte-americano diz que prosseguem as operações no Mar do Sul da China
É fato que não se discute que o Mar do Sul da China é imensamente estratégico, com a hegemonia norte-americana intimamente dependente de reinar sobre os mares (lembrem-se de Mahan). Esse é o núcleo duro da Estratégia Militar Nacional dos EUA. O Mar do Sul da China é elo crucial que liga o Pacífico ao Oceano Índico, ao Golfo Persa e, afinal, à Europa.
Assim afinal se decifra esse "Rosebud" – o "segredo" verdadeiro do Mar do Sul da China, na "ordem regional e global baseada em regras" de Clinton significa, efetivamente, que a China tem de obedecer e manter o Mar do Sul da China aberto à Marinha dos EUA.
É como dizer 'escalada inevitável' nas rotas marítimas. A China, lentamente, mas firmemente, está desenvolvendo um arsenal de armas sofisticadas que, mais dia menos dia, poderão "fechar" o Mar do Sul da China para a Marinha dos EUA, como os serviços do governo dos EUA na Av. Beltway sabem muito bem.
O que torna tudo ainda mais grave é que falamos aí de imperativos irreconciliáveis. Pequim se autocaracteriza como potência anti-imperialista; e isso inclui necessariamente recobrar o controle sobre territórios nacionais usurpados por potências coloniais aliadas, internamente, a chineses traidores (as tais ilhas que o Tribunal de Haia declarou que não passariam de "rochedos" e, até, de "afloramentos" só existentes na maré baixa).
Os EUA, por sua vez, são só e sempre Excepcionalismo e Destino Manifesto. Como hoje estão as coisas, mais do que nas fronteiras leste da Rússia, nos Estados do Báltico ou no "Siriaque", é no Mar do Sul da China que as "regras" do hegemon estão realmente sendo contestadas. As apostas não poderiam ser mais altas. Chegará o dia em que a Marinha dos EUA terá direito de trânsito "negado" no Mar do Sul da China; e será o fim da hegemonia imperial dos EUA.
[Continua: "A guerra no Mar do Sul da China é inevitável?", Is war inevitable in the South China Sea? (2/3), 27/7/2016, Pepe Escobar, RT (em tradução)].
blogdoalok
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