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segunda-feira, 4 de julho de 2016

The Saker - Opções dos EUA na Ucrânia: disparar uma guerra religiosa?


Se se assiste à mídia-empresa imperial não surpreende que as pessoas suponham que nada de dramático esteja acontecendo na Ucrânia e que a crise, fosse como fosse, teria sido basicamente contornada. Ora, e por que não? Houve eleições recentemente e aparentemente transcorreram bem; a Rússia continua a mostrar a má vontade de sempre e ameaça agir contra a Europa, mas afinal Putin foi forçado a libertar a Joana D'Arc ucraniana (codinome Nadezhda Savchenko), e há esperança de que a frente unida de UE e OTAN consiga obrigar Putin a suspender a agressão contra a Ucrânia e cumprir o que ordenam os Acordos de Minsk. Ah! E o Banco Nacional Ucraniano anunciou (anunciou mesmo!) que o país voltou a crescer (0,1%) no primeiro trimestre do ano.

Infelizmente, a desconexão é total entre a realidade e esse tipo de delírio. Sim, houve eleições, mas nada livres; os neonazistas são hoje mais influentes que jamais antes, e o fato de Putin ter concordado com trocar Savchenko por dois cidadãos russos acusados (não estou brincando) de serem operadores da GRU Spetsnaz, foi apenas um jeito esperto de transferir o problema Savchenko, da Rússia, para Poroshenko (e até para Timoshenko). Quanto aos Acordos de Minsk, a Rússia não é signatária, só avalista, como Alemanha e França. Mas, sim, Poroshenko continua no poder, as prateleiras das lojas continuam abastecidas e não aconteceu qualquer nova "Maidan". Externamente, as coisas nem estão tão ruins.


O problema dessa imagem em tons rosados é que ninguém em Langley-CIA acredita realmente nela.

O pessoal de Langley sabe que a economia ucraniana está basicamente morta e desliza, arrastada pela inércia, rumo à falência inevitável. Eles sabem que os serviços públicos são só precariamente mantidos vivos graças a ajuda ocidental, e que nem isso basta para manter a autoridade do governo central, o qual se vai tornando gradualmente irrelevante, substituído por 'autoridades' locais (oligarcas e chefes de gangues). Talvez ainda mais importante, Langley-CIA já perderam qualquer esperança de arrastar a Rússia para esse conflito e veem sinais claros de que o "front europeu" está rachando: França, Itália e outros já dão sinais de descontentamento com a situação atual, como fez a Alemanha (todos esses países têm "Langleys-CIA" próprias, que estão fazendo exatamente as mesmas terríveis previsões). Assim sendo, a grande pergunta para os EUA é "e agora? Fazer o quê?" 

O plano inicial era fazer da Ucrânia uma espécie de "buraco negro" que sugaria todos os recursos econômicos, políticos e militares da Rússia, preferencialmente empurrando a Rússia para que ocupasse o Donbass. Mas os russos recusaram-se a se deixar sugar para o tal "buraco negro" na Ucrânia... E agora é a Europa quem está ameaçada de ser sugada pelo buraco negro ucraniano.

Os norte-americanos provavelmente já perceberam que é tarde demais para tentar juntar os cacos. E estão certos. Embora, em teoria, um esforço conjunto de EUA, UE e Rússia poderia, com alto custo, tentar reconstruir a Ucrânia, as realidades políticas tornaram impossível essa ação conjunta, pelo menos no futuro imediato. Já perceberam também que, cortesia dos palavrões diplomáticos da Sra. Nuland Kagan, a culpa pelo desastre que se vê na Ucrânia recairá sobre os EUA (o que não é justo, os europeus também são culpados como o diabo, mas a vida é assim mesmo). 

E se "perder a Síria" já foi ruim que bastasse, "perder a Ucrânia" causará dano irreparável aos EUA, simplesmente porque desbancará o mito da onipotência dos EUA. É muito grave, especialmente para um Império que basicamente já desistiu de negociações ou diplomacia e ultimamente só distribui ultimatos.

Por tudo isso, quais as opções dos EUA na Ucrânia?

É difícil prever nesse momento o que os EUA tentarão. A prática normal dos EUA nessa situação é simplesmente declarar vitória pelos jornais e TVs, e partir. Funcionaria na África ou na Ásia, mas não é saída para quem esteja enfiado no meio do continente europeu, porque no aspecto Relações Públicas seria desastre completo.

A segunda opção seria basicamente culpar os próprios ucranianos por tudo, e tentar proteger Polônia, Eslováquia, Hungria, Romênia e Moldávia das consequências inevitáveis do caos que se expandiria. O risco aqui, pelo menos do ponto de vista dos EUA, é que Rússia e seus aliados novorrussos estariam mais ou menos soltos para entrar no vácuo criado, algo que os EUA absolutamente não podem aceitar. Os norte-americanos veriam espectros de Zakharchenko em Kiev ou de tumultos pró-Rússia em Odessa, tudo absolutamente inaceitável.

O que nos leva à opção três: resta aos EUA explodir deliberadamente a Ucrânia.

Rostislav Ishchenko, em minha opinião o melhor especialista em Ucrânia do planeta, começou recentemente a alertar que exatamente esse mecanismo já está montado: converter a guerra civil em guerra religiosa, jogando não os latinos  ("Católicos Romanos") contra os Ortodoxos, mas vários grupos Ortodoxos uns contra os outros. Vou explicar.

Como tudo mais naquele país, a história das várias jurisdições Ortodoxas na Ucrânia sempre foi muito complexa, ao longo de séculos. Não posso fazer aqui uma discussão detalhada desse tópico muito interessante, mas quero oferecer alguns indicadores chaves.

Há três principais grupos que se autodenominam a Igreja Ortodoxa Ucraniana "verdadeira" ou "canônica": o maior deles é a Igreja Autônoma Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou (IAOU-PM); a segunda maior é a Igreja Ucraniana Ortodoxa do Patriarcado de Kyivan (IUO-PK); e, finalmente, a Igreja Ucraniana Ortodoxa Autocephalous (IUOA). Claro, as três igrejas pretendem que seriam a única verdadeira representante da Ortodoxia Ucraniana.

[Aviso: Para mim, pessoalmente, nenhuma das três é legítima ou verdadeiramente ortodoxa; não tenho nada apostado, portanto, nessa jogada].

Sobre elas:

A IAOU-PM é a maior das três; se autoadministra, mas não é completamente independente; está em íntima comunhão com todas as demais Igrejas Ortodoxas "oficiais" (quer dizer: "aprovadas pelo Estado") que há por lá. A IAOU-PM é tida pelos nacionalistas como "a mão do Kremlin".

A IUO-PK foi fundada pelo ex-bispo do Patriarcado de Moscou, Filaret Denisenko que fez um "cisma" (separação unilateral, em contradição com os Cânones da Igreja) e separou-se do Patriarcado de Moscou (o que é irônico, porque Filaret foi "representante" (locum tenens) do Patriarca Pimen I do Patriarcado de Moscou, e considerado candidatíssimo a sucedê-lo).Mesmo pelos padrões soviéticos, Filaret sempre foi conhecido como homem excepcionalmente imoral, corrupto, sem princípios, mas o Patriarca de Moscou só o excomungou quando ele rompeu com o Patriarcado de Moscou para criar uma "igreja" só dele.

A IUOA é basicamente criação de 1921 da República Nacional Ucraniana de 1917 (assim como o Patriarcado de Moscou é criação do Estado Bolchevique de 1937) e representa a versão "não soviética" da Cristandade Ucraniana; vários de seus clérigos foram perseguidos pelo estado soviético.

Dois fatores tornam essa situação realmente única:

– Historicamente, o território hoje conhecido como Ucrânia pertenceu predominantemente ao Patriarcado de Constantinopla entre os séculos 10 e 17 (simplificação é grosseira, mas não está errada).

– O moderno Patriarcado de Constantinopla é uma tentativa desesperada para obter relevância (sozinho, é muito pequeno e submetido às autoridades turcas) e suas relações com Moscou são péssimas.

Há portanto risco muito real de que as autoridades em Kiev resolvam declarar a IAOU-PM "igreja de país agressor" e ordenar que todas as paróquias, monastérios e outros prédios que hoje pertencem ao clericato da IAOU-PM sejam obrigatoriamente transferidos ou para a IUO-PK e/ou para a IUOA. É possível também que o Patriarca de Constantinopla decida "ouvir o clamor dos fiéis" e reconheça ou a IUO-PK e/ou a IUOA como parte autônoma do Patriarcado de Constantinopla, tomando assim, basicamente, toda a Ucrânia sob seu controle. E mesmo se as autoridades em Kiev não declarem formalmente a IAOU-PM alvo de pogroms e expropriações ilegais, podem simplesmente olhar noutra direção e deixar que os esquadrões da morte neonazistas (como o infame "Aidar") façam o serviço sujo por elas.

Esse risco é mesmo alto?


Eu diria que sim, é alto. Criar agitação civil é o modo ideal para o regime em Kiev atribuir a culpa de todos os problemas à "mão de Moscou". Europeus sem espinha dorsal sentir-se-ão obrigados a seguir a linha do partido (EUA) e culparão Putin por "insuflar os falantes de russo" na Ucrânia e por "usar a minoria russa pró-Moscou para iniciar nova fase na guerra híbrida contra a Ucrânia soberana". 

Essa confrontação também permitiria que as facções políticas comandadas pelos oligarcas se unissem aos verdadeiros neonazistas que atualmente vestiram o personagem de "oposição moderada". Para os oligarcas, seria a oportunidade perfeita para matar os neonazistas que lhes fazem oposição (como, por exemplo, Savchenko) e culpar "os agentes de Moscou" pelo crime. Por fim, mas não menos importante, a erupção de confrontos entre os ortodoxos seria pretexto perfeito para lançar a SBU, a 'KGB ucraniana', contra qualquer partido de oposição.

Como na guerra contra o Donbass, Putin será alvo de tremenda pressão dentro da Rússia para que "faça alguma coisa sobre isso!". E não faltará quem exija que ele envie tanques russos contra Kiev. Claro que Putin de modo algum concordará com essa loucura, mas a recusa sem dúvida ferirá fundo a imagem dele na opinião pública russa, mais um resultado interessante a favor de inventar-se um conflito entre ortodoxos na Ucrânia.

Por enquanto, o Império está limitando sua guerra de informação anti-Rússia a pequenas ações – por exemplo, banir os atletas russos dos Jogos Olímpicos no Brasil; só noticiar ações de hooligans russos na França; e dar o prêmio Eurovision a um cantor político, o que agride todas regras do concurso. São ações que incomodam, claro, mas de efeito muito limitado: sim, faz a Rússia aparecer como o 'bandido não civilizado" aos olhos dos idiotas que vivam coma a cara colada às telas das TVs no ocidente; mas muitos sabem o que se passa e veem a verdade por trás da encenação, o que acaba por consolidar o apoio que o povo russo dá ao seu presidente Vladimir Putin. Ao fim e ao cabo, de nada serve forçar a opinião pública ocidental contra Putin. O que o Império realmente quer é forçar a opiniãodos russos contra Putin – esse é O Prêmio, pelo menos para aquele pessoal em Langley-CIA.

Nessas circunstâncias, o que poderia ser melhor que pôr (ainda mais!) fogo na Ucrânia, criando uma guerra religiosa, que dará a impressão ao povo russo de que "Putin traiu o povo ortodoxo", e disparar uma guerra religiosa?

Todos conhecemos a frase de um oficial dos EUA no Vietnã, para quem "Foi preciso destruir a cidade, para salvá-la". Há risco real de que os EUA decidam destruir a Ucrânia para "salvá-la". Especialmente se os neoconservadores retomarem total controle do Executivo, num governo de Hillary.

The SakerUnz Review

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu


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