Publicado na Revista da CAASP.
Professor de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo (RS), com atuação no Ministério Público de 1986 a 2014, autor de mais de quarenta livros, Lenio Luiz Streck deu uma longa e elucidativa entrevista a Paulo Henrique Arantes, editor uma revista especializada da área.
Os procuradores da Lava Jato
Polemista aguerrido, Streck envolveu-se, recentemente, numa discussão com o juiz Sérgio Moro em seu Facebook em torno do caso do pecuarista Bumlai.
Eis alguns trechos:
Revista da CAASP – Frase do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal: “O STF é a vanguarda iluminista e impulsionadora da História quando ela emperra”. O senhor concorda com ele?
Lenio Streck – Claro que não concordo. Se isso for verdadeiro, é porque a democracia fracassou. Se o iluminismo brasileiro, ou o progresso brasileiro, depender do Supremo Tribunal, é porque nós chegamos no último grau de apelo para que alguém nos ajude na democracia.
Não posso concordar. O que ele afirma nada mais é do que enfraquecer a própria Constituição, enfraquecer o grau de autonomia do Direito. Significa depender muito mais dos conceitos morais e políticos dos ministros do que daquilo que o Direito, enquanto estrutura, nos diz a partir do pacto constituinte.
A moral está sobrepondo-se ao Direito?
Sim, porque nós não cuidamos do Direito como devíamos ter cuidado. Numa frase repleta de ambiguidades, nós não procedemos direito com o Direito, e fomos dando respostas políticas, morais e econômicas quando a resposta deveria ser jurídica. Assim, fomos deixando que os predadores externos e internos do Direito o fossem enfraquecendo.
No Estado Democrático, o Direito precisa ter um grau de autonomia, e ele tem que construir barreiras contra aquilo que o enfraquece por fora e por dentro. O Direito sofre os ataques da moral – isto é, das apreciações morais, dos moralismos etc. –, da política – todos os dias a política quer mexer no Direito, na Constituição etc., – e da economia – a PEC 241, agora PEC 55 no Senado, é um bom exemplo de predador do Direito.
Será que o Direito tem condições de suportar isso, ou vai-se dizer que não se trata de uma questão jurídica? Esta é a frase de sempre: “isso é uma questão política”, ou “essa é uma questão moral”, e o Direito vai se enfraquecendo.
Ao lado dos predadores exógenos – política, moral e economia –, nós temos os predadores endógenos, internos, que são o poder discricionário dos juízes, o livre convencimento, a livre apreciação da prova, os diversos modos de enfraquecimento da coisa julgada, o uso precário da jurisdição constitucional, os próprios embargos declaratórios – que acabam sendo um remédio contra decisões mal fundamentadas –, o modo como nós fazemos o filtro dos recursos e vamos trabalhando muito mais com efetividades quantitativas em vez de qualitativas. Esse conjunto de elementos vai enfraquecendo internamente o Direito.
Veja como o Direito é complexo. Ele tem que resistir aos ataques externos e aos ataques internos. A questão é saber, passados 28 anos, o que sobrou da Constituição no sentido de resistir. Eu tenho trabalhado muito o conceito de resistência democrática, e estou realizando uma espécie de ortodoxia constitucional: o jurista, necessariamente, tem que apostar com uma visão ortodoxa sobre o Direito, ter a coragem de dizer que algo é jurídico ou não-jurídico, ter a coragem de dizer que Direito não é moral, ter a coragem de dizer que Direito não é política, que Direito não é religião.
O senhor enxerga um movimento orquestrado para desconstruir a Constituição? Se existe tal ação, de que maneira ela se manifesta mais especificamente?
Existe esse movimento, e ele se dá basicamente de dois modos. Um, pelo olhar ideológico de setores que não concordam que a Constituição tenha um caráter compromissório, um caráter dirigente, que diga que o Brasil deve erradicar a pobreza, fazer justiça social. Isso é lei, isso vale, e portanto nós queremos que isso seja cumprido, pelo menos na minha linha ortodoxa constitucional, jurássica. E há setores que nunca concordaram com isso, que sempre disseram que a Constituição é uma carta de intenções e que, portanto, não é uma norma, é longa demais etc.
O Gilberto Bercovitch tem a tese da Constituição invertida – eu até escrevi um artigo sobre isso. Setores da sociedade dizem que a Constituição é dirigente quando lhes interessa para receber fundos públicos. A esses setores a Constituição interessa quando serve para defender monopólios etc., mas para promover distribuição de renda, fazer justiça social, a Constituição deixa de ser dirigente. Esse é um aspecto.
Por outro lado, há um movimento que desde o início da Constituição procura minar o Direito por dentro. Isso não acontece de forma deliberada, mas porque faz parte do modo de proceder do jurista médio brasileiro. Faz parte da tradição jurídica brasileira, que nunca apostou num grau de autonomia que o Direito pudesse ter, porque os setores dominantes sempre fizeram o Direito como queriam.
A Constituição é um marco porque veio resgatar as promessas não cumpridas da modernidade. Isso machucou muita gente, desgostou muitas pessoas. E também o próprio Direito sempre esteve acostumado a lidar com questões interindividuais, como a cultura “manualesca” trata o Direito. Agora, quando o Direito passou a tratar de grandes questões transindividuais, aí os juristas ficaram em pânico.
O ponto central da fragilização da Constituição está na aposta no ativismo judicial. O ativismo nunca é bom para a democracia.
(…)
O que senhor achou das 10 propostas contra corrupção elaboradas pelo Ministério Público, as quais estão sendo apreciadas no Congresso?
Eu fui à Câmara e fiz um depoimento no dia da posse da ministra Carmem Lúcia. Coloquei lá minha posição de contrariedade em relação à maioria das propostas, porque são nitidamente punitivistas, quebram garantias. Por exemplo, a tentativa de enfraquecer o habeas corpus é uma coisa estarrecedora, depois de tudo que a civilização lutou pelo habeas corpus.
Por incrível que pareça, o Ministério Público, como guardião da cidadania, com tudo que seu papel representa… eu fico impressionado com a coragem do Ministério Público de querer enfraquecer o remédio heroico – o habeas corpus é o remédio heroico, “traga-me o corpo”, do Século XIII.
Mas talvez o ponto mais absurdo de todos seja o teste da integridade, que eu chamo de fator minority report, como naquele filme em que o sujeito era punido antes de cometer o crime, porque existia um modo de saber que ele ia cometer um crime.
Além disso, a transformação de alguns crimes em crimes hediondos ou o aumento das penas por corrupção a mais de 20 anos, o dobro do homicídio. Eles estão mais preocupados com a corrupção ou com o patrimônio do que com a vida das pessoas.
Não é papel do Ministério Público fazer propostas anticorrupção do modo como foi feito, isso é papel do Parlamento. Não são proibidas iniciativas populares, mas não me parece que devam ser feitas em conjunto, aproveitando uma certa onda que se criou de ser contra a impunidade. Qualquer pessoa que é perguntada se é a favor da corrupção diz que não, mesmo o corrupto.
Eu penso que algumas das propostas poderiam até ser acatadas em relação ao enriquecimento ilícito, mas não se pode extrapolar as penas nem tirar garantias. Não se joga fora a água suja com a criança dentro. A pior coisa que pode acontecer é alguém achar que, numa concepção moralista, pode fazer uma espécie de limpeza social.
Sempre haverá vícios e sempre haverá virtudes – é a Fábula das Abelhas, de Mandeville. Se as pessoas acham que a sociedade deve ter só virtudes, é bom lembrar dessa fábula.
Eu posso até concordar com a proposta de eugenia cívica, como eu a chamo, de querer saber de antemão se você tem propensão a delinquir, desde que ela seja aplicada para deputados, senadores, ministros do Supremo, ministros do STJ, procuradores-gerais de Justiça, governadores, prefeitos, presidentes da República. Ou isso seria só para a patuleia?
(…)
O senhor considera ético que magistrados estejam diariamente presentes na mídia, comentando todo e qualquer assunto da República e não raro abordando temas que irão julgar?
Nesse ponto, é importante sempre lembrar o ministro Paulo Brossard, para quem o juiz fala nos autos: quando o juiz fala fora dos autos, ele está tentando politizar ou moralizar o Direito, pois se lhe interessasse só o Direito, os autos lhe bastariam.
No fundo, esse hábito fragiliza o Direito, por uma razão simples: quando o cidadão vai ao Judiciário, ele não pergunta o que o juiz pensa sobre aquela causa, ele pergunta o que o Direito diz. A gente só quer saber o que o juiz pensa na estrutura do Direito; aquilo que o juiz pensa pessoalmente sobre a causa não é do interesse de ninguém, só dele mesmo.
Eu escrevi um livro chamado “O que é isto – decido conforme minha consciência?”, dizendo exatamente que os juízes não devem decidir conforme sua consciência. Isso pode parecer quase uma heresia no Brasil, só que se trata de um problema puramente filosófico, é um paradigma ultrapassado. A democracia só foi possível porque nós ultrapassamos a filosofia da consciência. A filosofia nos deu a possibilidade de, intersubjetivamente, avançarmos. Quando um juiz diz “decido conforme minha consciência”, eu não quero: eu quero que ele decida conforme a Constituição e o Direito.
O senhor debateu com o juiz Sergio Moro, num evento do IBCCrim muito repercutido. Qual a profundidade dos argumentos jurídicos do juiz Moro? Desde logo observo que as decisões dele costumam ser confirmadas nas instâncias superiores.
Eu tenho uma boa relação pessoal com o juiz Sérgio Moro, e reputo-o como um bom polemista. O fato de nós não concordarmos sobre algumas coisas não significa que tenhamos de ser inimigos – o Brasil já tem fracionamentos suficientes. Fizemos um debate em alto nível, mesmo tendo posições absolutamente diferentes nas mínimas coisas, e um dos aspectos naquele debate que vale citar foi a cobrança que eu coloquei para comunidade jurídica, mostrando que Sérgio Moro, no fundo, seguia aquilo que a própria comunidade jurídica ajudou a construir.
Há um caldo de cultura no qual Sérgio Moro está inserido. Nenhum juiz é filho de chocadeira, nenhum promotor é filho de chocadeira, nenhum advogado é filho de chocadeira. Nós somos produtos, temos uma linhagem. Em um país que foi tomado por cursinhos de preparação, que não discute questões críticas e que transforma o Direito em algo técnico, de fato está sendo formada uma geração de juristas que lida com questões jurídicas a partir de posicionamentos morais e políticos. O Direito está sendo abandonado, está se tornando uma mera ferramenta, um machado. Tem até uma piada: o machado vai entrando no mato, e uma árvore diz para outra: “não se preocupe, que o cabo é dos nossos”. Ao que árvore mais velha diz: “mas a lâmina, não”.
No Brasil, lamentavelmente, nós adotamos uma profecia do Século XIX, pela qual o Direito é o que os juízes dizem que é. Enquanto nós não nos livrarmos dessa profecia, estaremos sempre fazendo apostas. Nós dependemos dos bons juízes e dos bons promotores. Eu gostaria de depender de um bom Direito e de uma boa Constituição.
(…)
Um exercício de futurologia: qual será o legado da Operação Lava Jato?
Se eu fizer uma análise puramente utilitarista, ou consequencialista, a minha resposta é que o legado será positivo, que foram presas tantas pessoas, que foram recuperados tantos valores etc. Não sei se é possível que quatrocentos e tantos anos de prisão sejam transformados em oito, nove ou 10 anos. Por que uma pena de 20 anos pode se transformar em um ano com tornozeleira?
Você já ouviu, ao longo da Operação Lava Jato, alguém reclamando do acordo que foi feito? Não tem uma linha contra, não tem um recurso, não tem nada, até porque quem deveria reclamar não pode reclamar, pois faz parte do acordo. O Ministério Público não vai reclamar de si mesmo, nem o juiz – esse é ponto.
Agora, se nós olharmos para o lado do Direito, das garantias, aí eu diria que o saldo da Lava Jato não é bom. Não sou só eu que digo: nós estamos produzindo um déficit democrático em termos de garantias processuais. Por exemplo, a própria decisão do Tribunal do Rio Grande do Sul que, ao arquivar um procedimento administrativo contra o juiz Sérgio Moro, disse que vivíamos numa espécie jurisprudência de exceção. Nenhuma democracia convive com Estado de exceção.
Eu tive 27 anos de Ministério Público. Um dia desses, eu fui questionado: “ah, o professor Lenio hoje é advogado; queria ver o que ele fazia quando era procurador”. Aí eu mostrei tudo que fiz, todas as minhas posições, absolutamente garantistas, desde o meu primeiro dia no Ministério Público, em 1986, todas as teses e ações, sempre para preservar as garantias constitucionais. O meu passado e os meus livros falam por mim. Portanto, quando eu estou falando sobre o balanço de uma operação como a Lava Jato, eu não estou dando simplesmente uma opinião como um torcedor faria – eu estou mostrando elementos objetivos que saem da Constituição do Brasil, os quais podem me dizer com segurança onde estão os equívocos. Os tribunais podem até sustentar de modo diferente, mas isso não significa que os juristas brasileiros não possam ter sua opinião.
Eu uso sempre o “fator Julia Roberts”, que é quando a Suprema Corte erra. No filme “O Dossiê Pelicano”, a personagem da atriz Julia Roberts afirma: “a Suprema Corte está errada”. O papel da doutrina no Brasil é doutrinar, é dizer: a Suprema Corte erra, a Suprema Corte acerta, os tribunais erram, os tribunais acertam – esse é o papel da doutrina. A doutrina tem que construir constrangimentos, que eu chamo de constrangimentos epistemológicos, tem que ter coragem de dizer as coisas.
Quanto a essa coisa de os tribunais dizerem o que é o Direito… como resultado disso, boa parcela da doutrina acaba sendo caudatária dos tribunais. Os livros que mais vendem são manuais que simplesmente fazem glosas de ementas jurisprudenciais. Doutrina não é isso – pode até ser isso também, mas não é só isso.
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