John Catalinotto,* Workers World
Há momentos em que o partido revolucionário tem de remodelar suas táticas
Traduzido pelo coletivo da vila vudu
Dia 16 de julho há cem anos, cerca de quatro meses depois de terem deposto o czar russo e quatro meses antes de fazerem a primeira revolução socialista da história, dezenas de milhares de trabalhadores e soldados em Petrogrado (São Petersburgo) empunharam seus rifles e metralhadoras e marcharam para a sede do "Conselho" (soviete de Petrogrado) exigindo que os partidos dos trabalhadores tomassem o poder então em mãos do governo pró-capitalista.
Imagem: Trabalhadores e soldados buscam abrigo – ou tombam – quando atiradores escondidos nos prédios abrem fogo contra manifestantes nos Dias de Julho, em Petrogrado. 17/7/1917, Avenida Nevsky Prospect.
Para fazê-lo, esses trabalhadores e soldados tiveram de desafiar não só o próprio governo – que se recusava a pôr fim à participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial. Tiveram de desafiar também os partidos de trabalhadores e camponeses no próprio Soviete, que se haviam rendido ao governo capitalista. E tiveram de desafiar até o Comitê Central do partido de trabalhadores mais revolucionário que havia no mundo naquele momento – os bolcheviques.
Os líderes bolcheviques haviam proibido as manifestações. Mesmo assim, os trabalhadores da fábrica Putilov e sua Guarda Vermelha armada, os Regimentos de Metralhadoras da guarnição de Petrogrado e outras unidades que haviam feito a revolução de fevereiro e depois aproximaram-se dos bolcheviques; mais os ferozes marinheiros da base militar na ilha próxima de Kronstadt — todos estavam prontos a avançar com suas armas contra o governo.
Pelo menos, era o que queriam fazer. Mas não tinham planos detalhados de como fazer. Estavam em marcha para exigir que o Soviete tomasse o poder, então em mãos de capitalistas. Ou, como um dos milhares de trabalhadores furiosos gritou a um líder do Partido Socialista Revolucionário, Victor Chernov: "Tome o poder, seu filho-da-puta, que o poder está aí na sua frente!"
Esse importante episódio na Revolução Russa, conhecido como os Dias de Julho, é significativo também porque ilustra o desenvolvimento único, não homogêneo, espontâneo e até caótico pelo qual pode passar um processo revolucionário. Nem o melhor partido de trabalhadores que havia no mundo naquele momento, em íntimo contato com a classe que representava, conseguiu controlar as ondas de fluxo e refluxo do combate nas ruas.
A fria avaliação da liderança dos bolcheviques foi que, embora na própria cidade de Petrogrado o partido talvez tivesse apoio suficiente para tomar e conservar o poder, o mesmo não se podia dizer do restante do país. Mesmo assim, tinham de responder ao ímpeto revolucionário ardente de seus apoiadores mais fiéis entre os trabalhadores, os soldados e os marinheiros na cidade e nos arredores de Petrogrado.
Os bolcheviques tiveram mudar de posição no último minuto. Mudaram para não frustrar e desencorajar os próprios apoiadores, e para nãos lhes roubar qualquer esperança ou – ainda mais importante e muito mais grave –, para não os abandonar, desorganizados e vulneráveis ao ataque reacionário.
Fevereiro-março de 1917, a 1ª revolução
Depois do levante no inverno, que derrubou a monarquia e a nobreza russas, dois centros de poder separados substituíram o governo do Czar Nicolau. Um deles foi o Governo Provisório, do qual os partidos pró-capitalistas assumiram a liderança e onde colaboravam com os remanescentes do velho estado czarista — a burocracia, a polícia e os tribunais [sempre os tribunais... (NTs)], e os generais do exército regular. O Governo Provisório atuava como o centro do poder capitalista.
O outro centro foi o Soviete de Petrogrado, corpo de membros eleitos no qual os maiores partidos representavam camponeses, trabalhadores e soldados. Quando o czar foi deposto, nenhum desses partidos de gente pobre, nem os bolcheviques, tinham programa que aspirasse a uma revolução socialista na Rússia. Em junho contudo as manifestações de rua dos bolcheviques já exigiam "Todo o poder aos sovietes!", mas principalmente como agitação, para começar a construir apoios.
O Governo Provisório era formado do velho Parlamento, que não tinha poder algum enquanto existiu a monarquia. O líder do Parlamento era Alexander Kerensky, advogado que se tornou Ministro da Guerra da Rússia. Kerensky enfrentou um grande dilema: ou rompia os elos que o ligavam às massas (que exigiam que a Rússia se afastasse da guerra), ou rompia com os capitalistas e aliados imperialistas da Rússia na França e na Grã-Bretanha — que queriam que a Rússia continuasse lutando contra Alemanha e Áustria-Hungria.
Dia 1º de julho, Kerensky tomou sua decisão. Rompeu com as massas russas, quando ordenou que as tropas russas avançassem contra as linhas austríacas para capturar a cidade de Lvov, onde hoje é a Ucrânia. A grande ofensiva russa foi desintegrada em apenas cinco dias, e colapsou frente à contraofensiva. O movimento custara 400 mil soldados russos mortos.
Esse desastre militar valeu apoio ainda maior dentro do exército para os bolcheviques e o líder deles, V.I. Lênin. Foi o único partido nos sovietes que prometeu repetidas vezes que poria a fim à participação da Rússia na guerra.
A guarnição de Petrogrado, para a qual guerra significava morte certa, explodiu contra a ofensiva de Kerensky. Os trabalhadores da fábrica Putilov de munição também estavam furiosos, armados, organizados e pró-bolcheviques. Os marinheiros de Kronstadt, por sua vez, já estavam prontos desde março, para exigir que o soviete tomasse o poder do Estado e pusesse fim à guerra.
Kronstadt abre o caminho
Raskolnikov (F. F. Ilyin), marinheiro de 25 anos, que era o líder bolchevique em Kronstadt, escreveu em suas memórias que aos olhos da classe capitalista russa: "Kronstadt foi um símbolo de horror selvagem, o demônio encarnado, um aterrorizante espectro da anarquia, pesadelo de que a Comuna de Paris renascia em solo russo." Em contraste, para os trabalhadores, soldados e camponeses "Kronstadt em 1917 foi a cidadela inexpugnável da revolução (...) a vanguarda da revolução."
Raskolnikov acrescentou que o número total de simpatizantes do Partido Bolchevique naquele momento em Kronstadt alcançou 35 mil, com 3 mil membros formais do partido.
A liderança central bolchevique muito frequentemente se viu na posição nada invejável de segurar os marinheiros de Kronstadt até que o resto do país – ou pelo menos o resto de Petrogrado — estivesse pronto.
Mal se consegue imaginar como Raskolnikov sentiu-se quando, dia 16/7, recebeu ordens do comando bolchevique, que o mandavam impedir que os marinheiro de Kronstadt participassem das manifestações em Petrogrado. Pelo outro lado, tinha diante de si milhares de camaradas marinheiros que exigiam que os bolcheviques autorizassem a demonstração e a distribuição de armas. Acrescente-se a isso uns poucos agitadores anarquistas que reclamavam dos bolcheviques ("Vendidos!"), e se pode afinal sentir a frustração dele.
Por mais que acreditasse em disciplina partidária, Raskolnikov contestou diretamente os líderes bolcheviques. Disse-lhes que a manifestação armada seria inevitável. Os bolcheviques que escolhessem, se ficavam contra ou a favor do povo.
Na sede dos bolcheviques – um pequeno palacete onde morara antes uma estrela de balé que fora amante do czar –, o comitê central também estava acuado e parcialmente sitiado pelo Regimento das Metralhadoras, que também exigia autorização para manifestação armada.
Os líderes rediscutiram a primeira decisão, e autorizaram a manifestação (quase se consegue ouvir o suspiro de alívio de Raskolnikov, ao telefone). Mesmo assim tentaram acalmar os ânimos, fazer manifestação pacífica.
Combates de rua
O ponto alto da manifestação foi dia 17 de julho, quando 10 mil marinheiros armados uniram-se à marcha por Petrogrado. Houve combates esporádicos, com reacionários mascarados camuflados nos prédios atiraram contra as massas. No que todos os relatos classificam como completo caos, os manifestantes armados mas não treinados, responderam ao fogo.
No terceiro dia, forças que ainda obedeciam ordens do governo de Kerensky estavam prendendo marinheiros de Kronstadt e líderes bolcheviques. O governo, espertamente, passou a chamar os bolcheviques de "agentes alemães", especialmente Lênin – porque em abril Lênin conseguira que o imperialismo alemão o deixasse viajar da Suíça, num trem blindado, atravessando a Alemanha, até a Rússia.
Os bolcheviques não haviam convocado a manifestação, mas permaneceram nas ruas com as massas, assinaram uma trégua de "cessar-fogo" com o governo e organizaram uma retirada em ordem, quando o governo quebrou o acordo. A maioria dos marinheiros voltou a Kronstadt, os soldados, aos regimentos, e os trabalhadores de Putilov voltaram à fábrica.
Todos os líderes bolcheviques, inclusive Raskolnikov e seu camarada Semyon Roshal de Kronstadt, Leon Trotsky e outros foram presos. Lênin e Zinoviev fugiram para a Finlândia, onde permaneceram na clandestinidade, temendo atentados para assassiná-los. A sede dos bolcheviques foi invadida e saqueada.
O verdadeiro crime dos bolcheviques, claro, nunca foi terem algum dia servido ao Kaiser alemão, mas terem permanecido ao lado dos proletários revolucionários russos, em vez de desertar e abandoná-los.
Um mês mais tarde, outro evento no curso da Revolução Russa reverteu aquela derrota parcial, e a maioria dos líderes bolcheviques foi libertada. Com isso, os bolcheviques tiveram nova grande chance de mostrar, sob condições muito melhores para eles, que qualquer hesitação que tivessem mostrado em julho foi hesitação apenas nas táticas. Meses depois lideraram uma insurreição que criou o primeiro estado operário que o mundo jamais vira e mostraram que revolução bem-sucedida precisa de liderança disciplinada e de povo nas ruas em levante de massas.*****
* Catalinotto escreveu esse artigo com excertos e citações de seu livro "Turn the Guns Around: Mutinies, Soldier Revolts and Revolution" [Quando o Exército faz pleno sentido: motins, revoltas de soldados e revolução] que inclui pesquisas de "Kronstadt and Petrograd in 1917" de Raskolnikov; "História da Revolução Russa" de Leon Trotsky; e "The Russian Revolution 1917" de Nikolai Sukhanov.
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