16/12/2015, Nauman Sadiq,[1] The Vineyard of the Saker
“Religião pode ter sido fator determinante em tempos passados, se tanto; mas a política contemporânea só tem a ver, exclusivamente, com poder e economia: empresas ocidentais governam o mundo; e política e diplomacia existem para proteger o comércio e os negócios de energia do Império-Empresa. Assim, a raiz de todo o mal na política contemporânea é o capitalismo, não alguma religião, que passou a ter papel secundário e às vezes completamente irrelevante, sobretudo nas sociedades ocidentais liberais e seculares.” (…)
“Por trás da ‘Cortina de Ferro’ do isolamento internacional, a China construiu com sucesso sua base manufatureira, distribuindo eficiente e farta formação vocacional e técnica à disciplinada força de trabalho chinesa, e construindo uma infraestrutura industrial e de transporte. A China não permitiu qualquer tipo de importações até 2001, mas, depois de associar-se à Organização Mundial do Trabalho, a China abriu sua política de importação-exportação em bases recíprocas. Por isso, dado que o trabalho é muito mais barato na China que nos seus contrapartes ocidentais, é a China quem, hoje, tem vantagem comparativa sobre o bloco ocidental que os governos chineses souberam explorar adequadamente a favor do interesse nacional do povo chinês.”
O relatório do Parlamento Europeu de julho de 2013[2] identificava as raízes salafistas-wahhabistas do terrorismo global, mas o relatório, convenientemente, absolveu as potências ocidentais e optou por não ver o papel do ocidente, que alimentou o extremismo islamista e o jihadismo violento em todo o mundo islâmico, especialmente quando usou os jihadistas como seus agentes-procuradores durante a Guerra Fria contra a União Soviética; e mesmo hoje, durante a Jihad líbia contra o governo do coronel Gaddafi em 2011 e a Jihad síria contra o regime alawita (xiita) do presidente Assad. É fato incontroverso que a Jihad soviética-afegã liderada pelos EUA é fonte e berço de onde nasceram extremistas como Al Qaeda e Talibã e depois novamente na Líbia e na Síria a partir de 2011, de onde saíram incontáveis grupos de jihadistas islamistas, dos quais o principal é o chamado “Estado Islâmico” (EI).
O papel de pivô que a ideologia salafista-wahhabista teve no processo de radicalização de muçulmanos em todo o mundo é fato estabelecido, apontado até no relatório da UE acima citado. Essa ideologia salafista-wahhabista é mantida com prodigalidade pela Arábia Saudita e os petroxeiques árabes do Golfo Persa desde o embargo do petróleo de 1973, quando o preço do petróleo quadruplicou e aumentou proporcionalmente a contribuição dos xeiques árabes para o “bem-estar espiritual” de muçulmanos em todo o mundo.
Aqueles petroxeiques são impulsionados, por sua vez, desde a Guerra Fria, pelas potências ocidentais. Assim, silogisticamente, a causa raiz do extremismo islamista é a manipulação pelas potências neocoloniais de toda a vida sociopolítica dos árabes especificamente, e de todos os muçulmanos em geral, para que aquelas potências neocoloniais se apropriem dos recursos locais de energia, no contexto do mundo industrializado, insaciável devorador de energia. Essa é a tese principal desse artigo, que discutirei em detalhes nos parágrafos adiante.
Prólogo
Seja ou não seja pacífica, o Islã é apenas uma religião como qualquer outra religião cosmopolita, seja o Cristianismo, o Budismo ou o Hinduísmo. Em vez de adotar abordagem ‘essencialista’, que enfatize as ‘essências’, temos é de considerar a evolução do fenômeno social no próprio contexto histórico. Por exemplo: dizer que os seres humanos seriam maus por ‘natureza’ é abordagem essencialista; deixa de considerar a importância do modo como as pessoas são educadas e ‘treinadas’ para a convivência social.
Os seres humanos só recebem da natureza a ‘inteligência'; não são nem bons nem maus por natureza; e serão ou bons ou maus, por efeito do modo como são educadas e ‘adestradas’ para a vida social. Assim também, declarar que o Islã seria religião retrógrada ou violenta é abordagem ‘essencialista’, que ativamente desconsidera o modo como os ensinamentos do Corão são interpretados pelos fieis de diferentes modos conforme o contexto cultural do interpretador. Por exemplo, muçulmanos ocidentais expatriados criados no ocidente e que foram contagiados por valores ocidentais dão interpretação mais liberal ao um ensinamento do Corão; um muçulmano de classe média urbana em país de maioria muçulmana interpretará de modo mais conservador a mesma passagem do livro santo; e um muçulmano rural tribal, que só conheça o discurso dos clérigos radicais encontrará ali conteúdos que podem fazê-lo mergulhar fundo no extremismo. Trata-se de cultura, não só de religião ou de escrituras ‘em si’.
Além do mais, já disse que o Islã é religião como qualquer outra. Mas alguns neoliberais reducionistas culpam a religião, como instituição e como ideologia por tudo que está errado no mundo. Não estudo muita História porque não passo de humilde aprendiz de política internacional; por isso, talvez, não saberia o que foram as Cruzadas e a Inquisição Espanhola. Pois mesmo que nada saiba, tenho uma intuição visceral de que também esses foram conflitos políticos, travestidos em roupagens ritualísticas religiosas. E também tenho certeza de que todos os conflitos dos séculos 20 e 21 foram e são ou conflitos nacionalistas (tribais); ou seus objetivos foram e são ganhos econômicos ou de poder. Exemplos: 1ª e 2ª Guerras Mundiais; guerras da Coreia e do Vietnã; guerras do Afeganistão e Iraque; e guerras da Líbia e da Síria.
Quando os neoliberais cometem a falácia de culpar a religião como fator fundamental na política nacional e internacional contemporânea, não sei qual a ordem global velha que conjuram na cabeça. Talvez o Sacro Império Romano? Religião pode ter sido fator determinante em tempos passados, se tanto; mas a política contemporânea só tem a ver, exclusivamente, com poder e economia: empresas ocidentais governam o mundo; e política e diplomacia existem para proteger o comércio e os negócios de energia do Império-Empresa. Assim, a raiz de todo o mal na política contemporânea é o capitalismo, não alguma religião, que passou a ter papel secundário e às vezes completamente irrelevante, sobretudo nas sociedades ocidentais liberais e seculares.
Mais diretamente ao ponto: quando os neoliberais culpam a religião por tudo que está errado no mundo, estão de fato rendendo-se a um tipo específico de pensamento infantil: como uma criança que crê que o mundo só possa ser visto do ponto de vista dela mesma; e que todas as demais pessoas pensam exatamente como ela.
Não se espera de ninguém que se ponha dentro dos sapatos de outra pessoa, porque os tamanhos variam. O que se espera é que cada um ponha o outro nos seus próprios sapatos dele/dela, que ele/ela não ignore a educação que tenha recebido e a respectiva visão de mundo; e que, assim, o outro também prescreve para si mesmo um curso de ação futura viável que leve ao bem-estar individual e social.
Todos sabemos que política é exercício coletivo para criar uma matriz social ideal, na qual indivíduos e suas famílias possa viver em paz e com alguma felicidade, e na qual possam realizar o máximo de suas potencialidades inatas.
A mais alta prioridade dos liberais, especialmente da elite liberal privilegiada nos países em desenvolvimento, parece ser criar uma sociedade liberal nos países em desenvolvimento na qual aquela elite e respectivas famílias sintam-se ‘em casa’. Nada tenho contra sociedades liberais, sobretudo se analisadas de um ponto de vista feminista, igualitarista e inclusivo. Mas a realidade em campo nos países em desenvolvimento é muito diferente da realidade do mundo desenvolvido.
A primeira e principal preferência no mundo em desenvolvimento é a liberalização da sociedade; garantir distribuição equitativa de riqueza e crescimento econômico. O ethos e os valores liberais, por importantes que sejam, podem esperar; nossa primeira meta tem de ser criar uma ordem social e econômica justa e igualitária num nível nacional e internacional – só depois de isso feito é que nossos interesses e prioridades convergirão para uma meta única comum de todos.
Se os liberais aceitam ceder no primeiro objetivo de alcançar distribuição equitativa da riqueza, o chão não se abrirá aos pés deles se mostrarem alguma flexibilidade na questão da implantação de valores liberais, que os afetam, mais que qualquer outra coisa, num nível pessoal. Os liberais socialistas liberais dos anos 60s e 70s faziam ainda algum sentido, pelo menos, quando promoviam o liberalismo aliado à promessa de radical redistribuição da riqueza.
Mas os neoliberais do século 21 são ninhada diferente: eles descartam a pobreza abjeta e a muito grave desigualdade na distribuição da riqueza nas nações em desenvolvimento como questões secundárias; e abraçam os valores liberais como sua prioridade total, absoluta, indiscutível.
A principal fonte do extremismo islamista
Se se observa a evolução da religião e da cultura islâmica nos séculos 20 e 21, vê-se que não é o que se possa considerar ‘natural’. Houve mutações deletérias que tiveram impacto negativo nas sociedades islâmicas em todo o mundo. A seleção social (ou condicionamento social) está para as ciências sociais como a seleção natural está para as ciências biológicas: seleciona os traços, normas e valores que mais tragam vantagens à cultura hospedeira. Visto desse ângulo, a diversidade social é qualidade desejável para o avanço de toda a sociedade; porque quando costumes variados e sistemas de valores competem entre uns contra os outros pela hegemonia, a cultura conserva os costumes e valores que considere benéficos e descarta as tradições e hábitos deletérios.
Religião descentralizada e sem hierarquia como o Islã sufista engendra diferentes cepas de crenças e pensamento que competem umas contra as demais por fieis e pela aceitação. Religião muito pesadamente centralizada e com hierarquia formal rígida, por outro lado, depende muito mais da autoridade e do dogma, do que de ter valor ou utilidade para a cultura hospedeira. Religião centralizada é também mais ossificada e menos adaptativa a mudanças, se comparada a uma religião decentralizada.
Os muçulmanos xiitas têm seus imãs e marjahs (autoridades religiosas), mas, sobre o Islã sunita, o que se diz é que desencoraja a autoridade do clero. Nesse sentido, o Islã sunita aproxima-se mais do Protestantismo, em termos teóricos, porque promove uma interpretação individual e pessoal das escrituras e da religião. Pode ser verdade no que tenha a ver com muçulmanos sunitas letrados, mas num plano popular das massas dos países do Terceiro Mundo Islâmico, a Casa de Saud desempenha no Islã o mesmo papel que o Papa desempenha no Catolicismo.
Em virtude da posse física dos lugares sagrados do Islã – Meca e Medina –, os sauditas são os Califas de facto do Islã. O título do rei saudita, Khadim-ul-Haramain-al-Shareefain (Servo da Casa de Deus), faz dele o vice-regente de Deus sobre a Terra. E o título do Califa do Islã não se limita a um estado-nação e gera influência enorme em toda a Comunidade do Islã, a Ummah muçulmana.
O Islã tem sido considerada a religião de mais rápido crescimento nos séculos 20 e 21. Há dois fatores que explicam esse fenômeno atávico da ressurgência islâmica: primeiro, diferente do Cristianismo, que é mais idealista, o Islã é religião mais prática, que não exige que seus seguidores abram mão dos prazeres mundanos, apenas que os mantenham em limites moderados; e, segundo, o Islã, como religião e ideologia, tem os mais ricos financiadores do planeta.
Depois do embargo coletivo do petróleo árabe, de 1973, contra o ocidente, o preço do petróleo quadruplicou; os petroxeiques árabes passaram a ter tanto dinheiro, sem saber o que fazer dele.
Essa é a razão pela qual se vê crescimento exponencial das instituições islâmicas de caridade e das madrassas [escolas religiosas] por todo o mundo, especialmente no mundo islâmico. Apesar de os petroxeiques árabes dos super ricos Arábia-Saudita, Qatar, Kwait e alguns emirados dos Emirados Árabes Unidos patrocinarem em geral o ramo wahhabista-salafista do of Islã, fato é que a diferença entre as numerosas seitas do Islã sunita é mais nominal que substantiva. As instituições de caridade e as madrassas pertencentes a todas as seitas sunitas recebem generoso financiamento dos estados do Golfo e, também de empresários privados estabelecidos no Golfo.
Tendo exposto, embora resumidamente (i) a evidência de que o Islã, como religião, não é diferente de outras religiões cosmopolitas, no que tenha a ver com seus traços intrínsecos; e que o único fato que diferencia o Islã de outras religiões dominantes é a abundância de recursos energéticos na maioria dos países de maioria muçulmana do Golfo Persa e da região do Oriente Médio e Norte da África (OMNA) [ing. Middle East and North Africa (MENA)]; e que (ii) a existência daqueles recursos e o modo como atores globais interessados em explorá-los manipulam a vida sociopolítica dos habitantes daquelas regiões culminaram na emergência do fenômeno do extremismo petroislamista e do jihadismo-takfiri violento, nossa próxima tarefa é examinar a relação simbiótica entre os governantes ilegítimos do Golfo e as potências neocolonialistas.
Política neocolonial global e ordem econômica
Antes de chegarmos ao xis da questão, porém, é útil examinar, embora também só rapidamente, por que é impossível produzir grande mudança fundamental – em nível político, social ou econômico, em nível nacional, sob a ordem política e econômica internacional vigente.
Como todos sabemos, as chamadas “democracias liberais” ocidentais, nem são liberais nem são democracias. O termo correto para o sistema de governo dominante no ocidente é “oligarquia plutocrática”.
São países governados por empresas super ricas, cuja riqueza mede-se em centenas de bilhões de dólares, muito mais que o PIB total de muitas nações em desenvolvimento; e o status dessas corporações multinacionais como atores dominantes nas políticas nacionais e internacional recebe o aval oficial, quando governos ocidentais endossam a prática dos lobbies de grupos de ‘interesses especiais’ ativos nos respectivos Congressos. ‘Interesses especiais’ é eufemismo; são, de fato, ‘interesses empresariais e corporativos’
Sobretudo, dado que os governos ocidentais não são senão bonecos de ventríloquo daqueles interesses empresariais e corporativos nos fóruns de economia e política internacional, o que acontece é que qualquer entidade nacional ou internacional que desafie ou oponha-se à agenda dos supracitados interesses empresariais e corporativos é ou chantageada e coagida a aceitar aquela agenda, ou é marginalizada.
Em 2013, o governo de Manmohan Singh da Índia tinha algumas objeções a abrir ainda mais o país a empresários ocidentais. Imediatamente, Business Roundtable, que congrega informalmente muitas das maiores empresas norte-americanas as quais, juntas, acumulam riqueza líquida de $6 trilhões, organizou reunião com representantes do governo indiano e fez-lhe oferta que não podia ser recusada. Economias em desenvolvimento como a da Índia, estão sempre famintas de Investimento Externo Direto [ing. Foreign Direct Investment (FDI)] para crescer mais; e esse tipo de investimento vem, predominantemente, de empresas ocidentais.
Quando as Business Roundtables ou a Câmera Internacional de Comércio [ing. International Chamber of Commerce (ICC)], que tem sede em Paris formam grupos de pressão e empreendem atividades de “negociação coletiva”, as frágeis economias em desenvolvimento não têm escolha senão seguir o que lhes mandam fazer.
Qualquer “soberania” que garantisse o direito e a liberdade aos estados-nação para que busquem políticas independentes, sobretudo políticas comerciais e econômicas, jamais passou de mito. Assim também, as elites governantes em países em desenvolvimento têm controle total e monopólio sobre políticas domésticas; e assim também as potências neocoloniais e suas corporações multinacionais controlam a política internacional e a ordem econômica global.
Estado que se atreva a transgredir, vira pária, como a Cuba de Castro, o Zimbabwe de Mugabe ou a Coreia do Norte; e mais recentemente o Irã, excluído do sistema econômico global por causa de supostas aspirações nucleares. Sorte do Irã, que possui uma das maiores reservas de petróleo e gás do planeta; não fosse por isso, já seria hoje insolvente. Assim opera o poder do sistema financeiro global, especialmente o setor de bancos, e essa a significação do petrodólar, porque as transações globais de petróleo são denominadas em dólares norte-americanos em todo o mundo, e as maiores bolsas de petróleo também estão instaladas no mundo ocidental.
Há uma precondição essencial na Carta da União Europeia segundo a qual países europeus subdesenvolvidos que se uniram à União Europeia foram autorizados a manter o livre movimento de bens e produtos (livre comércio) sob a precondição recíproca de que os países desenvolvidos mantivessem manter o livre movimento de mão de obra. Traço subjacente óbvio, nessa condição, é o fato de que o livre comércio só beneficia os países que tenham base manufatureira forte; e o livre movimento de trabalhadores só favorece países subdesenvolvidos onde a mão de obra seja barata.
Agora, quando as instituições financeiras internacionais, como FMI e Organização Mundial do Trabalho (OMT), promovem o livre comércio exortando os países desenvolvidos em todo o mundo a reduzir tarifas e subsídios, sem o recíproco livre movimento do trabalho, que interesses essas instituições obram para proteger? Obviamente, essas instituições financeiras globais abraçam os interesses de seus maiores doadores/mantenedores, vale dizer, dos países desenvolvidos.
Alguns fundamentalistas de mercado, que irracionalmente creem no capitalismo de laissez-faire tentam justificar essa prática injusta com a teoria da ‘destruição criativa’ de Schumpeter, segundo a qual o livre comércio entre parceiros desiguais leva à destruição da ordem econômica existente no país hospedeiro e uma subsequente reconfiguração dá origem a uma ordem econômica ‘superior’.
Cada vez que alguém quer introduzir absurdos desse quilate na discussão, a primeira coisa que são obrigados a apagar é o princípio da reciprocidade: quer dizer, se o livre comércio é benéfico para a nascente base industrial de países subdesenvolvidos, então o livre movimento da mão de obra também é benéfico para a força de trabalho dos países desenvolvidos…
Os políticos e planejadores em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos não podem continuar a cair na armadilha desse raciocínio vicioso. É importante que construam políticas que visem a atender aos seus respectivos interesses nacionais. Problema, só, é que os governos do Terceiro Mundo são dependentes dos tubarões emprestadores globais, como FMI e Banco Mundial, motivo pelo qual não podem adotar política econômica e política de comércio independentes.[3]
Do final da 2ª Guerra Mundial, até o início do século 21, as potências neocoloniais exploraram incansavelmente os recursos e o trabalho do Terceiro Mundo. Depois que a China chegou à Organização Mundial do Comércio, em 2001, as coisas mudaram um pouco.
Por trás da ‘Cortina de Ferro’ do isolamento internacional, a China construiu com sucesso sua base manufatureira, distribuindo abundante formação vocacional e técnica à disciplinada força de trabalho chinesa, e construindo uma infraestrutura industrial e de transporte. A China não permitiu qualquer tipo de importações até 2001, mas, depois de associar-se à Organização Mundial do Trabalho, a China abriu sua política de importação-exportação em bases recíprocas. Por isso, dado que o trabalho é muito mais barato na China que nos seus contrapartes ocidentais, é a China quem, hoje, tem vantagem comparativa sobre o bloco ocidental que governos chineses souberam explorar adequadamente a favor do interesse nacional do povo chinês.
Pedir às potências neocoloniais que ajam no interesse do mundo em desenvolvimento é loucura, ingenuidade e pensamento simplório. É como pedir que empresários e donos de fábricas ajam no interesse dos trabalhadores de suas fábricas, por puro altruísmo. Nada acontecerá assim. Os trabalhadores terão de fortalecer suas próprias organizações e sindicatos do trabalho e exigir o que lhes pertence por direito.
Os países em desenvolvimento têm de constituir blocos regionais e acertar as coisas lá mesmo, entre eles. Entende-se, por exemplo, que haja algum atrito se um país se interessa nos negócios de seu vizinho regional (como a Índia assumir interesses nos negócios do Paquistão, ou se o Paquistão desconfia do que se passa no Afeganistão e Irã); essas são preocupações compreensíveis.
Mas que “interesses vitais estratégicos” pode(ria)m ter os EUA no Oriente Médio, a ponto de haver lá 35 mil soldados norte-americanos, em bases que ficam a dezenas de milhares de quilômetros de distância das fronteiras geográficas dos EUA? ‘Imperialismo humanitário’ é golpe. Os únicos interesses ‘vitalmente’ importantes para o império das empresas ocidentais, as chamadas potências neocoloniais, são interesses comerciais e a ambição de garantir acesso a fontes de energia que não existem no ocidente.
Guerra Fria e o surgimento da Jihad islamista
A colusão das potências ocidentais e o relacionamento conflitante com os jihadistas islamistas (os chamados “rebeldes moderados”) na Síria não são os únicos casos desse tipo. As potências ocidentais sempre conservam propositalmente ambíguos esses relacionamentos, para poder ir preenchendo as lacunas conforme mais interesse, caso a caso, à própria diplomacia norte-americana autoindulgente. E também, sempre, para assegurar para eles mesmos uma “negabilidade plausível”.[4]
Do final dos anos 1970s e ao longo dos 80s durante a Guerra Fria, os EUA serviram-se de jihadistas como seus agentes à distância, na guerra contra os soviéticos. A Guerra Fria foi guerra entre o Bloco Capitalista Global e o Bloco Comunista Global, pela dominação global. Os comunistas usaram como seus agentes à distância os vietcongs, para libertar o Vietnã do domínio dos imperialistas. E o Bloco Capitalista Global não teve como resistir, e soçobrou naquela guerra assimétrica guerreada com inteligência.
Mais importante, o Bloco Comunista tinha uma vantagem moral sobre o Bloco Capitalista, no apelo que sempre teve, para as massas, a ideologia marxista e maoísta, igualitarista e revolucionária. Usando a retórica do “Trabalhadores e trabalhadoras de todo o mundo uni-vos!”, os comunistas abriram caminho para levantes de trabalhadores em todos os cantos do mundo; como, diante desse ímpeto, os capitalistas conseguiriam retaliar, contando só com a conversa de “economia que respinga para baixo” [orig. “the trickle-down economics”] e de “American way of life”? Os políticos e estrategistas ocidentais ficaram paralisados ante esse dilema, mas logo apareceram com uma solução: capitalizando as raízes populares religiosas profundas em todo o mundo, encontraram um antídoto igualmente poderosíssimo: a Jihad Islamista, usada como arma das potências ocidentais.
Durante o conflito soviético-afegão, de 1979 a 1988 entre o Bloco Capitalista Global e a Aliança Comunista Global, a Arábia Saudita e as petromonarquias do Golfo Árabe alinharam-se ao lado do Bloco Capitalista. A URSS e os estados da Ásia Central produzem mais energia do que consomem, o que faz deles exportadores líquidos de energia; e o Bloco Capitalista Global é importador líquido de energia. Todos os interesses dos países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) os encaminharam para o lado do Bloco Capitalista.
Hoje, os países BRICS também precisam muito da energia do Oriente Médio, mas esse é desenvolvimento recente. Durante a Guerra Fria, uma aliança com os países ocidentais fazia sentido para os interesses econômicos das petromonarquias do Golfo. Então, os comunistas foram declarados Kafirs (infiéis) e o bloco ocidental capitalista foi sagrado como Ahl-e-Kitaab (Povo do Livro) pelos pregadores salafistas nos estados do Golfo.
Todos os terroristas celebridades cujos nomes a mídia-empresa capitalista nunca se cansa de repetir foram produtos da guerra soviético-afegã: Osama bin Laden, Ayman al Zawahiri, os Haqqanis, os Talibã, os Hekmatyars etc. Mas aquela guerra não ficou adstrita ao Afeganistão; a aliança CCGOTAN da Guerra Fria financiou, treinou e armou jihadistas islamistas em todo os territórios e cantões do oriente Médio.
Ouvem-se desde aqueles anos nomes de jihadistas operantes em regiões tão ‘fora do mapa’ como Uzbequistão e o Norte do Cáucaso. Nessa entrevista de 1998[5], o Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Carter, Zbigniew Brzezinski, confessou que o presidente assinara autorização para ajuda secreta aos Mujahideen afegãos em julho de 1979 (o Exército Soviético só viria a invadir o Afeganistão em dezembro de 1979). Eis um excerto impressionante, daquela entrevista de Brzezinski:
Pergunta: “E o senhor não se arrepende de ter apoiado jihadistas islamistas, de ter armado e assessorado futuros terroristas?”
Brzezinski: “O que é mais importante para a história do mundo? Os Talibã ou o fim do império soviético? Alguns muçulmanos cabeça quente ou a libertação da Europa Central e o fim da guerra fria?”
Apesar da crassa insensibilidade, tem-se de dar crédito a Zbigniew Brzezinski porque, pelo menos, teve colhões para não mentir nem suavizou a verdade. Os hipócritas políticos ocidentais, hoje, vivem de dizer uma coisa aos veículos da mídia-empresa e outra quando estão entre eles.
Mas não se pode esquecer que a entrevista acima foi gravada em 1998, três anos antes do ataque, dia 11/9/2001, às torres gêmeas do WTC. Depois daquele dia, nenhum agente político no ocidente nunca mais teve coragem de falar tão claramente quanto Brzezinski, antes.
A aliança anglo-wahhabista
Todos os conflitos e guerras recentes à parte, a aliança nada santa de anglo-norte-americanos com os salafista-wahhabistas das petromonarquias do Golfo – que chamo de “aliança anglo-wahhabista” –, é muito mais antiga. Os britânicos instigaram o levante na Arábia, ao instigar os xerifes de Meca a se rebelarem contra o Império Otomano durante a 1ª Guerra Mundial. Depois do colapso do Império Otomano, o Império Britânico apoiou o rei Abdul Aziz (Ibn-e-Saud) em sua luta contra os xerifes de Meca (porque estavam cobrando preço alto demais pela lealdade): assim se fez a unificação de toda a Arábia sob a soberania de Ibn e-Saud. O rei Abdul Aziz derrotou os xerifes e unificou seus domínios como Reino da Arábia Saudita em 1932 com apoio dos britânicos.
Mas então a maré do Imperialismo Britânico já estava baixando, e os norte-americanos herdaram as antigas possessões, direitos e riscos do Império Britânico.
Ao final da 2ª Guerra Mundial, dia 14/2/1945, o presidente Franklin D. Roosevelt teve um encontro histórico com o rei Abdul Aziz no Grande Lago Amargo no Canal de Suez, a bordo do USS Quincy, e ali lançou as bases de uma duradoura amizade anglo-wahhabista que persiste até hoje, apesar dos altos e baixos e de alguns tempos difíceis (como logo depois dos ataques de 11/9, quando 15 dos 19 sequestradores envolvidos nos ataques eram cidadãos sauditas). Durante aquela impressionante reunião a bordo do USS Quincy, dentre outras coisas, ficou decidido que se instalaria uma Missão de Treinamento Militar dos EUA [orig. United States Military Training Mission (USMTM)] na Arábia Saudita para “treinar, aconselhar e assistir” as forças armadas da Arábia Saudita.
Além daquela USMTM, a Vinnell Corporation, com sede nos EUA, e que é empresa militar privada e subsidiária da Northrop Grumman, usou mais de mil veteranos da guerra do Vietnã para treinar e equipar os 125 mil guardas da Guarda Nacional Saudita [orig. Saudi Arabian National Guards (SANG)] não submetida à autoridade do ministério saudita da Defesa e que atua como Guarda Pretoriana da Casa de Saud. O relacionamento existente entre a Arab American Petroleum Company (ARAMCO) e a Casa de Saud não é segredo. E a Critical Infrastructure Protection Force [Força de Proteção de Infraestrutura Crítica] cujos soldados contam-se na casa das dezenas de milhares, também é treinada e equipada pelos EUA para proteger a infraestrutura crítica do petróleo saudita ao longo da costa leste do Golfo Persa, onde estão localizadas 90% das reservas sauditas de petróleo. Além disso tudo, os EUA têm outras várias bases aéreas e sistemas de defesa de mísseis atualmente operando nos estados do Golfo e também uma base naval no Bahrain, onde vive estacionada a 5ª Frota da Marinha dos EUA.
O que estou querendo dizer é que, se forem deixadas à própria sorte e aos próprios recursos, as petromonarquias do Golfo não têm capital humano, nem tecnologia militar, nem autoridade moral para governar as massas árabes sempre reprimidas e oprimidas, e não só as massas árabes como, além delas, também as multidões de migrantes africanos e do sul da Ásia que vivem nos estados do Golfo. Um terço da população da Arábia Saudita é constituída de imigrantes; 75% da população dos Emirados Árabes Unidos também é constituída de imigrados de Paquistão, Bangladesh, Índia e Sri Lanka; e todas as demais monarquias do Golfo têm proporção similar de imigrados de países em desenvolvimento; principalmente, diferentes dos imigrantes que chegam aos países ocidentais e podem obter status de cidadãos, os imigrantes no Golfo vivem lá por décadas, às vezes por várias gerações e, mesmo assim, são vistos como estrangeiros sem qualquer direito.
Petroimperialismo e os interesses ocidentais no campo da energia
Questão legítima que surge na mente de leitor curioso é, quase sempre, por que as potências ocidentais apoiam as petromonarquias do Golfo, mesmo sabendo perfeitamente que são elas as responsáveis por alimentar e manter viva a ideologia Jihadista-takfiri em todo o mundo islâmico; não haveria aí uma contradição com o objetivo tantas vezes declarado de eliminar o extremismo islamista e o terrorismo? Quem faça essa pergunta obterá sempre duas respostas diferentes e contraditórias entre elas, dependendo de quem responda.
Se se pergunta a um político ou diplomata ocidental por os países ocidentais têm interesses estratégicos vitais na região do OMNA; nesse caso, estarão falando de muito petróleo e vastas reservas de gás natural e, também, do fato de os xeiques árabes terem substanciais investimentos nas economias ocidentais, em tempos de recessão global e de deslocalização da maior parte das manufaturas para a China. Assim, a defesa dos políticos ocidentais sempre argumenta pelo autointeresse, quer dizer, interesses nacionais ocidentais.
Mas se se faz a mesma pergunta a eleitores dos partidos neoliberais ocidentais, a resposta é praticamente oposta: eles não concordam que as potências ocidentais controlem o Oriente Médio ou a política e economia globais em geral por causa de interesses comerciais ou de energia; eles acreditam que os motivos das potências ocidentais são mais altruístas que egoístas.
Os eleitores e representantes do liberalismo ocidental acreditam, erroneamente, nos conceitos contrafatuais do chamado intervencionismo humanitário e liberal e na responsabilidade de proteger.
Voltando à questão de por que as potências ocidentais apoiam ditadores no Oriente Médio, apesar de saberem perfeitamente bem que são eles os responsáveis por alimentar o jihadismo islamista, e de se é possível que em algum momento futuro deixem de apoiá-los, a resposta sugerirá fortemente que é altamente improvável que deixem de apoiá-los em futuro próximo. As potências ocidentais tornaram-se tão dependentes dos petrodólares árabes, que o mais provável é que se apresentem para fazer qualquer guerra a favor dos tiranos árabes e contra qualquer dos rivais regionais daqueles tiranos.
Atualmente, há duas potências regionais que disputam a dominação no Oriente Médio: Arábia Saudita e Irã. A guerra que se trava na Síria é, basicamente, uma jihad sunita contra o Eixo da Resistência xiita. A aliança xiita é constituída de Irã e Síria –, a Síria governada por governo secular de presidente de origem alawita (xiita), e com a maioria da população síria constituída de muçulmanos sunitas, com apenas 12% de alawitas. E o Hezbollah, que tem base no Líbano, é parte constituinte do Eixo da Resistência que combate contra Israel, constituída de combatentes xiitas. Recentemente o governo de Nouri al Maliki e Haider al Abadi no Iraque, que é governo secular, em país de maioria xiita, formou aliança ainda tênue com o Irã.
Acima de qualquer questão religiosa, a Arábia Saudita rejeita, há muito tempo, qualquer movimento do Irã para participar das questões e assuntos do Oriente Médio, especialmente o apoio que os iranianos sempre deram à causa palestina, aos Houthis no Iêmen, aos xiitas do Bahraini e, mais importante, à significativa e indomável minoria xiita na Província Leste da Arábia Saudita, precisamente onde está 90% do petróleo saudita, ao longo do litoral do Golfo Persa. Como se não bastasse, a Arábia Saudita jamais perdoou os EUA por terem derrubado o governo [secular] do sunita Saddam Hussein no Iraque em 2003, que sempre serviu como muralha de proteção contra a influência do aiatolá Khomeini no Oriente Médio, graças às proezas militares de Saddam.
No início dos movimentos da chamada ‘primavera árabe’, em 2011, a Arábia Saudita aproveitou a chance e militarizou os protestos inicialmente democráticos e pacíficos que surgiram na Síria, com a ajuda de aliados sunitas – as petromonarquias do Golfo, Qatar e Emirados Árabes Unidos, além de Jordânia e Turquia (todos regimes sunitas) contra o regime secular de Bashar al Assad (xiita alawita).
A questão, então, é por que as potências ocidentais optaram pela aliança sunita, contra o eixo da Resistência xiita? Exclusivamente porque os governos Assad têm longa história de hostilidades contra o ocidente; construíram relacionamento de trabalho muito próximo com a União Soviética e até hoje abrigam uma instalação naval russa em Tartus; e seu aliado no Líbano, o Hezbollah, foi-se constituindo, ao longo dos anos, como a maior ameaça individualmente considerada à segurança regional de Israel. Por outro lado, todos os supracitados estados sunitas sempre foram firmes aliados das potências ocidentais e de Israel. Que ninguém se deixe enganar pela encenação feita para os veículos da imprensa-empresa: todos os estados árabes sunitas acima listados sempre estiveram no mesmo barco que Israel, sempre aliados de Israel, como o ocidente, contra o governo sírio.
Hipoteticamente falando, se as potências ocidentais não se tivessem aliado à ignóbil Jihad síria, que só até aqui já fez 250 mil mortos e milhões de refugiados sírios, qual seria um curso adequado de ação para as monarquias do Golfo, Turquia e Jordânia, se não se tivessem posto a insuflar os conflitos e a guerra na Síria? É questão de vontade política e de paz. Onde haja vontade política e de paz, sempre há vários modos para lidar com qualquer problema. Mas, depois do que aconteceu no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na Síria, só um neoliberal autista prescreveria intervenção militar do ocidente, hoje, pelo mundo, onde quer que fosse.
O caso é que, se a intervenção militar não está sobre a mesa, haverá alguma alternativa viável para impor solução justa e forçar os estados a respeitar princípios morais na política internacional? Sim, há.
As sanções econômicas paralisantes aplicadas ao Irã mas contra terceiros estados nos últimos anos, podem não ter alcançado grandes resultados, mas serviram para expor o gigantesco poder das instituições financeiras ocidentais e do petrodólar como moeda global de reserva, e poder que se exerce sobre todo o sistema financeiro global. É preciso ter em mente que as negociações nucleares iranianas trataram tanto do programa nuclear iraniano quanto do programa de mísseis balísticos do Irã, que é muito maior como “ameaça convencional” às petromonarquias do Golfo logo aí, na outra ‘margem’ do Golfo Persa.
Apesar de as sanções serem injustas, Irã sentiu tão gravemente a pressão, que permaneceu engajado durante anos, naquelas negociações que não avançavam, até que, finalmente, a questão foi decidida amigavelmente, na forma do acordo sobre o programa nuclear do Irã, de abril de 2015. Porém, o efeito sobre a economia do Irã daquelas sanções “contra terceiros” foi tão terrível que, não fossem as reservas descomunais de petróleo e gás do país, e alguma ajuda de russos, chineses e turcos que ajudaram com compras ilegais de petróleo iraniano, o país teria com certeza quebrado, por causa das sanções.
O que estou querendo dizer é que há, sim, meios, para ‘dobrar’ as petromonarquias do Golfo e fazê-las promover reformas democráticas e pararem de patrocinar ensandecidamente os grupos do terror Takfiri-jihadistas em todo o mundo islamista, desde que haja corte decente de arbitragem internacional.
Mas há pelo menos uma dificuldade: só o Irã tem 160 bilhões comprovados de petróleo cru, e produção de cerca de 4 milhões de barris/dia. Pelo outro lado, as petromonarquias do Golfo Persa são, de fato, três estados ricos em petróleo: a Arábia Saudita com seus 265 bilhões de reservas comprovadas e produção de 10 milhões de barris/dia de cru; e os Emirados Árabes e o Kuwait com 200 bilhões de barris (100 milhões cada) de reservas comprovadas e 6 milhões de barris dia de produção; juntos, são 465 bilhões de barris, quase 1/3 dos 1,477 trilhão de barris dia das reservas mundiais comprovadas; e se se acrescenta o Qatar, onde não há petróleo nessa quantidade, mas há reservas importantes de gás natural… será preciso encontrar árbitro muito, muito, muito profundamente moral, capaz de aplicar sanções a essa gente e fazê-las cumprir.
Assim sendo, mesmo que aplicar sanções às petromonarquias do Golfo soe como boa ideia, mas só no papel, é importante não esquecer que, além de tudo mais, a relação entre as petromonarquias e o mundo industrializado é relação de consumidor-fornecedor: os estados do árabes do Golfo são fornecedores de energia; o mundo industrializado é seu consumidor. Claro, portanto, que as potências ocidentais não podem aplicar sanções aos seus próprios fornecedores de energia e principais investidores. Até hoje, verdade seja dita, foram as petromonarquias do Golfo que, no passado, sancionaram as potências ocidentais, quando impuseram um embargo de petróleo, em 1973, depois da guerra árabes-israelenses. Aquele embargo do petróleo em 1973, que os árabes aplicaram ao ocidente, durou apenas seis meses, mas teve efeito tão profundo na psique e na estratégia subsequente das potências ocidentais, que, depois do embargo, o preço do cru no mercado internacional quadruplicou; os EUA impuseram uma proibição de qualquer exportação de petróleo produzido em território norte-americano, vigente até hoje; e os EUA passaram a manter uma reserva estratégica de petróleo suficiente para suprir dois meses das necessidades totais de energia para finalidades militares (combustível para os jatos e gasolina e diesel para os transportadores blindados de soldados, tanques de combate e navios de guerra).
Recentemente, circularam pela mídia rumores sobre uma “revolução do petróleo de xisto”.[6] Mas a revolução ‘do xisto’, seja o que for, é revolução do gás natural: aumentou em 30% s os recursos de gás natural “provavelmente recuperável”. O petróleo ‘de xisto’, por sua vez, refere-se a dois tipos muito diferentes de recurso energético: um, o querogênio sólido, do qual se encontraram recursos substanciais nas formações do Rio Verde, nos EUA; mas a extração de cru líquido, de querogênio sólido é tão comp0lexa que é economicamente inviável e assim continuará pelos próximos 100 anos; dois, o petróleo que exista, bloqueado pelo xisto; esse é um recurso viável de energia, mas as reservas são tão pequenas, cerca de 4 bilhões de barris no Texas e North Dakota, que estarão exauridas em poucos anos.
Embora as areias petrolíferas canadenses e o petróleo pesado venezuelano sejam recursos energéticos ambientalmente poluentes, mesmo assim são fontes economicamente viáveis de petróleo cru. Mais que as dimensões da reserva de petróleo, porém, é o custo da extração do barril de petróleo que determina os lucros das multinacionais petroleiras. E, aí, o cru do Golfo Persa é o mais lucrativo.
Interessante também que, quanto à suposta independência dos EUA depois da chamada “Revolução do Xisto”, os EUA produziram 11 milhões de barris/dia de petróleo cru no primeiro trimestre de 2014; quer dizer, mais que o que produzem Arábia Saudita e Rússia, cada uma delas produtora de cerca de 10 milhões de barris/dia; mas os EUA mesmo assim importaram 7,5 milhões de barris/dia no mesmo período de tempo, quer dizer, mais do que, somado, tudo que França e Grã-Bretanha importaram no mesmo período.
Mais do que o volume total da produção de petróleo, é o volume que um país produtor exporta de petróleo, o que determina que lugar aquele país ocupará na “hierarquia do petróleo”. E, nisso, as petromonarquias do Golfo ocupam a parte superior da pirâmide.
Conclusão
Acredita-se, em geral, que o Islã político seria o precursor do extremismo e do jihadismo islamistas, mas há dois tipos distintos e separados de Islã político: (i) o Islã político despótico da variedade que prospera no Golfo; e (ii), o Islã político democrático da variedade turca e da Fraternidade Muçulmana. A FM jamais governou o Egito senão por apenas um ano, e não faz sentido algum tirar qualquer conclusão de evento de tão curta duração histórica. O modelo de Islã político turco, frequentemente chamado “modelo turco” [que nada tem a ver com o ‘modelo’ Erdogan (NTs)], muito deve, sim, ser divulgado para o mundo islâmico.
Compreendo perfeitamente que o Islã político em todas as modalidades e formatos e manifestações seja anátema para os liberais, mas é a realidade em campo do mundo islamista. As ditaduras liberais, não importa o quando possam ser consideradas benévolas, jamais funcionaram bem no passado – e continuarão sem funcionar também no futuro.
A mola propulsora do extremismo e da militância islamista extremista não é o Islã moderado e democrático. Afinal, por que as pessoas seriam empurradas para a violência, se puderem escolher livremente os próprios governantes?
A mola propulsora da militância islamista violenta é o Islã político e despótico do tipo que prospera no Golfo. As potências ocidentais sabem perfeitamente disso. Assim sendo, por que escolhem apoiar as mesmas forças que gestaram e nutrem o jihadismo violento e o terrorismo, ao mesmo tempo em que juram que estariam lutando para exterminar o jihadismo violento e a militância extremista?
A resposta é simples: é assim, porque sempre foi princípio político imutável das potências ocidentais promover a ‘estabilidade’ no Oriente Médio. Ninguém jamais falou de promover por lá alguma democracia representativa. Aliás, longe disso!
As potências ocidentais sabem perfeitamente e há muito tempo, que o sentimento dominante no mundo muçulmano é de firme oposição a qualquer presença militar ocidental, e respectiva interferência, na região do Oriente Médio. Além do mais, os ‘políticos’ ocidentais sempre preferem negociar suas políticas com pequenos grupos de ‘homens fortes’ no Oriente Médio, em vez de cultivar qualquer tipo de relacionamento complexo e incerto, em plano popular. É visão sem dúvida míope, abordagem viciosa e militantemente antidemocrática, mas é essa abordagem que políticos e estrategistas e ‘especialistas’ midiáticos chamam de “abordagem pragmática”. *****
[1] Nauman Sadiq é advogado, blogueiro e analista geopolítico com base em Islamabad e interesse particular na política das regiões do Afeganistão-Paquistão e OMNA [Oriente Médio e Norte da África, ing. MENA], guerras de energia e petroimperialismo.
[2] “European parliament identifies Wahhabi and Salafi roots of global terrorism” [Parlamento europeu identifica raízes wahhabistas e salafistas do terrorismo global (ing.)] http://www.dawn.com/news/1029713
[3] Vale a pena registrar, porque é muito significativo hoje, em 2015, que desde 2003 o Brasil nunca mais recorreu a empréstimos do FMI; e que, em 2005, na gestão do ministro Palocci no Ministério da Fazenda do governo do presidente Lula, o país pagou todas as dívidas anteriores e tornou-se credor do FMI (mais sobre isso em Exame, 10/2/2005) [NTs].
[4] No original “plausible deniability” (aprox. “negabilidade plausível”, i.e., traço que define o pode ser negado de modo crível): diz-se de acusação que não possa ser provada, e cuja negação possa ser aceita. No jargão corrente das comunidades de espionagem, a expressão tem sido usada nos casos em que a ação é premeditada especificamente para não deixar pistas ou rastros. Exemplos de casos em que a negabilidade (nem sempre plausível) pode vir a beneficiar criminosos são, por exemplo, meios de tortura como descargas elétricas e quase-afogamento, que não deixam marcas no corpo, o que impede que se comprove a tortura; chantagem, ameaças e intimidação de jornalistas e testemunhas também são meios com alta “negabilidade”, dentre outros [NTs].
[5] http://www.counterpunch.org/1998/01/15/how-jimmy-carter-and-i-started-the-mujahideen/
[6] http://www.thepetroleodrum.com/node/9753
Oriente Mídia
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