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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Tentar encurralar os russos é arriscar-se à III Guerra Mundial


11/12/2015, Alastair Crooke, 
Conflicts Forum, Consortium News

Todos nós conhecemos a narrativa na qual nós (o ocidente) estamos sitiados. É a narrativa da Guerra Fria: EUA contra o “Império do Mal”. E, como o professor Ira Chernus escreveu, dado que nós somos “humanos” e eles (a URSS ou, hoje, o ISIS) não são, continuamos a ter de ser o oposto polar deles.

“Se eles são o mal absoluto, temos de ser o oposto absoluto. É o velho conto do apocalipse: o povo de Deus versus Satã. E esse conto assegura que jamais teremos de admitir qualquer conexão que faça algum sentido, com o inimigo.” É a base da autoproclamação, por EUA e Europa, ao mundo, de que são os “líderes”, “excepcionais”.

E “enterrada sob o pressuposto de que o inimigo não é em nenhum sentido, humano como nós, aí já está uma absolvição preventiva por qualquer participação que possamos ter tido no gerar ou no contribuir para a geração e a disseminação do mal. Como poderíamos ter fertilizado o solo para o mal absoluto ou ter alguma responsabilidade no sucesso do mal absoluto? Esse é um dos postulados básicos das guerras contra o mal: o povo de Deus tem de ser inocente,” (e não há mediação possível onde haja o mal, porque ninguém de modo algum poderia dialogar com o mal).

Os ocidentais podemos pensar em nós mesmos como racionalistas e (na maioria) seculares, mas os modos cristãos de conceitualizar o mundo ainda permeiam a política externa contemporânea.


É essa narrativa da Guerra Fria da era Reagan, com seus correlatos de que os EUA simplesmente demoliram o Império Soviético com força militar e – igualmente importantes –, com “pressões” financeiras, e, tudo isso, sem jamais ter feito qualquer concessão ao inimigo.

O que tantas vezes se esquece é como os neoconservadores de Bush deram seu ‘empurrão’ a essa narrativa para o Oriente Médio, escalando secularistas nacionais árabes e ba’athistas como encarnações de “Satã”: David Wurmser advogava em 1996, “que se apressasse o colapso caótico” do nacionalismo árabe secular em geral, e do baathismo em particular. Concordou com o rei Hussein da Jordânia, para quem “o fenômeno do baathismo” sempre foi, desde o surgimento, “agente de forças estrangeiras, a saber, da política soviética.”

Sobretudo, além de serem agentes do socialismo, esses estados opunham-se também a Israel. Assim, sob o princípio segundo o qual se esses eram o inimigo, então o inimigo do meu inimigo (os reis, emires e monarcas do Oriente Médio) tornaram-se amigos dos neoconservadores de Bush. E assim persistem até hoje – não importa o quanto seus interesses divirjam hoje dos interesses dos EUA.

O problema, como o professor Steve Cohen, o mais destacado especialista em Rússia nos EUA, lamenta, é que é essa a narrativa que impediu os EUA de alcançar qualquer real habilidade para encontrar um modus vivendi com a Rússia, que os dois lados aceitassem – e de que os EUA tanto precisam se é que querem mesmo tratar com seriedade o fenômeno do jihadismo wahhabista (ou resolver o conflito sírio).

Além disso, a “narrativa da Guerra Fria” simplesmente não reflete a história; em vez de refletir, a narrativa apaga a história: assim somos privados da capacidade para realmente compreender o “tirano cruel e insensível” – seja o presidente (russo) Vladimir Putin ou presidente (ba’athista) Bashar al-Assad –, porque, simplesmente, ignoramos a história verdadeira de como cada estado chegou a ser o que é; e a nossa participação [dos EUA] em cada estado ter-se tornado o que se tornou.

Verdade é que o estado, ou seus líderes, muito frequentemente não são, absolutamente não, o que pensamos que fossem. Cohen explica:

“A chance de uma parceria estratégica durável entre Washington-Moscou foi perdida nos anos 1990s, depois do fim da União Soviética. Na verdade começou a ser perdida antes, porque foram [o presidente Ronald] Reagan e [o líder soviético Mikhail] Gorbachev que nos deram a oportunidade para uma parceria estratégica entre 1985-89.

“E com absoluta certeza acabou no governo Clinton, e não acabou em Moscou. Acabou em Washington – foi desperdiçada e perdida em Washington. E foi tão gravemente perdida que hoje, e já, no mínimo há vários anos (em minha opinião desde a guerra na Geórgia em 2008), vivemos literalmente numa nova Guerra Fria com a Rússia.

“Muita gente na política e na mídia-empresa não quer aceitar essas denominações, porque, se aceitam que ‘Sim, estamos numa Guerra Fria’, ficam obrigados a explicar o que fizeram durante os últimos 20 anos. Então, se põem a repetir sempre que ‘Não, não é uma Guerra Fria’.

“Meu outro ponto é o seguinte. Essa nova Guerra Fria tem todo o potencial para ser ainda mais perigosa que a dos últimos 40 anos, por várias razões. Em primeiro lugar, pensem. O epicentro da primeira Guerra Fria era Berlin, não era perto da Rússia. Havia vasta zona de amortecimento entre a Rússia e o ocidente na Europa Oriental.

“Hoje, o epicentro é na Ucrânia, literalmente nas fronteiras da Rússia. Foi o conflito ucraniano que disparou a atual Guerra Fria, e a Ucrânia lá permanece, como bomba-relógio. O confronto de hoje não está só nas fronteiras da Rússia, mas no próprio coração da ‘civilização eslava’ russo-ucraniana. É guerra civil tão profunda quanto, em alguns sentidos, a Guerra Civil nos EUA.”
Cohen continuou:

“Meu ponto seguinte é ainda pior – Vocês hão de lembrar que, depois da Crise dos Mísseis Cubanos, Washington e Moscou desenvolveram algumas regras mútuas de conduta. Os dois lados perceberam o quão perigosamente próximos haviam estado de uma guerra nuclear, e adotaram “nãos-e-nãos”, estivessem formalizados em tratados ou só informalmente, em acertos não oficiais. Cada lado ficou sabendo exatamente quais eram as linhas vermelhas do outro lado. Os dois lados passavam às vezes de um lado para o outro das tais linhas vermelhas, mas imediatamente recuavam, porque havia um entendimento mútuo de que, sim, havia linhas vermelhas.

“HOJE NÃO HÁ LINHAS VERMELHAS. Uma das coisas que o presidente Putin e seu predecessor o ex-presidente Medvedev viviam dizendo a Washington é: ‘Vocês estão cruzando nossas Linhas Vermelhas’. E Washington dizia e continua a dizer ‘Vocês não têm linhas vermelhas. Só nós temos linhas vermelhas e nós podemos ter todas as bases militares que quisermos em torno das fronteiras de vocês, mas vocês não podem ter bases no Canadá ou no México. As linhas vermelhas de vocês não existem.’ Quero dizer: vê-se claramente que hoje já não há regras de conduta fixadas por acordo mútuo.

“Outro ponto importante: Hoje não há absolutamente, de modo algum, qualquer força política ou movimento organizado anti-Guerra Fria ou pró-détente, nos EUA – nem em nossos partidos políticos, nem na Casa Branca, nem no Departamento de Estado, nem na grande mídia-empresa, nem nas universidades ou em think-tanks. (…) Nada disso existe hoje (…).

“Meu ponto seguinte é uma pergunta: Quem é responsável por essa nova Guerra Fria? Não pergunto isso porque queira apontar dedo acusatório a alguém. A posição do atualestablishment de mídia-empresa política nos EUA é que essa nova Guerra Fria seria integralmente culpa de Putin – toda ela, tudo. Nós nos EUA não fizemos nada errado. Em todos os estágios somos virtuosos e sábios, e Putin foi agressivo e homem mau. Assim sendo, o que teríamos a repensar? Putin é que tem de repensar tudo, não nós.”

Essas duas narrativas, a narrativa da Guerra Fria e a subsequente ‘divulgação’ que os neoconservadores lhe deram: a saber, a formulação de Bill Kristol (em 2002) segundo a qual, precisamente por causa de sua ‘vitória’ na Guerra Fria, os EUA podiam e deviam converter-se no ‘hegemon benevolente global’, garantindo e sustentando a nova ordem global de autoria dos EUA – ‘não se pode fazer omelete sem quebrar os ovos’ – converge e conflita na Síria, nas pessoas do presidente Assad e do presidente Putin.

O presidente Obama não é neoconservador, mas está limitado pelo legado do hegemon global, que ele tem de sustentar, ou será denunciado como o arquiacelerador do declínio dos EUA. E o presidente também está cercado por divulgadores da R2P(“responsabilidade de proteger”), como Samantha Power, que parece ter convencido o presidente de que a saída do “tirano” Assad ferirá de morte e levará ao colapso o balão do jihadismo wahhabista, permitindo assim que jihadistas ‘moderados’ como o Ahrar al-Sham deem afinal cabo dos retalhos murchos do balão ISIS que terá sido furado.

Na prática, uma saída forçada do presidente Assad só fará dar mais poder ao ISIS, não o fará explodir, e as consequências varrerão como raios todo o Oriente Médio – e além dali. O presidente Obama talvez compreenda privadamente a natureza dos perigos da revolução cultural wahhabista, mas parece não conseguir livrar-se da convicção de que tudo mudaria se, apenas, o presidente Assad deixasse o governo.

Isso, precisamente, era o que os Estados do Golfo diziam sobre o primeiro-ministro Nouri al-Maliki no Iraque. Foi-se ele (por enquanto), mas… o que mudou? O ISIS fortaleceu-se.

Claro que se se pensa no ISIS como o mal, o mal pelo mal em si mesmo, propenso ao massacre mais total, mais sem sentido, “que tarefa realmente idiota seria, obviamente, pensar sobre as reais motivações do inimigo. Afinal, para fazê-lo, seria preciso ameaçá-los no plano humano, nos seus objetivos humanos nascidos da história. “Claro” –continua o Professor Chernus,
“isso significa que, pensemos o que for de suas ações, nós sempre ignoramos a montanha de provas que há de que os combatentes do Estado Islâmico podem ser mais humanos ou ter motivações mais compreensíveis.”

É bem evidente que o ISIS e outras forças do Califato têm muito claras motivações humanas e objetivos políticos claramente articulados, e nada disso tem qualquer coisa a ver com o tipo de ‘estado sírio’ que os EUA dizem que querem para a Síria. Isso, precisamente, reflete o perigo de se deixar fazer refém de uma determinada narrativa, em vez de examinar mais criticamente o quadro conceitual prevalecente.[1]

Os EUA estão distantes demais da Síria e do Oriente Médio e, como observa o professor Stephen Cohen, “hoje, infelizmente, os relatos parecem indicar que a Casa Branca e o Departamento de Estado pensam só em reagir contra as ações da Rússia na Síria. Estão preocupados, como se lê, por a Rússia estar conseguindo abalar a liderança dos EUA no mundo.”

É o mesmo meme da insegurança nacional perpétua, de perpétuos medos norte-americanos, de se os EUA conseguirão aguentar os desafios à sua dominação sobre o mundo, sugere o professor Chernus.

Mas a Europa não está “muito distante”, está ali, junto à porta da Síria. Também é vizinha da Rússia. E por isso mesmo vale muito a pena considerar o último ponto da argumentação do professor Cohen: a evidência de que Washington parece pouco inclinada a ‘permitir’ que a Rússia dê qualquer passo na direção de melhorar a própria posição na Europa ou no mundo não ocidental, mediante as iniciativas russas para derrotar estrategicamente o jihadismo wahhabista na Síria, não é só brincar com fogo dentro do Oriente Médio. Esse movimento de Washington é também brincar com o fogo de um perigo muito maior: brincar com fogo nessas duas frentes ao mesmo tempo parece extraordinariamente imprudente.

Cohen, novamente:

“A ideia falsa [já fincou raízes] de que a ameaça nuclear teria terminado, quando terminou a União Soviética: Na verdade, a ameaça nuclear diversificou-se e tornou-se mais difícil. Aí está algo que a elite política esqueceu. Mais um desserviço do governo Clinton (e, em certa medida, também do primeiro presidente Bush na campanha de reeleição), dizendo que os perigos nucleares da velha Guerra Fria já não existiriam depois de 1991. A verdade é que a ameaça nuclear aumentou, seja por acidente ou por falta de atenção, e é hoje mais perigosa do que jamais antes.”

Com a Europa tornando-se cúmplice dos EUA no processo de aumentar as pressões contra a Rússia na Síria – economicamente, pelas sanções e outras medidas financeiras; na Ucrânia e na Crimeia; e arrastando Montenegro, Geórgia e o Báltico para a OTAN –, parece que nos estamos enredando no paradoxo segundo o qual quanto mais a Rússia dedica-se firmemente a evitar a guerra, mais todos andamos diretamente rumo à guerra.

Os chamamentos russos, que procuram a cooperação dos estados ocidentais na luta contra a praga do ISIS; as respostas dos russos, sempre brilhantemente construídas para as mais terríveis provocações (como a emboscada que derrubou seu bombardeio SU-24 na Síria); e a retórica sempre calma do presidente Putin… tudo isso está sendo usado por Washington e Londres para pintar a Rússia como se não passasse de um “tigre de papel”, que não se precisa nem respeitar nem temer.

Em resumo, o ocidente só está oferecendo à Rússia uma escolha binária: ou os russos ajoelham-se ante o hegemon “benevolente”, ou preparem-se para a guerra. *****


[1] Precisamente o que o presidente Putin fez e ensinou a fazer, no discurso à 70ª Assembleia Geral da ONU:
“Não duvidem: os senhores estão lidando com gente dura e cruel, mas não são pessoas ‘primitivas’ ou ‘atrasadas’. São exata e precisamente tão espertos quanto os senhores. Na relação com eles, ninguém jamais saberá quem manipula quem. Perfeita prova disso está nos dados recentes sobre destino final do armamento doado àquela oposição suposta ‘moderada'”

Oriente Mídia

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