A Cúpula das Américas, que terminou na semana passada, ficou na memória dos analistas internacionais por ter sido um fracasso completo. A questão não foi apenas o fato de a declaração final não ter sido assinada. Os escândalos perseguiram este evento antes mesmo de ele começar.
Como é sabido, o serviço de segurança do presidente Obama deu um forte “contributo”: resolveu divertir-se em Cartagena e acabou por manchar a reputação dos serviços secretos americanos. Para além disso, o encontro com os chefes de Estado da América do Norte e do Sul foi influenciado pelo conflito ligado à nacionalização da empresa YPF-Repsol pelo governo argentino. Não obstante os protestos por parte de Espanha e da União Europeia, Buenos Aires resolveu manter firmeza.
Neste pano de fundo, era de esperar que a atmosfera na cúpula fosse tensa.
No entanto, a realidade ultrapassou todas as expectativas. Hoje já podemos afirmar que as posições dos Estados Unidos na América Latina estão enfraquecendo cada vez mais. Mais ainda, este processo parece ser irreversível. A verdade é que a influência americana no continente não está se reduzindo devido à intensificação de quaisquer jogadores externos ou ao ressurgimento da consciência nacional dos países latino-americanos.
É verdade que, nos últimos anos, os países da América do Sul estão levando a cabo uma política externa mais orientada para defender os seus interesses nacionais. Se, há apenas 15 ou 20 anos, estes países eram vistos como “o quintal” dos EUA, agora eles têm vindo cada vez mais a demonstrar a sua independência na arena internacional. O Brasil integra o grupo Brics, que vai tendo cada vez mais peso, a Argentina defende com firmeza seus interesses na questão das ilhas Malvinas (Falklands), a Venezuela, a Nicarágua, a Bolívia e o Chile são países cada vez mais ativos a nível internacional.
É perfeitamente compreensível que o papel da América Latina nas questões internacionais venha a aumentar. Um testemunho notório disso foi aquilo que aconteceu na cúpula de Cartagena.
Para além dos ânimos anti-norte-americanos, houve dois acontecimentos na Colômbia que podem ter uma repercussão a longo prazo nas relações geopolíticas mundiais.
Antes de mais, cabe assinalar que os dirigentes dos governos latino-americanos exigiram aos EUA pôr termo ao embargo comercial e suavizar as sanções impostas a Cuba. Após a recusa de Barack Obama de cumprir esta exigência, começou a debandada: os presidentes do Equador e da Nicarágua recusaram-se a participar na cúpula. Para além disso, os países integrantes do ALBA (Aliança Bolivariana) expressaram a sua intenção de boicotar semelhantes eventos no futuro até que os EUA passem a considerar Cuba como membro de pleno direito desta comunidade. O mais desagradável para os Estados Unidos foi o apoio a estas exigências por parte do país anfitrião da cúpula, a Colômbia, que era considerado o aliado mais fiel de Washington na região.
No entanto, o previsível escândalo relacionado com as sanções norte-americanas contra Cuba foi apenas o início. O “prato forte” foi a discussão entre a Argentina e os EUA sobre a questão das ilhas Malvinas (Falklands). Desde o início do ano que as relações entre a Argentina e a Grã-Bretanha pioraram bastante devido às tentativas de Londres de iniciar a prospeção de hidrocarbonetos na plataforma submarina dos territórios em litígio. A decisão do governo britânico de fazer uma demonstração de forças navais na zona (foram enviados um submarino e um destroyer para o Atlântico Sul) veio agravar a situação. Durante a cúpula, a presidente argentina tentou obter o apoio dos EUA a respeito da soberania do seu país sobre as ilhas em disputa.
Mas os esforços de Cristina Kirchner não tiveram sucesso, apesar de, segundo afirmam vários peritos norte-americanos, ela ter podido colocar as relações argentino-americanas ao nível de associação estratégica. Todos os governos do continente americano (à exceção dos EUA e do Canadá) apoiaram as exigências argentinas. Barack Obama não se atreveu a alterar de forma radical a sua posição nesta questão e pôr em causa as relações especiais entre o seu país e a Grã-Bretanha.
Como resposta a esta posição, a presidente argentina abandonou a cúpula e ameaçou orientar o seu país para uma colaboração mais estreita com os seus vizinhos e organizar uma frente unida contra a política económica dos EUA na América Latina, o que pode realmente pode vir a acontecer.
Para os EUA, especialmente considerando os seus atuais problemas económicos, isto pode significar um duro golpe. Na política externa de praticamente todos os governos latino-americanos nota-se uma mudança notória no sentido de fazerem frente ao excessivo diktat dos EUA. Neste grupo de países estão economias-chave da região como a Argentina ou o Brasil. Não se exclui que estes países comecem um processo de nacionalização parcial de empresas norte-americanas na região, estabeleçam barreiras aduaneiras contra os EUA e limitem a fuga de capitais para o mercado norte-americano. Existe também grande probabilidade de ser desencadeada uma guerra de divisas.
Curiosamente, tal desenvolvimento dos acontecimentos na América Latina abre determinadas perspetivas à Rússia. Do ponto de vista da realpolitik, Moscou deveria desenvolver relações mais estreitas com os governos da América do Sul. É evidente que uma relação sólida do nosso país com esta região pode vir a proporcionar-nos importantes pontos de apoio quando se tratar de resolver questões complexas com Washington. É o que se passa, por exemplo, na Ásia Central relativamente aos assuntos ligados à defesa antimíssil e à possibilidade de os EUA manterem bases militares permanentes nesses países. Por isso, a Rússia deve desenvolver a cooperação política, económica e militar com a América Latina.
Voz da Rússia
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