Entrevista com Beatriz Sarlo - A crítica argentina diz que a última crise econômica abalou para sempre a identidade de seu país
Professora de literatura por vinte anos na Universidade de Buenos Aires e com passagens por universidades americanas como Colúmbia e Berkeley, Beatriz Sarlo, de 63 anos, é uma das mais argutas críticas literárias da Argentina. E é mais que isso: Beatriz faz crítica cultural, no sentido mais ambicioso da expressão. O leitor pode conferir a amplitude de seus interesses em dois livros recém-lançados no Brasil, Tempo Presente (José Olympio) e A Paixão e a Exceção (Companhia das Letras). Seus ensaios passeiam livremente da literatura à sociologia, da filosofia ao urbanismo para analisar as sucessivas crises que abalaram seu país. A crítica que em 1978 lançava a revista de oposição à ditadura militar Punto de Vista – a qual dirige até hoje – tem uma visão desencantada, mas também realista da Argentina. Beatriz – que na semana passada esteve no Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Parati – falou a VEJA sobre a herança do presidente Juan Domingo Perón e a literatura de Jorge Luis Borges. E, sobretudo, tratou de um tema inescapável: a crise de seu país.
Veja – A Argentina está saindo de um longo período de depressão econômica. Vai ser possível curar as feridas?
Beatriz – A crise por que passamos tem dimensões culturais e morais que vão muito além da economia. Até a década de 80, ser argentino significava ter acesso a um mercado de trabalho que empregava quase todos, ter acesso a uma educação relativamente eficiente e a direitos sociais. A crise destruiu esse núcleo de identidade. Não foi somente uma crise econômica, da qual se pode sair eventualmente, mas uma crise que afetou a trama social e as relações culturais do país. E isso é mais difícil de superar. Hoje estão nascendo na Argentina crianças cujos pais nunca entraram no mercado de trabalho. São filhos de gente entre 15 e 25 anos que jamais teve um emprego fixo e não têm escolaridade. É muito difícil que essas crianças se reincorporem ao mercado de trabalho ou à escola, mesmo que a Argentina volte a crescer.
Veja – A auto-estima dos argentinos foi abalada?
Beatriz – De maneira dramática. Assim como os seus vizinhos, a Argentina sempre teve deficiências na organização democrática. Também enfrentou deficiências no desenvolvimento econômico, que outros países latino-americanos como o Brasil, o México e, nos últimos anos, o Chile souberam resolver melhor. Apesar disso, não tínhamos a fratura social comum ao resto da América Latina, e isso nos fez nutrir um estranho orgulho, às vezes quase intolerável. No curso do século XX, até pelo menos os anos 70, a Argentina seguiu um caminho de relativa inclusão. Primeiro, inclusão de imigrantes que chegaram da Europa no fim do século XIX e início do XX. Depois, inclusão social de massas que se viram contempladas pelas políticas do peronismo – a doutrina populista do presidente Juan Domingo Perón –, nas décadas de 40 e 50. Esse processo foi interrompido agora, e creio que para sempre. A fratura é brutal, e ela está exposta.
Veja – A crise mudou a percepção que os argentinos têm do Brasil?
Beatriz – Boa parte dos argentinos só percebeu há poucos anos que o Brasil é um país muito importante e a Argentina não é. Isso foi um golpe adicional sobre o orgulho argentino. Eles se deram conta de que a Argentina será um sócio menor do Mercosul – se é que o Mercosul algum dia vai se consolidar – e de que o Brasil tem outras opções no mundo. E isso às vezes se traduz em ressentimento – no temor de que o Brasil possa prejudicar, por exemplo, nossa indústria automobilística.
Veja – Quem visita Buenos Aires ainda tem a sensação de estar num lugar muito civilizado. A cidade foi poupada pela crise?
Beatriz – Grandes transformações estão em curso em Buenos Aires desde a segunda metade da década de 90. É uma cidade que se partiu ao meio, em uma linha que separa o norte e o sul. Para quem sempre viveu em Buenos Aires, esse contraste é muito vívido. Quem vive na cidade desde, digamos, a década de 50 tem memória de um lugar bem mais integrado do ponto de vista social. Mas é muito difícil transmitir aos estrangeiros a dimensão dessa mudança. Pois os turistas só conhecem uma Buenos Aires, digamos, fashion – uma cidade globalizada, que conserva traços urbanos tradicionais. Eles circulam pela zona mais próxima ao Rio da Prata, mais ao norte. Aliás, não são só os turistas que se limitam a essa parte da cidade: muitos habitantes dessa área tampouco costumam descer mais ao sul, onde está a cidade dos mendigos, dos sem-teto, dos papeleiros. O sul da cidade parece ter sido entregue ao destino de ser pobre. Lá não são feitos investimentos significativos, nem públicos nem privados. O que parecia ser só iconografia de filmes de ficção científica como Blade Runner – a cidade moderna cercada de miséria – se realiza quando uma cidade se globaliza mas algumas zonas urbanas não são contempladas na divisão das riquezas.
Veja – Nesse ponto, há diferenças entre Buenos Aires e o interior?
Beatriz – Sem dúvida. Apesar de tudo, Buenos Aires não foi tão golpeada pelo desemprego quanto outras cidades do interior. O que eu disse sobre o panorama de miséria na zona sul de Buenos Aires deve ser multiplicado por dez se falarmos em Tucumán, Chaco, Salta – sobretudo no noroeste e no nordeste da Argentina. Uma província como Formosa, que está na fronteira com o Paraguai, tem alguns dos bolsões de miséria mais extremos. E é lá que vemos florescer o maior vício do sistema político argentino – o manejo clientelista do problema social. Na Argentina, os planos sociais estão atados a uma pirâmide de caudilhos municipais e regionais, que "cuidam" da população local para se manter no poder. Todos sabem disso, mas muitos não querem reconhecer. Reformas são muito difíceis, pois o clientelismo forma um círculo vicioso. Sem uma extensa reforma política, uma mudança no sistema partidário, sou muito cética quanto às possibilidades de a Argentina sair de sua profunda crise social.
Veja – Existe alguma indicação de que o atual governo possa conduzir essas mudanças?
Beatriz – Não. O Partido Justicialista do presidente Néstor Kirchner está se comportando do modo clientelista de sempre – até porque há eleições próximas, e Kirchner, que foi eleito por uma porcentagem muito baixa de votos, precisa se revalidar.
Veja – A senhora não encontra motivos para otimismo na história recente da Argentina?
Beatriz – Na verdade, sim. Algo se obteve nestes últimos vinte anos, que foram de democracia. Para mim, a condenação de nove comandantes responsáveis pelo terrorismo de Estado durante a ditadura foi um momento especial. Esse é meu único fundamento para não ser completamente pessimista: a sociedade argentina não quer repetir uma experiência autoritária. Não se ouve dizer que no tempo dos militares era melhor. Não há esse discurso.
Veja – Em seus livros, a senhora descreve a Guerra das Malvinas, em 1982, como um momento trágico na história do país. Diz inclusive que, naquele momento, perdeu as esperanças em relação à Argentina. Por quê?
Beatriz – Foram muito poucos os que, como eu, se opuseram àquela aventura militar. Éramos só um punhado de pessoas. A maior parte da Argentina – até mesmo os que combatiam a ditadura militar – acreditou que era uma guerra nacional, que seria possível vencer os ingleses e depois, no mesmo embalo, derrubar a ditadura. Era uma loucura completa. Se a ditadura houvesse vencido a guerra, talvez ela se perpetuasse até hoje. Os pobres soldados argentinos, rapazes de 20 anos que foram lutar sem armamento adequado – e sem lideranças adequadas –, foram os verdadeiros fundadores da democracia argentina. Foi porque eles morreram, porque perdemos essa guerra, que a democracia pôde ser restaurada. Naqueles meses, quando havia manifestações populares em prol da guerra na Praça de Maio, eu me senti completamente distanciada do meu país. Vivi na Argentina durante toda a ditadura, em condições clandestinas, trabalhando em publicações secretas, e sempre mantive a esperança. A guerra veio desmentir a minha esperança. Desde então, não sou mais capaz de cantar o hino nacional nem chego perto de nada que tenha as cores da bandeira argentina. Para mim, esses símbolos ficaram associados à Guerra das Malvinas.
Veja – O apoio generalizado à guerra incluiu a esquerda?
Beatriz – Sim, pois a esquerda tinha essa fantasia tresloucada de que era uma guerra contra o imperialismo. Vi até fotos de argentinos no exterior, grupos de exilados que empunhavam a bandeira nacional e festejavam a ditadura que os havia perseguido e que matara seus companheiros. Foi um momento de enlouquecimento da sociedade.
Veja – A literatura argentina provavelmente foi a mais vigorosa da América Latina no século XX. Por quê?
Beatriz – O reconhecimento da literatura argentina no século XX está sustentado em Jorge Luis Borges. Esse reconhecimento de Borges foi tardio, mas veio com força a partir dos anos 60, principalmente na França, que naquele momento era uma potência capaz de consagrar um escritor – talvez hoje já não seja mais assim. Depois, houve alguns escritores argentinos que tiveram mais circulação por viver fora da Argentina, como foi o caso de Manuel Puig e do recentemente morto Juan José Saer, que foi um grande ficcionista.
Veja – Também seria o caso de Julio Cortázar, que viveu na França?
Beatriz – Sim. Mas é preciso levar em conta que os anos 60 foram uma década de internacionalização da literatura latino-americana por duas razões. A primeira é o desenvolvimento da própria literatura, a emergência de romances que tinham um perfil estético latino-americano. A outra razão é a propaganda da Revolução Cubana. Autores que se identificavam com Cuba ganharam repercussão internacional. Esse é exatamente o caso de Cortázar e do colombiano Gabriel García Márquez, mas não de Borges, do mexicano Juan Rulfo ou do uruguaio Juan Carlos Onetti, que são, sem dúvida alguma, escritores muito maiores.
Veja – E quanto a Borges, que se consagrou como uma espécie de gigante literário? Sua figura não se tornou demasiado pesada para os escritores argentinos posteriores?
Beatriz – Não creio. Manuel Puig, por exemplo, escrevia de costas para Borges, como se não houvesse sido tocado por ele. E Saer é um escritor pós-Borges. Pelos 20 anos, ele escrevia contos que pareciam exercícios borgianos, mas depois se libera de Borges para fazer uma literatura original. Um grande escritor é uma massa de texto à qual se pode recorrer para modificar, polemizar, romper. Um grande escritor nunca é problema para uma literatura nacional. Você diria que Shakespeare é um problema para os ingleses?
Veja – Os argentinos lêem os escritores brasileiros?
Beatriz – A relação cultural entre os dois países é muito assimétrica. De modo geral, há mais difusão da cultura argentina no campo intelectual brasileiro do que o contrário – e não falo do grande público, mas dos meios intelectuais. Na Argentina, existem pesquisas sobre alguns momentos da literatura brasileira – sobre a vanguarda e o concretismo, por exemplo –, mas muito limitadas. E não há traduções de críticos brasileiros, o que, no meu campo de atuação, considero uma falha grave.
Veja – Em um de seus ensaios, a senhora diz que sua geração, na Argentina, foi marcada politicamente por Juan Domingo Perón e culturalmente por Borges, que era antiperonista. Como se deu essa divisão?
Beatriz – A Argentina tem uma história de mal-entendidos entre intelectuais e artistas, de um lado, e o poder político, de outro. O peronismo intensificou esses mal-entendidos. O grupo da revista Sur, que incluía Borges, Adolfo Bioy Casares, sua mulher, Silvina Ocampo, e a irmã desta, Victoria Ocampo, sentia um desprezo muito forte por Perón. De certo modo, eles faziam uma equiparação equivocada entre o peronismo e os totalitarismos da Itália e da Alemanha. E Perón, de sua parte, cultivava uma distância, uma frieza pessoal em relação aos intelectuais.
Veja – A política argentina já conseguiu superar Perón?
Beatriz – O Partido Justicialista recupera de algum modo as tradições sociais do peronismo, mas não é a mesma ideologia dos anos 40 e 50. O presidente Kirchner já nem menciona o nome de Perón. O justicialismo passou por muitas transformações: o terrorismo dos Montoneros nos anos 70, a revolução neoliberal de Carlos Menem e agora essa espécie de social-democracia crioula e autoritária de Kirchner. O partido adota diferentes posições no espectro ideológico, conservando certa identidade social.
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