Carlos CAMPONEZ [Universidade de Coimbra, Portugal], s/d
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu
“A actual crise dos media deve-se, em grande parte, ao facto de eles fundarem a sua legitimidade numa concepção individualista de liberdade que confunde liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade de empresa”.
“A liberdade de expressão só para as empresas “de jornalismo”, de fato, não passa de variante ideológica da liberdade (liberaloide) de empreender e da liberdade (liberaloide) que os mercados ditos “livres” reivindicam como direito exclusivo, reservado, só deles”.
Entre a crítica e os “deslizes” contínuos da “mídia”
A crítica dos media não é um fenómeno contemporâneo. Voltaire dizia, já no século XVIII, que
«A imprensa, é preciso admiti-lo, tornou-se num flagelo da sociedade e numa pilhagem intolerável» [1](3)
Balzac, no século seguinte, concluia a Monographie de la Presse Parisienne com o conhecido axioma:
«Se a imprensa não existisse, seria necessário não inventá-la»[2](4)
Interessa-nos, porém, perceber o renovar do debate e da crítica pública sobre o jornalismo [3](5), sobretudo a partir dos finais da década de 80, princípios da década de 90. Estamos numa altura rica em acontecimentos, desde a queda do Muro de Berlim às guerras na Somália, na Jugoslávia, no Golfo Pérsico. Trata-se, além do mais, de um período marcante também do ponto de vista das mudanças tecnológicas e do impacto das políticas neoliberais no sector dos media, como é o caso da desregulamentação dos sectores do audiovisual e das telecomunicações, na Europa e nos EUA, bem como a formação dos grandes grupos multimédia mundiais, um processo que se acelerou sobretudo no final dos anos 90.
Não temos qualquer pretensão de exaustividade perante a multiplicidade de situações e a riqueza do debate em torno das derrapagens éticas e deontológicas das coberturas jornalísticas dos media neste período. Permita-se-nos, no entanto, recordar a polémica em torno da cobertura jornalística dos acontecimentos em Timisoara, na Roménia, na Guerra do Golfo, no conflito da Jugoslávia, ou em casos em torno de figuras famosas, como Diana, O. J. Simpson e Bill Clinton/ Monica Lewinsky. Se, nestes casos, fomos, em Portugal, mais espectadores que protagonistas, também é verdade que temos as nossas especificidades para contar: Timor-Leste, ponte de Entre-os-Rios, Casa Pia, a morte de Fehér, só para referir alguns casos que, pela sua força, mais polémica geraram ou ainda continuam a ser tema de discussão.
Em 1991, a associação Médias 92 fazia um levantamento crítico dos erros mais comuns cometidos durante a Guerra do Golfo: não identificação das fontes de informação; manipulação dos media pelas autoridades oficiais políticas e militares; monopólio da informação bruta por um único medium (no caso, a CNN) que desempenhou um papel de «oráculo» e de «grossista de imagens»; subordinação da informação e da programação aos imperativos do directo; selecção das informações com base no critério da audiência em detrimento do critério da importância; tratamento hiperbólico da informação tendo por base uma cobertura jornalística em contínuo; cortes arbitrários de entrevistas, utilização de pequenas frases fora do seu contexto e traduções incorrectas; cronologia defeituosa e ausência de datação dos acontecimentos ou dos documentos apresentados; confusão entre as opiniões pessoais dos jornalistas e os seus comentários sobre a actualidade; vedetismo dos jornalistas, por vezes ultrapassando o exercício normal da profissão; corrida à cacha jornalística, à dramatização, à emoção, em resultado da forte concorrência entre os media, as televisões, as redacções e os próprios jornalistas (6)[4].
Não seria muito difícil encontrar estas e outras marcas de derrapagens jornalísticas nos casos portugueses já acima referenciados. No caso da cobertura jornalística do período pós-referendo em Timor-Leste, muitas destas questões puderam ser disfarçadas pelos fortes constrangimentos que pesaram sobre a cobertura jornalística, associada à ideia de uma causa nacional que justificou ou, pelo menos, desculpabilizou os meios utilizados e os erros cometidos[5](7). Mas no caso da ponte Hintz Ribeiro, em Entre-os-Rios , os excessos foram por demais evidentes.
Entrevistas a crianças, interpelação de populares em visível estado de comoção, cobertura extensiva e em directo da tragédia, a folclorização mediática do evento e a degenerescência informativa sob o efeito da concorrência das estações televisivas em busca das audiências, são algumas das referências que podemos encontrar na crítica do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas à cobertura do acontecimento [6](8). A exaustiva cobertura televisiva transformou o jornalista numa espécie de animador com a função de não deixar espaços em branco durante as emissões desse «Show da Morte» [7](9), tentando trazer as famílias das vítimas para o palco das emoções para lhes perguntar: como se sente? A cobertura jornalística do caso Casa Pia ou, mais recentemente, da morte de Fehér – e, certamente, outros virão – têm servido apenas para reactualizar este debate, não obstante os pareceres das entidades reguladoras e os códigos deontológicos que regem a profissão.
Num levantamento dos textos deontológicos ocidentais, Jean-Marie Charon identifica os valores que regem a profissão.
Em primeiro lugar, destacam-se as questões relacionadas com princípios fundamentais: o respeito pela liberdade de informação, pela Justiça, pelo Estado de Direito e pela verdade/objectividade.
Em segundo lugar, seguem-se os aspectos relacionados com o respeito pelo público: não criar confusão entre informação, publicidade, promoção e propaganda; não truncar a informação; não mentir; não caluniar; não acusar sem provas; ser exacto; não espectacularizar; não discriminar; rectificar os erros.
Em terceiro lugar, aparecem os temas centrais dos códigos deontológicos do jornalismo, relacionados com o tratamento das fontes de informação: o respeito do segredo profissional; a não utilização de métodos de investigação desleais, tais como o recurso à compra de documentos; o respeito pela vida privada; a recusa da calúnia, da injúria e da acusação sem provas; a não alteração ou deturpação de documentos; a identificação das fontes, bem como a distinção entre factos e opiniões ou comentários dos jornalistas.
Finalmente, encontramos um conjunto de regras referentes à conduta entre jornalistas e ao respeito pela própria profissão: reconhecer ou apenas aceitar a jurisdição dos seus pares; recusar o plágio; recusar prendas, viagens, privilégios ou benesses; e respeitar o regime de incompatibilidades [8](10). Em traços gerais, este levantamento é coincidente com outros efectuados por Tiina Laitila[9](11), Benoît Grevisse, Claude-Jean Bertrand, Daniel Cornu, entre outros, sobre os códigos deontológicos do jornalismo europeu e ocidental.
A questão que parece resultar da análise que acabámos de fazer não pode ser outra que a constatação de um impasse: o consenso em torno das normas e dos princípios deontológicos não consegue, por si só, evitar as cíclicas derrapagens da cobertura jornalística, sobretudo em acontecimentos mais mediáticos e susceptíveis de mobilizarem as audiências.
Este facto põe em causa a capacidade de autorregulação dos jornalistas e dos media.
Mas, também aqui, nada de substancialmente novo. Jean-Claude Guillebaud dizia, em 1991, a propósito das críticas acerca da cobertura jornalística da Guerra do Golfo: «De crise em crise, o julgamento dos media prossegue. Mas não necessariamente avança. Conduzido muitas vezes pelos próprios media, hesita entre o exorcismo colectivo, a auto-flagelação e a explicação mono-causal, mais ou menos sentenciosa» [10](12)
O debate em torno das questões deontológicas do jornalismo arrisca-se a cair num cinismo tanto mais evidente quanto mais ele procura iludir as fragilidades dos próprios códigos. A este respeito diz-nos Mário Mesquita: «A deontologia constitui um instrumento de aperfeiçoamento dos jornalistas, individualmente considerados, ou um factor de identidade da profissão no seu conjunto. Mas não possui virtualidades suficientes para explicar as transformações políticas, económicas, sociais, tecnológicas e retóricas da comunicação social, nem as frequentes “derrapagens” mediáticas. A imagem das empresas e dos jornalistas pode reforçar-se ou melhorar com a revalorização da “ética profissional”. Chega sempre o momento das homenagens que “o vício presta à virtude”.
Mas a deontologia-todo-poderosa, salvadora dos cidadãos, essa, só existe na imaginação generosa dos ingénuos ou na estratégia cínica de alguns “comunicadores”» [11](13). João Pissarra Esteves, salienta, por seu lado, a componente ideológica da deontologia no discurso profissional dos jornalistas. «O seu discurso de superfície assume a intencionalidade ética de projectar os media como instrumentos fundamentais da democracia – com base na sua função informativa e num conjunto de valores de referência (neutralidade, verdade, objectividade, distanciamento, etc.). Mas a grande ilusão desta ideologia está na crença de que os jornalistas, só por si e sem qualquer mudança estrutural profunda, podem condicionar decisivamente o funcionamento democrático dos media» [12](14). (...).
Conclusão
Se é verdade que, retomando Wolton, poderíamos dizer que a inovação tecnológica, o fim das ditaduras, o reconhecimento da liberdade de expressão e a superação da debilidade económica dos media aumentaram o seu poder e a sua visibilidade, também não deixa de ser verdade que, concomitantemente, a sua legitimidade tem vindo a ser cada vez mais questionada.
A actual crise dos media deve-se, em grande parte, ao facto de eles fundarem a sua legitimidade numa concepção individualista de liberdade que confunde liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade de empresa. Ora, o direito à comunicação é muito mais que um direito de expressão. Ao retirar aos media o monopólio da opinião, estaremos a reduzir o seu poder no quadro da determinação da opinião pública, mas estaremos também a delimitar-lhe as suas responsabilidades e a sua legitimidade. [o que é muuuuuuuuito necessário, urgentíssimo, se queremos ter melhor democracia (Vila Vudu)].
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