Guerra Síria:Das práticas às promessas.Dilemas da intervenção.Proteção ou Coerção? - Noticia Final

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domingo, 30 de dezembro de 2012

Guerra Síria:Das práticas às promessas.Dilemas da intervenção.Proteção ou Coerção?

Síria - Das práticas às promessas

A adoção da linguagem de "responsabilidade de proteger" transforma a intervenção (seja ela militar ou de outro tipo) em uma norma. De acordo com o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, enquanto o conceito de responsabilidade de proteger amadureceu em 2011, o desafio da comunidade internacional permanece o de transformar esse conceito de "promessa à prática" ou de "palavras a ações". Eu sugiro que o significado do conceito de responsabilidade de proteger recai na sua capacidade de fazer o contrário - ou seja, transformar prática em promessas, ou ações em palavras. Mais especificamente, esse conceito fornece uma base para racionalizar e consolidar práticas internacionais como comissões de inquérito, operações de paz, formas estratégicas de assistência técnica e administração civil, muitas das quais são empregadas há décadas. A importância do conceito está, portanto, na justificativa que ele fornece para essas práticas e para a autoridade dos atores que as realizam.

No livro "International authority and the responsibility to protect" (2011), argumento que pensar sobre intervenção usando a linguagem da proteção muda o foco legal de quatro modos centrais.

Em primeiro lugar, o conceito de responsabilidade de proteger sugere sua importância normativa, não porque ele impõe novas obrigações sobre os Estados, mas porque confere poderes de natureza pública ou oficial e determina sua jurisdição. Em "O conceito de Direito", H. L. A. Hart distingue entre "leis que conferem poderes" e "leis que impõem obrigações". Analistas tendem a tratar a inclusão do conceito de responsabilidade de proteger na Cúpula Mundial de 2005 como uma tentativa fracassada de fazer o último. De fato, parece claro que esse conceito foi cuidadosamente formulado de forma a não impor sobre os Estados ou atores internacionais novas obrigações em situações específicas. O conceito deve ser entendido como normativo no primeiro sentido, de prover autorização legal para certas atividades. A Cúpula Mundial confere à comunidade internacional, atuando por meio da ONU, um mandato discricionário para empreender ações em situações nas quais populações precisam de proteção. O secretário-geral ressaltou esse caráter discricionário em seu quarto relatório sobre a responsabilidade de proteger, em julho de 2012.

Em segundo lugar, pensar nesse conceito como uma forma de lei que distribui poder discricionário a um executivo internacional levanta questões sobre o exercício dessa liberdade de ação. Até hoje, o mandato discricionário para uma ação executiva com o objetivo de proteger civis tem sido exercido de forma seletiva. Parece quase banal afirmar que é improvável que esse conceito seja alguma vez invocado para autorizar medidas contra um grande aliado do Ocidente, um Estado da Europa Ocidental ou os Estados Unidos. Apesar disso, a preocupação com a seletividade foi tema recorrente nos debates no Conselho de Segurança em relação à intervenção na Líbia e, mais amplamente, em discussões temáticas sobre proteção civil desde maio de 2011. Advogados de sistemas legais domésticos há muito tempo debatem sobre como limitar os amplos poderes discricionários dos braços executivos dos governos. No caso mais extremo, uma ordem política que sistematicamente faz diferença entre seus sujeitos na aplicação e na coerção das leis pode não mais ser reconhecida como sistema jurídico, e seus representantes não mais capazes de impor fidelidade ou obediência.

Em terceiro lugar, justificar autoridade com base na capacidade de proteger levanta uma nova questão: quem decide? Quem decide o que significa proteção em determinado lugar e momento e quem é capaz de provê-la? A questão de quem decide tem registros na lei em dois debates sobre o conceito de responsabilidade de proteger - sobre jurisdição e sobre reconhecimento. Em termos de jurisdição, foi essencial tanto para Estados que viveram - ou podem esperar serem alvos de - intervenções ocidentais, incluindo os membros do Movimento dos Não Alinhados, além da China, que esse amplo mandato discricionário tenha sido dado à comunidade internacional atuando por meio da ONU, e, no caso do uso da força, por meio do Conselho de Segurança.

A questão de quem decide o que significa proteção também envolve decisões sobre reconhecimento. Por exemplo, na 66ª sessão da Assembleia Geral em 2011, a ONU foi chamada a uma decisão intimamente ligada com a questão do reconhecimento e da responsabilidade, quando decidiu estabelecer o Conselho de Transição Nacional como representante da Líbia na ONU. A Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral e a União Africana, assim como muitos Estados, expressaram sua preocupação com o processo pelo qual a decisão foi tomada. Não tendemos a pensar sobre essas decisões como normativas. No entanto, se a responsabilidade de proteger deve ser considerada uma reivindicação normativa sob a comunidade internacional, a decisão de reconhecer um governo ou um Estado também pode ser racionalizada nesses termos.

Finalmente, sustentar autoridade na capacidade de proteger historicamente tende a privilegiar instituições que favorecem coerência, controle e centralização. Nesse sentido, a autoridade justificada em termos de sua capacidade de garantir proteção significou uma tendência ao autoritarismo.

Pode parecer extremo sugerir que poderia haver alguma ligação entre o aumento de Estados autoritários e as ambições benignas do conceito de responsabilidade de proteger. Porém, enquanto muita atenção vem sendo dada à construção da capacidade internacional de responder aos desafios da proteção pelo desenvolvimento de formas mais eficientes e integradas de vigilância e policiamento, há muito menos discussão sobre os limites legais da ação internacional feita para garantir proteção. Estamos começando a ver a emergência de um debate sobre a necessidade de impor limites ao poder de atores internacionais, como no caso dos fortes argumentos levantados pelos BRICs desde maio de 2011, em resposta à percepção de que a OTAN excedeu seu mandato de proteger civis na Líbia, tanto ao bombardear as forças de Kaddafi quanto ao armar os rebeldes.

De particular interesse é a posição adotada pelo Brasil ao iniciar uma discussão institucional sobre os limites apropriados aos poderes de polícia internacional. O país começou a manifestar preocupação sobre a intervenção na Líbia em maio de 2011, no debate temático sobre proteção civil no Conselho de Segurança. Ali ele lançou as bases dos princípios que, em novembro de 2011, foram denominados "responsabilidade ao proteger", com base no que descreveu como "a transformação do cenário de proteção civil nos últimos meses". O Brasil abordou quatro questões recorrentes nas respostas à intervenção na Líbia: mudança do regime; priorização de meios pacíficos e preventivos sobre a militarização; limites ao uso da força; e imparcialidade.

Inicialmente, a resposta do secretário-geral ao conceito do Brasil foi a de que, apesar de "todos concordarmos sobre a necessidade de responsabilidade ao proteger, não devemos fazer o ótimo o inimigo do bom". (A ideia de que aqueles que estão do lado do bem não devam ser contidos é sempre motivo de preocupação). Em 25 julho de 2012, o secretário-geral divulgou o quarto de seus relatórios sobre a responsabilidade de proteger, com o tema "Resposta rápida e decisiva". O relatório adota a concepção de responsabilidade ao proteger, vinculando-a à necessidade de assegurar que "alerta e avaliação precoces sejam conduzidos de forma justa, prudente e profissional, sem interferência política ou padrões duplos". O relatório aponta para as preocupações dos Estados membros de que aqueles encarregados da implementação da resolução 1973 do Conselho de Segurança excederam seu mandato, e, apesar de não comentar sobre os méritos específicos desses argumentos, declara que é necessário que "as preocupações expressas pelos Estados membros sejam levadas em conta no futuro".

Siria - Dilemas da intervenção

Ao fim de mais um ano de conflitos sem solução na Síria, pesquisadores de Relações Internacionais, História e Direito debatem sobre os impasses da decisão de intervir sob justificativa humanitária

Oano começou e terminou com uma guerra civil na Síria, 20 anos depois do início de outro conflito que demorou para ter fim e ficou marcado pela inoperância da comunidade internacional: a guerra na ex-Iugoslávia. De lá para cá, uma série intervenções de justificativa humanitária foram empreendidas, mas a demora em agir ou a ineficácia de ações da ONU e dos Estados ocidentais resultaram num histórico de desastres humanitários - vide o genocídio de 800 mil pessoas em Ruanda, em 1994, e o massacre de oito mil muçulmanos em Srebrenica, na Bósnia, em 1995, que não foram evitados mesmo com a presença de forças de paz comandadas pela ONU em ambas as regiões.

Após o fim de uma década de fracassos, a intervenção da OTAN no Kosovo sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, em 1999, foi o estopim para o desenvolvimento do conceito de "responsabilidade de proteger", que passou a nortear a legitimidade de intervenções externas em conflitos domésticos. Se, na prática, cada contexto exige uma análise específica, sendo difícil universalizar um padrão para a comunidade internacional, a própria concepção de uma responsabilidade pela proteção não é pacífica, pois envolve a definição de quem deve proteger e ser protegido. Para muitos acadêmicos e políticos, ela é percebida como um meio de justificar medidas neocoloniais, com ingerência em assuntos internos e a tentativa de imposição de um modelo universal de democracia liberal.

Mesmo críticos da noção de intervenção humanitária, porém, analisam que, num caso como o da Síria, a espera pode causar estragos maiores do que a ação militar. Mais do que isso, há muitos modos de intervir, e pode-se afirmar que já existe um tipo de intervenção em curso, seja pelo apoio aos rebeldes sírios ou ao governo de Bashar al-Assad.

Síria - Proteção ou Coerção?

DESASTRES DOS ANOS 1990 LEVARAM À resistência a AÇÕES MILITARES Para além do uso aberto da força, humanitarismo contemporâneo envolve intervenções menos explícitas e práticas cotidianas, sustentadas no princípio de responsabilidade de proteger

A justificativa mais ouvida para a ausência de uma ação militar na Síria são os vetos de China e Rússia no Conselho de Segurança da ONU. No entanto, a não autorização do Conselho não é, historicamente, um impedimento final para a intervenção. Segundo o historiador Peter Demant, holandês radicado no Brasil, onde é professor do Departamento de Relações Internacionais da USP, o conflito na Síria não ameaça imediatamente a paz mundial aos olhos ocidentais. Além disso, ele identifica uma atmosfera anti-intervencionista no Ocidente, dificultando que líderes políticos e eleitorado validem os custos de uma intervenção - financeiros e de vidas. Para Demant, também existe medo de que uma ação militar possa piorar a situação na Síria, pois exigiria uma ocupação prolongada, podendo desestabilizar a região e acarretar o aumento do sentimento antiocidental. Por fim, há, segundo o historiador, uma alienação em relação à população síria.

- Há um certo desinteresse, eu diria, quase racista do Ocidente: "São esses árabes, eles sempre brigam" - diz Demant. - Vejo um estranhamento em relação a populações árabes e muçulmanas, pela associação injusta com violência e primitivismo. Por vários motivos, a situação de Israel e Palestina escapa a essa generalização. O mundo inteiro se interessa por Israel e Palestina, mas a Síria está na mesma região. As Colinas de Golã, parte síria ocupada por Israel desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, fica a 60 quilômetros de Damasco.

Autor de "O mundo muçulmano" (Editora Contexto), Demant ressalta, porém, que não é contra uma ação militar no país, pois considera que não intervir também é uma forma de intervenção. Ele sustenta que medidas prévias ao envio de tropas, como uma zona de exclusão aérea, já poderiam ter sido tomadas para diminuir o sofrimento do povo sírio, num conflito que, desde março de 2011, já causou mais de 44 mil mortes, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos, e 549 mil refugiados - sobretudo na Turquia, no Líbano e na Jordânia -, de acordo com os últimos dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).

É esse cenário que causa dúvidas mesmo num habitual crítico das intervenções humanitárias, o americano Richard Falk, professor emérito de Direito da Universidade de Princeton e, desde 2008, relator especial sobre Direitos Humanos da ONU para os territórios palestinos.

- Não sou claramente a favor de uma exceção a minha preferência pela não intervenção, mas levo em conta o grau de atrocidades do regime de Assad, unido ao fato de parecer que a oposição é o resultado preferível do povo sírio. Mas digo isso com alguma hesitação, pois, mesmo que pareça justificável abstratamente, do ponto de vista moral, político e legal, uma intervenção é muito difícil e frequentemente não produz resultados positivos - diz Falk, por telefone.

Falk afirma que o provimento de armamento pesado para ambos os lados do conflito e o reconhecimento diplomático das forças rebeldes já constituem um tipo de intervenção. Anne Orford, professora de Direito Internacional da Universidade de Melbourne, na Austrália, e forte crítica da concepção de intervenção humanitária (leia artigo na página 3) , concorda.

- Questiono a ideia de que não houve intervenção de tipo algum na Síria - afirma ela, em entrevista por e-mail. - Os tipos de atividades militares em que vimos os grandes poderes se envolverem este ano no país, frequentemente de forma semiencoberta - incluindo fornecimento de armas, treinamento militar e suporte logístico aos rebeldes ou às forças do governo numa guerra civil -, seria tradicionalmente caracterizada de intervenção sob a lei internacional. Estamos vendo na Síria, de forma permissiva, o que os Estados podem fazer para apoiar um lado ou o outro numa guerra civil sem que esse apoio seja classificado de "intervenção".

Mudanças nos conceitos de segurança e soberania

Os dilemas na Síria são em parte consequência de duas décadas de mudanças nos princípios de segurança, soberania e não intervenção. Após o fim da Guerra Fria, a importância dada à segurança do indivíduo fez com que a soberania dos Estados passasse a ser contingente ao cumprimento dos direitos humanos, legitimando intervenções em conflitos intraestatais. Porém, ainda com a experiência de operações de paz tradicionais, em que militares atuavam com armamento leve para monitorar um cessar-fogo entre Estados, com seu consentimento, a ONU colecionou um fracasso atrás do outro, como em ações tardias ou sem eficácia na Somália, em Ruanda e na Bósnia.

Professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, Maíra Siman Gomes sustenta que esse histórico de desastres ajuda a explicar a resistência de Estados como China e Rússia, e do próprio Brasil, a uma intervenção militar na Síria, pois salientou que o humanitarismo não está apartado das relações de poder.

- O "novo humanitarismo", mais coercitivo e não necessariamente pautado em princípios de neutralidade e imparcialidade dos atores interventores, evidenciou o caráter essencialmente político de qualquer ação intervencionista - afirma Maíra. - Nesse quadro, as intervenções com propósitos humanitários e de reconstrução de Estados, tal como as operações de paz da ONU, são vistas como mecanismos de transmissão de um modelo de paz e de Estado (liberal e democrático), considerado ideal, e mais bem sucedido, pelo Ocidente hegemônico.

Em 2001, a Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal, sob o comando do Canadá, formulou o relatório "A responsabilidade de proteger", princípio corroborado na Cúpula Mundial da ONU de 2005. A elaboração desse conceito teve como estopim a intervenção da OTAN no Kosovo em 1999, desafiando a própria ONU, cujo Conselho de Segurança não autorizara uma ação militar. A intervenção foi seguida de pedidos do então secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, para que a comunidade internacional discutisse os limites à soberania impostos pela violação de direitos humanos. Para justificar suas ações, a ONU não podia mais se apoiar nos princípios de neutralidade, imparcialidade e independência, e a concepção de responsabilidade de proteger reafirmou a possibilidade de intervenções externas.

Para Anne Orford, a passagem da noção de intervenção humanitária para a de responsabilidade de proteger significou uma mudança mais do que semântica, pois legitimou formas de proteção que vão além do uso aberto da força.

- O conceito de responsabilidade de proteger reivindica que a legalidade da autoridade, tanto local quanto internacional, advém da capacidade e da disposição de garantir proteção aos habitantes de um território. Esse argumento não diz respeito a autodeterminação, soberania popular ou outras bases românticas ou nacionalistas para definir quem pode governar um território - afirma Anne. - O conceito se torna base para uma série de práticas de policiamento internacional. É nessas ações rotineiras de vigilância, prevenção, treinamento e administração que os efeitos políticos do conceito de responsabilidade de proteger serão determinados.

Enquanto a discussão se mantém no âmbito militar, pouca atenção é dada para as práticas cotidianas envolvidas na administração internacional. As 15 operações de paz da ONU atualmente em funcionamento, que têm um departamento para coordená-las desde 1992, têm um orçamento de US$ 7,23 bilhões no ano fiscal de 2012-2013, para a atuação de cerca de 80 mil militares e 14 mil civis, de mais de cem países. Desde os anos 1990, as ações de administração da ONU se tornaram mais ambiciosas em escala e escopo, com as agências humanitárias desempenhando um crescente papel nos governos e influenciando rumos de políticas locais.

A preocupação de Anne se sustenta pelo fato de que dificilmente se autoriza uma intervenção apenas por solidariedade. Isso significa que a ONU é mais efetiva quando está de acordo com o consenso geopolítico. No caso do Kosovo, a não aprovação do Conselho não impediu a ação militar da OTAN, que queria provar sua relevância após a Guerra Fria, argumentam Peter Demant e Richard Falk - um dos membros da Comissão Independente do Kosovo, que considerou a ação da OTAN ilegal mas legítima. Já no caso da intervenção da OTAN na Líbia em 2011, a autorização do Conselho seguiu, segundo Falk, o interesse do Ocidente pelo óleo produzido na área, que, mais isolada, oferecia menos riscos de desestabilizar toda a região. Ali, a existência de uma atmosfera anti-intervencionista no Ocidente, apontada por Demant, não foi tão importante.

Professor de ciências políticas da Universidade da Cidade de Nova York, Thomas Weiss foi um dos diretores de pesquisa da Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal e discorda que o conceito de responsabilidade de proteger tenha sido um pretexto para justificar intervenções nos anos 2000.

- A intervenção é muito difícil de ser justificada em qualquer circunstância. Mas houve poucas intervenções na última década, poderia ter havido mais - diz Weiss, por telefone. - É absurdo o argumento de que, no caso da Líbia, a ONU estava só esperando a chance de aplicar o conceito de responsabilidade de proteger.

Autor e editor de mais de 30 livros sobre segurança e organizações internacionais, Weiss é a favor de uma intervenção na Síria e considera que a ONU recentemente mostrou sua eficácia na Líbia. Ele ressalta, porém, que as Nações Unidas não podem ser culpadas pelas decisões que cabem a seus Estados membros, que seriam os "verdadeiros" atores da política internacional. De todo modo, no caso da autorização do uso da força, esses atores são, desde 1946, os mesmos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança (Estados Unidos, Inglaterra, França, Rússia e China), que têm poder de veto. No entanto, os pesquisadores entrevistados não veem, num futuro próximo, perspectivas de reforma que altere essa estrutura do Conselho, desigual e herdada das dinâmicas de poder da Segunda Guerra Mundial.

Mesmo com menos intervenções na última década, a ONU ainda mantém 15 operações de paz pelo mundo e uma "missão política" no Afeganistão, decorrentes ou não de ações militares. Grande parte delas tem o objetivo de criar e consolidar instituições democráticas, mas, além dos problemas de reprodução de um padrão institucional universal, podem se estender de forma indefinida, por vezes substituindo uma operação anterior - como é o caso da Unmik, que se instalou no Kosovo após a intervenção da OTAN e lá permanece até hoje, e da Minustah, que em 2004 substituiu outra operação da ONU no Haiti. A Missão Integrada no Timor Leste, que em 2006 se seguiu a missões de "administração", em 1999, e "suporte", em 2002, sai do país depois de amanhã, dia 31.

SELETIVIDADE DO HUMANITARISMO

Sete das 15 operações de paz estão em países da África, como Congo e Costa do Marfim, e pouco sabemos de suas práticas e seus resultados. Como analisa Maíra, há uma "discrepância entre o apoio consensual pela intervenção na Líbia e o baixo entusiasmo político das grandes potências em deter violações massivas e repetidas de direitos humanos no Sudão", mostrando a seletividade das preocupações humanitárias.

- A compreensão do humanitarismo contemporâneo pelo viés da dicotomia intervenção e não intervenção acarreta dois problemas centrais. Por um lado, centraliza o debate público essencialmente em torno das justificativas para a ação internacional, limitando nossa imaginação política acerca da existência de alternativas aos dois extremos. Por outro lado, marginaliza preocupações acerca tanto do caráter seletivo e, portanto, político da decisão de intervir quanto sobre os limites, e responsabilidades, que devem ser respeitados quando da execução de uma operação internacional humanitária - afirma a professora. - É preciso colocar em questão os processos históricos e construções políticas que são silenciados pelo debate atual e revelar as desigualdades e hierarquias que sustentam o discurso universalista de nosso imaginário humanitarista.

Defesa Net

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