Dessa vez, nem esperaram o disfarce da noite. Atacaram às claras, surpreendendo os aldeões na lavoura. Eram 11 horas, calcula Geni Mungo olhando para o céu – o relógio natural de Lwibo, vilarejo na Província de Kivu do Norte, na fronteira oriental da República Democrática do Congo. Ela os viu chegar de longe, pelo mato. Correu para casa para avisar os três filhos sobre o ataque, mas, ao saírem, os rebeldes estavam muito perto.
Alcançaram primeiro seu marido, abatido como um bicho. Ela titubeou, mas sabia que não poderia salvá-lo. Seguiu em direção ao rio. Moradores tentavam escapar, imaginando poder atravessar para o outro lado e sumir na mata. Alcançaram a ponte frágil de madeira. Armados com facões, os rebeldes cortaram as cordas.
Geni viu os corpos das duas filhas serem arrastados pela correnteza de outubro, mês das chuvas. Forjou com o caçula um esconderijo sob folhas de bananeira e ali ficaram até cessarem os gritos. Voltou à vila e encontrou a cabeça do marido, como as de outros homens da aldeia, secando ao sol em estacas – a marca do grupo liderado por um homem chamado Sheka.
O bando saqueou e botou fogo nas palhoças. Fugiu levando 45 crianças que estavam na pequena escola da vila no momento do ataque. Os meninos são feitos soldados. As meninas, escravas sexuais.
Dois dias após o ataque, quando o Estado visitou o local, os gritos de um professor de 25 anos, chamando cada aluno pelo nome, ainda ecoavam na mata – em vão. Ele tinha esperança de que as crianças, de 6 a 12 anos, assustadas, estivessem escondidas. O professor e todos à sua volta sabiam que isso era improvável. Geni buscava o corpo do marido – queria enterrá-lo inteiro – e os das filhas.
Assim se vive no Congo (antigo Zaire), buscando os desaparecidos e recolhendo corpos no rastro de ataques que ocorrem com frequência assustadora. Em quase duas décadas, os confrontos no leste do país deixaram cerca de 6 milhões de mortos. É o maior e mais sangrento conflito desde a 2.ª Guerra, produziu mais vítimas do que todos os combates recentes somados. É o holocausto africano. Mas pouco se ouve falar sobre ele porque ocorre na floresta densa de um continente esquecido, a África, não mata brancos, não ameaça o Ocidente. Pelo menos, até agora.
O Congo é a maior e mais cara missão da ONU. E o retrato mais visível de seu fracasso.
“Muzungu! Muzungu!”, gritam as crianças ao ver uma equipe da organização Médicos sem Fronteira (MSF), que chega para atender feridos. Não há. Nesse tipo de ataque, os rebeldes não deixam vivos para trás – matam os que podem alcançar. A ajuda humanitária trata outros fantasmas que assombram o Congo: malária, sarampo, cólera, desnutrição, infecções, traumas. Muzungu quer dizer branco – a MSF é uma dos raras entidades que chegam à região remota, com acesso dificultado por estradas esburacadas, enlameadas e dominadas por grupos armados.
Lwibo fica em uma área limítrofe entre territórios controlados pela Aliança de Patriotas por um Congo Livre e Soberano (APCLS), formado por homens da etnia hunde, e as Forças Democráticas para a Liberação de Ruanda (FDLR), de hutus (veja mapa na página A15). Numa espécie de vácuo, o vilarejo fica exposto a ataques de forasteiros como Sheka, de outra região – o que faz com que a população prefira estar sob a mão pesada de um grupo rebelde de sua etnia, que lhes cobra impostos em troca de proteção.
As chacinas de homens, os estupros de mulheres e os sequestros de crianças tornaram-se armas de guerra no Congo. Servem para humilhar o oponente e mandar-lhe um recado: não mexa com a minha área ou vou invadir seu território e massacrar seu povo.
Cobiça. É uma guerra travestida de conflito étnico, mas que esconde interesses mundanos: os trilhões de dólares enterrados no solo vermelho do leste do Congo. O maior país da África subsaariana é também o mais rico em recursos naturais, confiscados desde a colonização belga. Hoje, essa riqueza financia as milícias sem que o povo veja um tostão. Ao contrário disso, são explorados no trabalho pesado das minas.
Ouro, diamantes, coltan – minério que contém tântalo, usado em aparelhos de celular e tablets – são contrabandeados para países vizinhos como Ruanda, Uganda e Burundi. Calcula-se que apenas 10% das minas do Congo sejam exploradas legalmente.
O comandante Sheka era responsável por um dos centros de negociações de minérios da estrada entre Lobuto e Walikali, onde estão pequenas aldeias satélites das minas escondidas na floresta. Um dia, ele matou o patrão, roubou seu dinheiro e iniciou seu próprio grupo Mai-Mai – nome dado às gangues locais, com interesse puramente econômico.
Em uma pista improvisada de pouso na altura de Kilambo, pequenos aviões aterrissam e decolam com frequência. “Trazem equipamentos para mineração e voltam levando sacos de minerais”, disse ao Estado o especialista de uma organização internacional, há sete anos no Congo. “O destino oficial é Goma, mas extraoficialmente… Como explicar que Ruanda e Uganda se tornaram exportadores de minérios? Onde estão suas minas? Vendem para mercados como a China e, de lá, para EUA e Europa, que lavam as mãos sobre a procedência.”
O governo congolês é visto como fraco e corrupto. Enquanto a reportagem conversava com moradores de Lwibo, jovens do FDLR passavam caminhando tranquilamente com velhas Kalashnikov; um deles trazia um porco no laço e uma AK-47 personalizada – o cabo de madeira pintado de branco e o metal de um dourado reluzente, possivelmente ouro.
À luz do dia, controlam vilarejos e estradas. Vigiam seus impérios miseráveis do alto de pequenos montes – milicianos desleixados e maltrapilhos, armados com fuzis de assalto, o cinturão de balas à tiracolo, óculos escuros com o aro irremediavelmente dourado e um cigarro de bangi (a maconha congolesa). Pela estatura, alguns aparentam ter 11 ou 12 anos, mas num país como o Congo não é possível saber a idade – a desnutrição impede o crescimento, enquanto a guerra endurece o semblante e envelhece seus rostos, enrugados e com marcas de navalha. São crianças velhas.
Entre Lwibo e Masisi, havia pelo menos três postos de checagem: cabanas de madeira e cancelas de bambu, onde os rebeldes cobram pedágio de camponeses que passam com banana, mandioca, amendoim para vender no vilarejo mais próximo – tomam-lhes algo como 10% da colheita.
“Todos os grupos armados sobrevivem da exploração das minas. É uma questão-chave desse conflito. Os impostos são um complemento”, disse o especialista.
O Estado viu minas de coltan – pequenas Serras Peladas negras – e, à noite, caminhões sendo abastecidos com o material sob a vigilância dos rebeldes. Um bando armado estava a 500 metros da base da Missão da ONU em Nyabuondo. Dois jovens se aproximam do carro da MSF, que transportava uma grávida em trabalho de parto. Só se vê o brilho do cano de seus fuzis e o branco dos olhos. Querem revistar o carro. “MSF!”, avisa o motorista. A organização, neutra, não permite que homens armados entrem no carro e trafega sem seguranças. “Sigara! Um cigarro!”, eles pedem. E somem na escuridão.
PARA ENTENDER - Ruanda, o início da crise
O conflito na República Democrática do Congo está diretamente ligado ao genocídio em Ruanda, em 1994, quando morreram quase 1 milhão de pessoas, em sua maioria tutsis massacrados por hutus. A tensão étnica cruzou a fronteira para as terras sem lei do leste do Congo, onde grupos rebeldes começaram a se organizar e a ocupar as áreas ricas em minérios.
Uganda e Ruanda invadiram o Congo em 1997, depondo Mobutu Sese Seko, o ditador que liderou a nação por 32 anos. Em seu lugar, assumiu Laurent-Désiré Kabila, que foi assassinado por um guarda-costas, em 2001, e sucedido pelo filho, Joseph Kabila.
As tropas estrangeiras se retiraram oficialmente no início dos anos 2000 e deram lugar aos capacetes azuis da ONU. Isso não evitou os conflitos e o escoamento de milhões em riquezas congolesas pelas fronteiras. Os vizinhos são acusados de ajudar grupos rebeldes como o M23, que em dezembro tomou de assalto Goma, a principal cidade do leste do Congo e centro das operações da ONU.
“O M23 assumiu parte do lucrativo comércio de ouro, contrabandeado através de Uganda e Burundi e vendido para os Emirados Árabes Unidos, antes de ir para os bancos e joalherias que compõem 80% da demanda global de ouro”, diz o relatório divulgado no dia 9 pela ONG Enough, que trabalha pelo fim dos conflitos na África.
Novo grupo islâmico atua em conflito e preocupa ONU
‘Estado’ tem acesso a relatório sobre o treinamento militar de extremistas em ilha do Lago Vitória
Um grupo extremista islâmico passou a ser uma das maiores preocupações da comunidade internacional na República Democrática do Congo. Vídeos que integram um relatório interno da ONU, ao qual o Estado teve acesso, mostram imagens gravadas de um campo de doutrina religiosa e treinamento militar, supostamente mantido pelo grupo, em uma ilha do Lago Vitória, entre Tanzânia, Uganda e “Os vídeos são assustadores porque você vê muitas crianças”, disse ao Estado um funcionário da ONU que teve acesso às imagens. “Quando se fala em crianças soldados, normalmente são meninos de 15, 16, 17 anos. Mas, neste caso, são realmente pequenos e já aprendem o Alcorão. E outros, de uns 8 anos, armam e desarmam Kalashnikovs em tempo recorde diante de treinadores com um cronômetro.”
Os homens têm a barba longa e alguns deles usam turbante; as mulheres sequestradas são obrigadas a usar burca. “Quando iniciam a saudação militar, de dentro das vestes, surgem as Kalashnikovs. Foi uma surpresa.”
Segundo o diagnóstico entregue à ONU, o grupo sequestrou pelo menos 170 pessoas desde novembro. “Não temos notícias de nenhuma dessas pessoas desde então. Não foi pedido resgate e não encontramos corpos. Entre eles, há três padres.”
O ADF foi formado por seguidores do ex-ditador da Uganda, Idi Amin Dada, de uma família de convertidos ao Islã. Há um mês, a ONU criou uma força-tarefa para acompanhar os movimentos do grupo. Segundo o relatório, há quenianos, ugandenses e outros de origem incerta que falam árabe.
“Sabemos que recebem dinheiro do Oriente Médio. E, ao contrário de outros grupos que cobram impostos de moradores, o ADF investe em pequenos negócios, como mototáxis e padarias, e fica com parte dos lucros”, diz o funcionário da ONU.
O grupo tem entre 1,5 mil e 3 mil combatentes e controla partes da Província Oriental, na fronteira com Uganda, além das estradas entre Beni e Kamango e entre Beni e Kasindi.
“O ADF é uma preocupação porque está aumentando e reforçando sua presença no norte, tem forte ideologia e está desenvolvendo uma rede de negócios”, admitiu o chefe do escritório da ONU em Goma, no leste do Congo, Ray Torres. “Temos informações de que planejam uma operação contra as forças do Congo. Por isso, é preciso monitorá-los.”
FONTE: Estado de São Paulo
”Não acredito em conflito étnico no Congo’, diz general brasileiro
“Eu não acredito em conflito étnico! Os grupos (que atuam no leste do Congo) agem como criminosos por interesses econômicos e temos de neutralizá-los”, discursava o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, em uma manhã abafada e empoeirada, no alto de um morro em Kibati, no leste conturbado da República Democrática do Congo. Atentos, os 15 embaixadores do Conselho de Segurança (CS) da ONU suavam sob o sol escaldante – entre eles, Samantha Power, dos EUA, que anotava tudo a lápis em seu bloquinho.
A visita do CS foi uma primeira avaliação sobre o andamento do novo mandato, que deu às tropas de paz da ONU, comandadas desde junho pelo militar brasileiro, maior poder de força contra grupos armados. A guerra no Congo dura quase 2 décadas e já deixou mais de 6 milhões de civis mortos – o que a ONU não conseguiu evitar.
O novo mandato tenta corrigir isso. “Santos Cruz é visto como a pessoa mais competente para a função, porque traz na bagagem a experiência no comando de uma força de paz agressiva no Haiti, que teve resultados”, diz Jason Stearns, especialista em Congo, que liderou para a ONU um estudo sobre a violência no país.
O novo mandato foi aprovado no rastro de uma ação do grupo rebelde M23, que em dezembro tomou de assalto Goma, o centro das operações da ONU no país. Eles bombardearam a cidade e chegaram a ocupar ruas e o aeroporto. Mais do que uma demonstração de força, o ataque foi um golpe contra a organização e alimentou a hostilidade da população, que se sente desprotegida e critica a inoperância das tropas de paz.
Após novas ofensivas, os capacetes azuis da ONU, já sob o comando de Santos Cruz, empurraram o grupo para zokm fora dos limites da cidade, em uma batalha que durou nove dias. “Estamos impressionados com a rapidez com que o mandato foi implementado. Ele começou no meio de uma crise, mas já conseguiu dar à missão o caráter mais robusto que esperávamos e mandou um recado muito claro aos grupos armados ao expulsar o M23 de Goma”, disse ao Estado o embaixador da Grã- Bretanha no CS, Mark Grant.
Aos 61 anos, com 1m75 e 75 quilos mantidos desde a juventude com uma rotina pesada de exercícios, o engenheiro formado em política no Army College dos EUA e ex-adido militar na Rússia é visto pelos subordinados como um “combatente”. “Ele é maluco. Bombas caindo e ele caminhava no campo, liderando as tropas do solo. É um combatente de verdade”, disse um soldado indiano sobre a batalha de Kibati.
Nessa entrevista, em duas datas – em Kinshasa, capital do Gongo, e em Goma, durante a visita do CS, o general brasileiro mostra a sua visão do conflito e revela a estratégia para proteger civis e recuperar a credibilidade da ONU.
Críticas. A maneira de fazer a população voltar a ter confiança nas tropas de paz é com ação. No Congo não há outra opção, se não agiu Só quando eliminarmos, neutralizarmos os grupos armados teremos o reconhecimento da população. É por isso que temos de mudar a atuação das tropas. Diante das violações contra civis, você tem de acelerar o combate.
Estratégia. Temos hoje tropas em 83 partes do Gongo. Essa configuração se deu porque havia uma concepção de que era preciso estar perto da população para que se sentisse protegida. Mas num país de proporções continentais isso é impossível. Com a experiência que temos agora, percebemos que devemos mudar esse caráter de polícia das tropas. Precisamos nos antecipar às ameaças, ir atrás (dos grupos rebeldes), neutralizá-los e não apenas estar com a população de forma estática. Essa atitude tem de ser substituída por outra, mais dinâmica e pró-ativa. Mas, para isso, é preciso ter uma unidade no entendimento sobre o novo mandato. Foi o que eu disse ao CS.
Uso da força. Uma missão de paz não quer dizer que as tropas tenham de ser pacíficas todo o tempo. Você tem de usar força porque, muitas vezes, é a linguagem que o outro lado entende. É muito simples. Basta você expandir o conceito de legítima defesa. Se você agir apenas depois que um ataque ocorreu, já foi. A chacina já ocorreu, mulheres foram estupradas e crianças sequestradas. A única forma de evitar isso é se antecipar às ações dos grupos, desarmá-los, desmobilizá-los, impedir que possam atuar.
Negociações políticas. A ação militar sozinha não pode acabar com um conflito de 20 anos. Tem de haver a parte política. Mas as tropas também têm um papel nisso. Se o outro lado não estiver suficientemente pressionado, por que vai querer negociar? Você tem de agir de uma forma com que não reste nenhuma opção aos grupos : armados, se não negociar.
Acordo de Estive em Kampala (onde ocorrem negociações entre o M23 e o governo, mediadas por . Uganda) e meu recado foi: se eles decidirem se desarmar, vamos protegê-los com a mesma força com que os combatemos meses atrás? Mas o acordo em Kampala está demorando muito para sair. A desvantagem é que durante essas negociações, os grupos rebeldes têm a chance de se reorganizar, de se armar novamente.
A luta contra o M23. A batalha (de agosto) contra o M23 foi de uma intensidade indescritível. Eles tinham armamento e se comportavam como um Exército regular. E isso precisa ser melhor investigado. Eles estão numa área não muito rica (em minérios). Como conseguem uniformes, armas, munição?
Desafios. Em primeiro lugar, há uma centena de grupos armados no leste do Congo. É impossível ter o mesmo nível de dinamismo contra todos eles simultaneamente. Outro problema é que nem todos os grupos armados são um alvo definido, pois eles se misturam com os civis, nem sempre usam uniformes, nem sempre têm armas à vista. Em terceiro lugar, nossa ação deve ser conjunta com o governo congolês. Se afastamos os rebeldes de uma área, o Exército tem de ocupar o lugar e, assim, as tropas de paz têm mobilidade para se deslocar a outro lugar. Do contrário, você vai ficar imobilizado. E se desloca tropas de um lado para o outro, sem deixar ninguém em seu lugar, esse vácuo será rapidamente ocupado por outro grupo armado.
FONTE: Estado de São Paulo
queria saber qual foi o gasto militar na guera do congo e seus efeitos militares
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