Mês passado, escrevi sobre as questões reais por trás da ação da empresa-ONG Greenpeace no Ártico russo. Naquele artigo mencionei vários exemplos de atividades relacionadas à avançada no Ártico iniciadas no governo de Vladimir Putin:
Há alguns anos, um submarino russo pôs uma bandeira russa no Polo Norte, como sinal claro de que a Rússia declarava sua participação nos recursos polares. Desnecessário dizer, EUA, Canadá e União Europeia não gostaram. Mas nada há que possam fazer, dentre outros motivos porque as tecnologias polares russas estão anos-luz à frente do que existe no ocidente. Não apenas os submarinos russos são muito mais bem adaptados às condições polares de operação que os ocidentais, mas os russos também têm navios quebra-gelo que lhes permitem abrir rotas em gelo muito espesso (e outros desses navios estão sendo construídos).
Vladimir Putin
As tecnologias ocidentais sempre foram mais “orientadas para o Equador”. Por exemplo, o sistema de navegação por satélite dos EUA (US GPS) é mais acurado em baixas latitudes; o russo GLONASS é mais acurado nas regiões polares.
Praticamente toda a potência da Marinha dos EUA está concentrada nas águas mais quentes do mundo. Diferente disso, a frota russa mais poderosa e mais bem equipada sempre foi a Frota do Norte, usada para operar em condições polares.
Com Putin, a Rússia embarcou num plano ambicioso para defender seus interesses no Ártico: velhas bases polares abandonadas estão sendo reabertas e foi criada uma divisão especial armada, para operação polar. A Força Aérea Russa retomou um intenso programa de operações no Ártico, e a Marinha iniciou um ciclo de manobras regulares no Ártico, com seus mais avançados navios de superfície (...) Fato é que o ocidente não tem nem o know-how nem o dinheiro necessários para tentar acompanhar os movimentos dos russos naquelas regiões.
E concluí, lembrando que, afinal, o ocidente ainda pode contar com algumas utilíssimas ferramentas da Guerra Fria: as organizações não governamentais, que são empresas, ditas “independentes”.
Naquele momento, contudo, não sabia que, enquanto eu escrevia aquele artigo, a Frota Russa do Norte estava no meio de vasta, massiva operação, sem precedentes, para construir, em apenas um mês, um “aeroporto ártico”. Há poucos dias, o canal de televisão das Forças Armadas Russas, Zvezda, exibiu interessante matéria sobre a missão, que mostra muitas das tecnologias “de Ártico” das quais falei no artigo do mês passado.
O vídeo é falado em russo, mas é autoexplicativo. Adiante, escrevi um resumo dos pontos importantes. Assista ao filme a seguir e, se precisar, leia aqui o resumo.
Eis alguns dos itens chaves mostrados ou mencionados no filme:
No início de setembro, 10 navios viajaram de Severomosrk até a Ilha Kotelnyi. Os objetivos oficiais da missão eram:
1) manter a presença militar russa no Ártico; e
2) defender interesses econômicos da Rússia no Ártico.
Como parte dessa missão, essa força tarefa recebeu ordens de construir um aeroporto, que teria de estar completamente funcional em menos de um mês; e encerrar completamente a missão antes do início de novembro. Além de alguns poucos navios de transporte, compuseram a força tarefa as seguintes naves:
1. O cruzador nuclear Peter Velikii (a embarcação mais pesadamente armada do planeta);
2. grandes carros anfíbios de ataque;
3. o quebra-gelo nuclear Vaigach;
4. o quebra-gelo nuclear Iamal;
5. o quebra-gelo nuclear Taimyr; e
6. o quebra-gelo nuclear “50 anos da Vitória”.
Significa que toda a frota nuclear da Rússia foi mandada para acima do paralelo 73, cruzando três mares árticos (o Mar de Barents, o Mar de Karsk e o Mar de Laptev), o que é mais de 4.000km, em menos de uma semana. A força tarefa foi comandada por Vladimir Korolev, comandante-em-chefe da Frota Norte e incluiu a nave madrinha da Marinha Russa, o pesado cruzador nuclear Peter Velikii, sob comando do 1º Capitão Vladislav Malakhovskii.
No curso da jornada, a força tarefa treinou interceptação de mísseis abaixo do alcance visual e missões de reconhecimento por helicóptero até a 200km de distância da força tarefa.
Quando a força tarefa chegou à Ilha Kotelnyi, unidades anfíbias de assalto da Infantaria Naval começaram por montar a rede de segurança da área de atracação e desembarque. Em seguida desembarcaram mais forças para limpar a área (que será declarada reserva natural) e despacharam-se batedores para localizar fontes de água potável. Montaram-se tendas polares especiais, que mantêm a temperatura interna entre 25C-28C, sejam quais forem as condições externas.
A força tarefa começou a trabalhar 24 horas/dia (naquele local, o “dia” dura apenas 4 horas); os helicópteros descarregaram 13 módulos de habitação e convivência e 4 contêineres. Foram descarregadas toneladas de roupas e botinas especiais. Em poucas horas, estavam operantes a comunicação por satélite e a Internet. Construiu-se um hospital, com completo centro cirúrgico (ver mapa abaixo).
Ilha Kotelnyi - mancha verde-escuro no centro.(clique na foto para aumentar)
A construção do aeroporto começou por uma pista totalmente pavimentada. Por ela foram desembarcados, de um navio de carga, todos os veículos especiais de transporte necessários para dar mobilidade às forças desembarcadas, inclusive hidroaviões e veículos anfíbios.
Ali, em menos de um mês, construiu-se um aeroporto capaz de operar pousos e decolagens durante todo o ano, 24 horas/dia, com radares e sistemas aéreos de defesa eficientes e operantes. 8.500 toneladas de areia e cimento tiveram de ser trazidas de fora, para construir as fundações e a pista de rolamento desse moderno aeroporto.
A primeira aeronave que pousou no aeroporto ‘Temporário’ foi um An-72. Logo depois, aviões de transporte Il-76 passaram a entregar cada vez mais suprimentos, em contêineres baixados por paraquedas. O aeroporto, na sequência, recebeu todo o pessoal que passaria a operá-lo (50 especialistas militares).
Com o tempo, as tendas polares foram substituídas por sólidas construções modulares para habitação, em que se utilizam materiais de alta tecnologia capazes extrair calor mesmo sob temperaturas de -40C.
Na sequência, mais bases semelhantes a essa serão construídas nas ilhas Franz-Joseph e Wrangel e, a partir dessas, ao longo de todo o litoral norte da Rússia – servirão como guia e para proteger a navegação civil e comercial através da “Entrada Norte” da Rússia
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Por causa do caráter “Relações Públicas”, o vídeo acima foca equipamentos e tecnologias, e passa muito depressa, com breve menção, sobre a importância imensa, crucial, de operar em condições árticas. Só num específico momento no vídeo vê-se um oficial comentar a complexidade da operação de pouso nessas circunstâncias; diz que “há material de estudo suficiente aqui, para escrever uma tese”; e tem razão.
Há muito mais em operações militares no Ártico que apenas roupas quentes: as condições são tão dramaticamente extremas que se pode pensar naquele ambiente como se fosse outro planeta. É o motivo pelo qual se ouve o comandante-em-chefe da Frota Norte comentar, com orgulho, que “poderíamos ser chamados de Frota Norte e Ártica”.
Nenhum outro país no mundo tem hoje o know-how e as capacidades que a Rússia tem no Ártico, nem perto disso, e a Rússia de Putin avança com elas a toda a velocidade.
Mapa político da Região Ártica(clique no mapa para aumentar)
Mostra a principal vantagem de que goza a Rússia, sobre as demais nações árticas: a Rússia tem, dentre elas, o mais longo litoral, e não esqueçam que o extremo norte da Rússia é habitado. Se EUA, Canadá, Dinamarca ou Noruega vierem a ter bases árticas, elas estarão muito, muito distanciadas do resto do país. No caso da Rússia, os postos do extremo norte são ligados organicamente à “terra grande” – que é como os russos referem-se com frequência as partes mais acessíveis do país.
Outro mapa que vale a pena examinar foi desenvolvido pela Unidade de Fronteiras Internacionais da Durham University; mostra as potenciais jurisdições marítimas e as zonas econômicas exclusivas, se o Tratado da Convenção da Lei do Mar estivesse plenamente implementado. O mapa e legendas estão logo abaixo:
Mapa das águas territoriais e fronteiras marítimas conforme a Convenção da Lei do Mar (clique no mapa para aumentar)
A Convenção da Lei do Mar foi assinada na ONU, por 157 países. Se se olha o mapa acima, pode-se ver facilmente que, dentre os grandes países, só os EUA não assinaram aquela Convenção. Porque, nos termos daquele tratado, só cabe aos EUA uma fatia estreita acima do Alasca. Até agora, o governo dos EUA ainda nada reclamou em termos agressivos, mas inúmeros políticos e praticamente todos os especialistas concordam que os efeitos do aquecimento global e necessidades econômicas imperativas farão, do Ártico, muito em breve, uma arena crucial, onde se confrontarão interesses internacionais.
Nesse contexto, afinal, é que toda a “operação” da ONG Greenpeace deve ser compreendida:
– No Ártico, a Rússia tem amplíssima vantagem geográfica e tecnológica. A Rússia é também o único país com significativa capacidade para projetar o próprio poder no Ártico. A Rússia tem desejo político e os necessários recursos financeiros para apoiar suas justas reivindicações, nos termos da Lei do Mar. Agora, a Rússia também já demonstrou que tem plenas, importantíssimas capacidades militares e tecnológicas. A única opção que resta ao “mundo anglo” (a “Anglosfera”) é tentar ou bloquear politicamente o avanço da Rússia ou, pelo menos, retardá-lo o mais possível. [Daí usar os prestimosos e bem remunerados serviços da Greenpeace (Nota da redecastorphoto)].
E a Mãe Natureza? Pode-se dizer que a importância que se dá a ela é proporcional à riqueza que um ou outro ponto ofereçam. Enquanto o Polo Norte foi terra inacessível, ninguém deu importância alguma à poluição que a União Soviética ou a Rússia pudessem gerar. Mas hoje, de repente, é prioridade absoluta e não se fala de outra coisa... [Daí a ação desta e outras ONGs ecológicas como as que agem contra a construção de Belomonte, p. ex.. (Nota da redecastorphoto)]
A coisa mais realmente triste é que o legado soviético de poluição é particularmente terrível no norte da Rússia; e de modo algum se pode admitir que o trabalho de recuperar e preservar aquela região seja atribuído a grupo militante tão fortemente financeiro-politizado como o Greenpeace.
Em outras palavras, o Greenpeace é piada metida a “ecológica”; mas a preservação do Ártico é assunto seriíssimo, e todos os países com acesso ao Ártico deveriam estar sendo pressionados para respeitar aquele ecossistema sem igual.
O fato de que a operação militar russa na Ilha Kotelnyi tenha começado por vastíssima operação de limpeza é ótima notícia; também é ótima notícia que a ilha será declarada área de preservação da natureza.
Esperemos que esse primeiro movimento dos russos não seja só ação de propaganda de um só evento; e que o modelo seja implementado daqui em diante, para todas as futuras expedições russas no Ártico.
Sobre os ativistas, a Rússia bem faria se os libertasse. Como fez bem ao confiscar todo o equipamento e aplicar pesadas multas à ONG-empresa Greenpeace. É no bolso – muito mais que em relação a alguma “causa” – que os doadores e administradores que mantêm essas empresas-ONGs, e tratam os militantes como bucha-de-canhão e ferramenta de propaganda, mais sentem os golpes.
[assina] The Saker
Redecastorphoto
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