Mural a Batalha do Avahy, com 6 m por 11 m, pintado por Pedro Américo.
Com 50 metros quadrados povoados de cores e movimento, a tela Batalha do Avahy se impõe como um dos mais monumentais registros iconográficos da história do Brasil. Para criar um livro sobre a tela de Pedro Américo, a Sextante preparou um álbum em formato grande, com capa dura e páginas repletas de imagens e textos resultantes de mais de dois anos de pesquisa. Assinado pela historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, o volume A Batalha do Avaí chega às livrarias no momento em que o sangrento embate completa 145 anos – a batalha foi travada em 12 de dezembro de 1868.
– O choque representado na tela de Américo faz parte das “dezembradas”, ou seja, as investidas sanguinolentas que vão destruir o Paraguai. Pensava-se que a Guerra do Paraguai seria um conflito indolor e rápido, mas ela acaba sendo um divisor na história do Império Brasileiro, representando seu apogeu e o início de sua decadência – analisa Lilia.
Ocorrida entre 1864 e 1870, a Guerra da Tríplice Aliança, como também é conhecida, elevou D. Pedro II ao status de monarca estadista, mas terminou aguçando as contradições brasileiras de modo irreversível: o exército se engrandeceu e ganhou importância política, mas deixou de perseguir escravos por ter lutado ao lado destes no campo de batalha. Assim, o movimento abolicionista ganhou corpo, e o Partido Republicano foi criado logo a seguir.
Com diferentes interpretações ao longo do tempo, o livro também busca fazer um balanço historiográfico a respeito da Guerra do Paraguai, como explica Lilia:
– Cada época mudará o modo como compreende um evento por conta de suas próprias questões. Existe a interpretação de um Paraguai idealizado, corrente dos anos 1970 e 1960, ligada a uma certa resistência ao capitalismo, colocando o país vizinho em um patamar visionário e injustiçado. Também há a interpretação de que o presidente paraguaio Solano López era um líder caudilho. Esta última é uma visão bastante positivista, caudatária do século 19. No momento, os pesquisadores tem colocado estas interpretações todas em contraste.
A pesquisadora, no entanto, não esconde sua própria maneira de ver o conflito:
– Acredito que havia uma questão estratégica que precisa ser examinada, ou seja, é necessário compreender como os diferentes Estados Nacionais estavam tentando lidar com suas diferentes dificuldades e desafios. Aposto muito na tentativa de entender o que significava a guerra para cada um dos lados. Nesse sentido, a tela do Pedro Américo carrega a interpretação do lado brasileiro
A contextualização histórica do conflito está presente em todo o livro, mas não é seu eixo condutor, como explica Lilia:
– Nós, pesquisadores, temos a tendência de encarar imagens como reflexo ou ilustração dos fatos, no entanto, o livro faz o contrário: traz a imagem como documento principal – diz a historiadora.
Ao lado dos alunos Lucia Klück Stumpf e Carlos Lima Junior, bem como do designer gráfico Victor Burton, Lilia liderou um extenso estudo sobre a tela, que já era tema de discussão em sua disciplina Lendo Imagens, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
– Usamos a tela como um documento a ser investigado, buscando apurar quais eram os constrangimentos sociais do momento, que implicações causava o fato de a tela ser uma encomenda, qual era a interpretação do episódio por parte do autor, entre outras características.
Produzida na Itália, sob encomenda do Estado, a tela foi iniciada em 1872 e concluída em 1877, quando Pedro Américo de Figueiredo e Melo tinha apenas 34 anos. O jovem artista paraibano, que iniciou seus estudos às expensas do mecenato de D. Pedro II, morava então em Florença.
Mas engana-se quem supõe que a estreita relação de Pedro Américo com o imperador pudesse resultar em uma versão oficialista da batalha na pintura.
– Américo acaba expondo na tela vários pontos com os quais o Estado não iria concordar de modo algum, no entanto eram marcas das próprias convicções do pintor, que tinha um pendor republicano.
A presença de negros na imagem é um dos pontos mais marcantes de oposição de Américo ao Estado. Até então, a iconografia oficial do Império escondia elementos associados à escravidão na tentativa de passar uma imagem de realeza conectada com os padrões europeus. Já do lado do Paraguai, havia toda uma contrapropaganda, com textos e ilustrações em periódicos que chamavam o exército brasileiro de “os negrinhos”, apontando o Brasil como um país degenerado ao abrigar a “raça imunda”, como classificava um exemplar do jornal Cabichuí de 1867.
A presença dos negros não só é grande, como também é revestida de um caráter igualitário com os soldados brancos. O próprio Pedro Américo, que pintou a si mesmo no centro do quadro como um combatente, aparece ladeado por soldados de origem africana.
Outra característica da tela que causou algum estranhamento quando ela chegou ao Brasil em 1877, foi a oposição entre os papéis de Duque de Caxias e General Osório. Enquanto Caxias aparece em uma colina, observando de longe a caótica batalha, Osório está lutando e é retratado com um filete de sangue na boca – o general foi realmente ferido naquele combate. Osório também se distingue de todos os oficiais ao usar um poncho, vestimenta que o general gaúcho de fato usava com frequência e era bastante associada à sua figura, de acordo com mais de uma biografia.
– Osório era tido como um herói popular e existiam lendas de que ele tinha o corpo fechado. Pedro Américo ajuda a promover, de alguma forma, esta imagem idealizada – analisa Lília.
Sobre o afastamento de Caxias, Pedro Américo sempre argumentou que este ocupava um lugar de destaque coordenando os soldados à vitória, e que sua vida não poderia de modo algum ser arriscada em batalha.
Por outro lado, o caráter de tela feita sob encomenda se manifesta em várias cenas que podem ser captadas ao mirar o quadro. É perceptível todo um trabalho de Américo na busca de apresentar o exército brasileiro como um representante da civilização ocidental, enquanto os paraguaios representavam a barbárie.
As fardas bem alinhadas e impolutas dos brasileiros contrastam com o corpos seminus e descalços de seus inimigos. Para tanto, Américo fez estudos aprofundados das vestes usadas em batalhas, recebendo peças de Duque de Caxias enquanto pintava na Itália.
– Pedro Américo pesquisou pra valer para compor a tela. No entanto, não é crível que na hora da batalha, quando choveu imensamente, a tropa estaria incólume como é representada. Nas telas paraguaias, por outro lado, jamais os soldados são apresentados seminus – pondera Lilia.
Há outros detalhes que aguçam o caráter vil com que o autor representa os paraguaios, como a imagem de um homem que aparece roubando moedas no meio do conflito. A tentativa era de convencer que, além de maltrapilho, este tratava-se de um povo de ladrões bárbaros.
Para Lilia, todas essas características da tela seguem repercutindo no Brasil dos dias de hoje:
– O salão em que o trabalho de Américo foi apresentado se tratou de um dos mais movimentados que o Brasil já conheceu. Dentro do Rio de Janeiro, a repercussão foi imensa, os periódicos também falaram muito sobre o trabalho. Podemos pensar que até hoje continua sendo assim. Se alguém pegar os livros didáticos escolares, vai encontrar lá o quadro. A repercussão não foi só no contexto: a gente lembra da batalha por conta dessa imagens.
A exibição pública da tela foi realizada em 1879, ao lado do quadro A Batalha do Guararapes, de Victor Meireles, que também era um dos protegidos de D. Pedro II. O quadro de Meireles, com muito menos movimento que o de Américo, tinha seu caráter estático aguçado quando visto diante da enérgica cena de Américo. Os jornais da época e a população tomavam partido de um quadro ou de outro. A contenda entre as telas fez com que sua divulgação fosse ainda mais ampliada.
Victor Burton, que idealizou o projeto do livro para a editora Sextante, explica que a movimentação do quadro é uma das suas características mais marcantes:
– Sou fascinado por essa tela desde menino, há muitas cenas dentro dela, e muitas têm a violência digna de um filme de Tarantino – brinca o designer.
Folhear as páginas do livro é, de certa forma, uma experiência cinematográfica. Panorâmicas das cenas são seguidas por aproximações aos detalhes, constituindo um verdadeiro efeito de zoom. Para causar essa experiência no leitor, a tela foi fotografada em uma verdadeira operação de guerra no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio.
– Precisamos fazer todas as imagens num dia só, mas eu e Lilia já havíamos decupado todas as cenas que queríamos. Cada imagem de detalhe que aparece no livro foi fotografada muito próxima ao quadro, não se tratam de cortes e ampliações de outras imagens. A ideia é não só reproduzir, como poder aguçar o olhar, revelando detalhes não tão perceptíveis.
O tempo de pesquisa, as viagens ao Paraguai e a captação de imagens, bem como outras despesas, são iniciativa da editora que resolveu abraçar o projeto. Sem leis de incentivo ou patrocinadores, A Batalha do Avaí trata-se de um exemplo singular de iniciativa privada. Burton explica que o gosto pessoal do editor Marcos da Veiga Pereira pelos livros de arte facilitou o empreendimento, mas este não se trata de um projeto feito unicamente para satisfação pessoal dos envolvidos:
– Temos convicção de que vários estratos de leitores podem se interessar pelo livro. Além dos interessados em arte, o tema atrai os que gostam de ler sobre história. Um jovem leigo pode se encantar pelas imagens, por exemplo, assim como um acadêmico pode encontrar ali uma fonte de conhecimento.
A tiragem inicial é de cinco mil exemplares, quantidade que barateia o custo de cada exemplar, e já há expectativa de novas reimpressões. Burton adianta que o grupo vai continuar editando livros iconográficos com formatos semelhantes:
– Estamos pesquisando trabalhos representativos de momentos sócio históricos importantes que possam interessar a um público vasto, mas sem perder a qualidade e nem vulgarizar o conteúdo.
Defesa Net
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