Estou pensando é que, como parte de um acordo Assad/Rússia com os “rebeldes não islamistas” (rótulo arbitrário e em vasta medida errado), há a atual batalha, em geral (a linha divisória, aí, é MUITO fluida e indefinida), dos combatentes estrangeiros versus os combatentes locais. Esse acordo (se existe) é muito nebuloso, envolve muitos “ses” e o resultado almejado é um grande Goat Rodeo [1]. O tipo de caso que vivem nessa área (tanto geográfica como no nível de política externa).
Como parte de estarem voltando do frio, os combatentes com bases locais recebem instruções para limpar a casa (livrar-se dos extremistas doidos) e, então, será possível algum acordo. Anistias, mudanças na Constituição (mas não faço nem ideia do que diga alguma Constituição por lá, nem se há lá alguma Constituição), talvez algum tipo de estrutura política semelhante à do Líbano, de partilha do poder (provavelmente limitada e local, considerando que os curdos seriam parte disso), e a serem completadas com eleições para todas e as mais variadas posições, estarão sobre a mesa. Isso tudo seria supervisionado, digamos, por Rússia, China e o Ocidente, sob a forma de, digamos, Alemanha, e/ou, mesmo, os EUA.
Obama consegue arremate decente para sua presidência (já em frangalhos; ele precisa de alguma coisa). Rússia consegue prestígio e algum retrocesso dos extremistas no seu flanco sul. China consegue negócios. Europa consegue negócios e oleogasodutos. Assad consegue alguma paz e alguma reabilitação, se quiser ou precisar disso, no campo das Relações Públicas, dependendo de como ele jogue o jogo. Os Sauditas conseguem ferro no traseiro.
Para observar, nos próximos dois, três meses: Turquia, Jordânia, Iraque e Arábia Saudita. A Turquia terá de entrar visivelmente na linha, nessa questão, porque antevejo algum tipo de federação síria com vasta autonomia para os curdos (problema muito espinhoso). A Turquia também tem de lidar com os combatentes estrangeiros em seu território, agora que estão voltando da Síria, e com a importância que lhes foi dada quando os turcos mudaram sua política externa há dois, três anos. A Jordânia manteve-se em papel relativamente discreto, mas enfrenta problema semelhante. O Iraque terá de lidar com os extremistas (chame-os como quiser, são eles!) que também estão voltando para casa e fazendo já o diabo. Alguns desses já começam a manifestar-se (já visíveis, pelo menos, nos veículos da imprensa-empresa ocidental) em Fallujah, com as tribos visivelmente divididas em torno da Al-Qaeda no Iraque (AQI). Os sauditas (e Israel) vão berrar, blasfemar e ameaçar. Resta verificar até que ponto conseguirão impedir que aconteça.
Quanto a mim... minhas inclinações naturalmente pessimistas sempre me fazem duvidar de hipótese pela qual um dos lados da discussão, que antes era absolutamente irracional, converte-se repentinamente à racionalidade e põe-se a agir racionalmente. No caso presente, esse lado previamente irracional seriam dois: o Exército Sírio Livre e os EUA.
Participantes da reunião do G8 (grandes potências) em Lough Erne
Mas meu ceticismo é contrabalançado pelo fato de o acordo do G8 firmado em Lough Erne dizer coisa bem semelhante, exposto bem claramente. Citei parte do texto daquele acordo nesse blog, em junho de 2013 (palavras-chave em vermelho e meus comentários em verde):
Muito nos preocupa a crescente ameaça de terrorismo e extremismo na Síria, e também a natureza crescentemente sectária do conflito. A Síria deve pertencer a todos os sírios, incluindo suas minorias e todos os grupos religiosos.
Conclamamos as autoridades sírias e da oposição na Conferência de Genebra para que, conjuntamente, se comprometam a destruir e expulsar da Síria todas as organizações e indivíduos afiliados à Al-Qaeda e quaisquer outros atores não estatais ligados ao terrorismo.
(Frase espantosa! A insurgência e o governo da Síria são conclamados para CONJUNTAMENTE *destruir* as mesmas forças que os EUA querem armar?! Que o governo gostaria MUITO de destruir ou expulsar a al-Nusra é bem claro. Mas o Exército Sírio Livre? Estará o G8 realmente “convocando” para uma guerra civil dentro da insurgência?!).
Em junho, ninguém deu atenção àquelas palavras, mas o fato é que esse texto foi assinado pelo G8 e parecia sugerir exatamente o que se está vendo acontecer hoje.
Claro, o que está tendo lugar hoje pode absolutamente não ser resultado do acordo do G8, mas simplesmente resultado inevitável de um conflito cujas dinâmicas são em grande medida pré-ordenadas.
Se se assume que nem todas as forças anti-Assad são compostas de répteis takfiri; e se se assume que Assad está disposto a trabalhar com qualquer um, desde que não seja louco-furioso (e entendo que essas duas condições são razoáveis), nesse caso a coisa lógica é que todas as forças não takfiri unam esforços contra os doidos.
O que é indiscutível é que a infecção takfiri chegou agora a Fallujah no Iraque, o que, por sua vez, está acionando algum tipo de reação de EUA-Iraque-Irã, dado que ninguém pode correr o risco de perder alguma cidade estratégica para uma horda de wahhabistas ensandecidos. Objetivamente, EUA, Irã e Síria deveriam estar trabalhando juntos contra os malucos takfiri em toda a região.
O grande “SE” é se haverá alguém com os miolos e os colhões necessários na Casa Branca para compreender isso e trabalhar para isso.
Seja como for, a noção é tentadora, para dizer o mínimo. Penso em quantas vezes os russos dizem “cada wahhabista que Assad mate é um a menos, que não teremos de matar no Cáucaso”. E penso se alguém em Washington DC é capaz de aceitar a noção de que “cada wahhabista que Assad mate é um a menos, que não teremos de matar no Iraque/Afeganistão/Somália/Iêmen etc.”.
Entendo que JohnM está totalmente certo, quando diz que o impacto dessa mudança na dinâmica (assumindo que continue) sobre os países vizinhos será crucial.
Francamente, acho que os turcos agiram de modo descomunalmente estúpido; agora, têm de engolir que haverá um preço a pagar por sua arrogância. As opções que restam à Turquia são ruins: ou negociar com os curdos, ou negociar com os takfiri estripadores comedores de fígados humanos.
Entendo que a melhor escolha é óbvia: negociar com os curdos. Primeiro, os curdos são *racionais* e há ali, inclusive, um inimigo comum (os wahhabistas malucos). Segundo, é mais que hora de os turcos, afinal, começarem a buscar um acordo de longo prazo com os curdos, ou correm o risco de perder tudo. Se os turcos realmente crêem que possam “controlar” os curdos exclusivamente pela força, estão-se autoenganando; e é, do ponto de vista de uma negociação, muito melhor se negociarem com os curdos agora, quando também os curdos estão em situação difícil, que adiante, quando pode acontecer de os curdos alcançarem posição mais forte tanto no Iraque como na Síria (e esses dois governos já indicaram que estão dispostos a construir um acordo com os curdos).
Seja como for, quero registrar aqui, para discussão, essa hipótese:
– é possível que o que estamos vendo na Síria seja uma mudança estratégica nas alianças, e que a próxima fase da guerra será contra o Reino da Arábia Saudita; com monarquias do Golfo e vários franqueados da al-Qaeda em luta contra EUA, Síria, Irã, Hezbollah e os curdos?
Se não for isso... o que lhes parece que esteja acontecendo?
Saudações!
[assina] The Saker
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