Durante os trágicos episódios de Gaza, entre julho e agosto de 2014, as discussões ficaram polarizadas, sobretudo nas redes sociais e em menor medida nas mídias convencionais. Uns sustentaram o direito de Israel à autodefesa nesta “guerra” e outros acusaram tal Estado de praticar um massacre, limpeza étnica ou mesmo genocídio. Enquanto os primeiros seguiram acriticamente a linha oficial do establishment israelense, negando fortes evidências e transferindo a responsabilidade pelas perdas e danos civis ao Hamas, os segundos foram por muitos percebidos como se tendo deixado contagiar excessivamente pela indignação frente à destruição desmesurada e à alta porcentagem de não combatentes entre os mortos e feridos.
Analisando-se algumas fontes e teorias, o que ocorreu em Gaza parece ser a continuidade de uma Prática Social Genocida (PSG), iniciada no novo milênio. Esta teoria descarta as acusações de genocídio padrão, pois, afinal, o governo israelense dispõe de poderio bélico suficiente para exterminar toda a população palestina se assim o desejar, ainda que não possa fazê-lo devido à avassaladora pressão internacional que isso provocaria. Tampouco poderíamos manter a tese da guerra, que para se caracterizar como tal demanda uma correlação de forças completamente distinta da atual desproporcionalidade entre movimentos de libertação palestinos, relativamente pequenos, e uma das maiores e melhor preparadas forças armadas do mundo. No máximo poderíamos tentar argumentar que seria um conflito desproporcional ou “guerra de baixa intensidade”, mas o alto índice de destruição, mortes e ferimentos entre civis desacredita facilmente esse subterfúgio retórico.
Conforme o sociólogo argentino Daniel Feierstein, uma PSG é um processo deflagrado por um Estado visando à reorganização das relações sociais, que requer treinamento, legitimação e consenso, fato que os difere dos assassinatos massivos espontâneos. Uma PSG se inicia muito antes do aniquilamento e é concluída posteriormente, envolvendo processos de negação, ocultamento, renegação e legitimação. O objetivo não é aniquilar todos, mas uma parcela suficiente para atingir o conjunto social, produzindo efeitos simbólicos que reconfigurem suas escolhas políticas, relações sociais, destino e futuro. Transforma-se a sociedade toda “aniquilando aqueles que encarnavam um modo de construção de identidade social e eliminando – material e simbolicamente – a possibilidade de se pensar socialmente desse modo”.
Em Gaza, os governos israelenses almejam suprimir o apoio da população à resistência armada, ou mesmo ao nacionalismo palestino e, dentro de seu próprio território, garantir a adesão em torno da continuidade da colonização da Cisjordânia e do bloqueio e ocupação à distância da Faixa de Gaza. Sob a alegação da luta contra o terror e da autodefesa, Israel isolou completamente a população de Gaza, submeteu-a a severas restrições e a expôs a mortes violentas, que não acarretam em processos legais. O assassinato e o sofrimento civil são deflagrados impunemente pelo ocupante à distância, ao menos desde 2005, espalhando o terror entre a totalidade da população. Entre o final de 2008, início de 2009, uma comissão foi designada pela ONU para investigar a operação “Chumbo Fundido” contra Gaza. A conclusão oficial é a de que o objetivo israelense fora desferir um “ataque deliberadamente desproporcional”, visando “punir, humilhar e aterrorizar a população civil”, forçando “sobre ela um sempre crescente senso de dependência e vulnerabilidade”. A destruição perpetrada teria “o propósito de negar a subsistência à população civil”.
Analisando os relatórios parciais do Escritório da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários, sobressaem-se paralelos com a operação “Margem Protetora”, de 2014. Esta produziu efeitos semelhantes, com o terror novamente se abatendo sobre a população de Gaza, em proporções ainda maiores. Pelo menos 373.000 crianças passaram a necessitar de atendimento psicossocial direto e especializado, mais de um terço da população foi desalojada e 16.700 casas foram destruídas ou seriamente danificadas, tornando mais de 100.000 pessoas desabrigadas. Os serviços de água, esgoto e eletricidade chegaram a ser suspensos, devido aos danos provocados em seus sistemas de abastecimento. Dos 1.960 palestinos mortos até então, mais de 80% seriam civis, sendo 458 crianças e 237 mulheres. Dentre os 9.986 feridos, estariam 3.009 crianças e 359 idosos. A única usina de eletricidade em operação foi bombardeada, bem como 25 escolas foram completamente destruídas ou danificadas de forma irreparável, além das 230 que sofreram algum tipo de dano. Faltam medicamentos essenciais e dezenas de hospitais, clínicas de saúde fixas e móveis e ambulâncias foram destruídas ou danificadas, além dos vários funcionários da saúde que perderam suas vidas. Fazendas, plantações, rebanhos e instalações produtivas foram destruídas ou seriamente danificadas, fazendo o preço dos alimentos disparar.
Os dados apresentados acima dificilmente deixam dúvidas sobre os propósitos das operações israelenses contra Gaza e a pertinência de pensá-las como PSG. Mas, dirime qualquer contra-argumentação possível a adequação da situação no território palestino aos seis momentos delineados por Feierstein para caracterizar uma PSG. Primeiro, a demonização e coisificação do outro, que cria uma alteridade negativa cuja morte é legitimada: Gaza seria um ninho de terroristas e fundamentalistas, portanto fanáticos que precisam ser exterminados. Segundo, o governo permite a violência impune contra a população e, depois, suas forças tomam parte direta na hostilização, que é institucionalizada: conforme várias ONGs e documentos da ONU, desde a Segunda Intifada predomina uma “cultura da impunidade” na Cisjordânia e, de forma gritante, em Gaza. Ou seja, quase nenhum civil ou militar israelense é indiciado pelas mortes ou danos que provocam e quando é, as penas não correspondem aos crimes, sendo excessivamente brandas. Ademais, regulamentos de emergência nos territórios limitam a propriedade, o movimento e a realização de certas práticas. Terceiro, a delimitação rígida de espaços isola o grupo, impede seu trânsito e quebra os laços sociais com o conjunto da população, permitindo as atrocidades: Gaza está bloqueada e isolada de Israel e da Cisjordânia, desde 2006. Quarto, são adotadas políticas de debilitação sistemática, que levam ao colapso físico e psíquico e à seleção das vítimas: o bloqueio total de Gaza perdura há quase uma década, mantendo seus habitantes à beira de uma catástrofe humanitária, pelo generalizado desemprego, miséria e necessidade de ajuda humanitária e psicossocial. As condições de existência objetivas estão completamente deterioradas, estando difundida a punição coletiva, desnutrição, aglomeração, falta de saneamento, humilhações, maus-tratos e assassinatos esporádicos. O fomento à delação e a distinções sociais rompem os laços de solidariedade. Debilitados estão morrendo e vários perdendo suas vidas de forma violenta. O quinto passo de uma PSG é o aniquilamento material daqueles que encarnam as relações sociais que se quer abolir. Trata-se da morte física, psíquica e histórica do todo ou de parte significativa da fração que assume sua condição de autodeterminação e constitui uma identidade própria (para si), sendo o processo capaz de provocar uma rearticulação de suas relações sociais. Em Gaza, testemunhamos mortes de civis e militantes e o sofrimento difundido, por meio dos quais Israel demonstra ao conjunto social as consequências de sua luta por autodeterminação.
O sexto e último passo é a ressignificação do ocorrido ou realização simbólica e ideológica das mortes na representação e narrativa hegemônica. O processo é consumado no campo das representações simbólicas, por meio de modos específicos de narrar a experiência do extermínio. A representação deve permitir a construção de novos modos de relação social, determinando a forma como as mortes e o sofrimento são pensadas, recordadas ou reapropriadas nas sociedades alvo. A memória e as narrativas do extermínio não são negadas, mas têm seu sentido revertido, bem como sua intencionalidade e lógica. O principal artifício é a transferência da responsabilidade para as próprias vítimas, alterando o caráter delas e dos perpetradores. As últimas – os civis de Gaza – são homogeneizadas intencional e insistentemente como inocentes vitimados pela resistência palestina e não por Israel, o que é funcional para diluir e reconstruir o caráter da própria experiência genocida ao dar a impressão de ser uma narrativa altamente crítica e condenatória do processo. Os mártires têm sua identidade social negada ao serem transformados de apoiadores do movimento de libertação – e sofrem justamente por isso – em meras vítimas inocentes.
Refletir sobre a ressignificação simbólica das mortes em Gaza – ou sobre o último passo que consuma uma PSG – nos ajuda a ponderar sobre o estágio desse processo no território. Na narrativa oficial israelense, a culpa não foi completamente transferida aos palestinos? Não é exclusivamente o Hamas o responsável pelas mortes e sofrimentos de inocentes em Gaza, tanto em 2008/2009 quanto em 2014, por utilizar a população como escudo-humano e provocar a reação de Israel ao disparar foguetes? Ou Israel admite que as mortes e o extremo sofrimento em Gaza decorrem da adesão de seus habitantes ao projeto de libertação de uma ocupação odiosa, que vem por quase cinquenta anos humilhando, despojando e violando sistematicamente os direitos elementares da população palestina? Das respostas a estas perguntas teremos a resposta ao que efetivamente se dá na Palestina, possivelmente uma PSG em avançada consecução.
Fábio Bacila Sahd é bacharel em história pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e doutorando na Universidade de São Paulo (USP), com diversos artigos publicados acerca do Oriente Médio e do conflito na Palestina e autor dos livros, bem como da ditadura no Brasil, e autor dos livros “Oriente Médio desmistificado: fundamentalismo, terrorismo e barbárie” e “Vida e morte na Faixa de Gaza: sionismo, modernidade e barbárie”.
Oriente Mídia
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