Todo produto manufaturado tem prazo de validade, findo o qual não está mais apropriado para uso ou consumo. Procuramos comprá-los sempre dentro desse prazo, e descartar aqueles que possuímos que o tenham ultrapassado. Quando esse produto é um míssil, que custa quase 5 milhões de euros, devemos ter umpouco mais de cuidado, não só pelo perigo que representa o seu mau funcionamento, como pelo custo de reposição. Chamamos de recertificação ao processo de estender o prazo de validade de um produto.
Para uma abordagem profissional desse problema é preciso reconhecer que nem tudo perece naquele produto ao mesmo tempo. Algumas partes tem período de vida desigual. E mais ainda, o conceito de “morte” do produto é diferente de um ser vivo, não acontece instantaneamente e sim num processo longo e não determinístico, em que o fabricante estima o tempo de vida de cada item. Outro passo importante é entender que existe um custo, que poderá não ser irrelevante para descartar o produto, principalmente se ele for tóxico ou agredir o meio ambiente.
Se acrescentarmos ao nosso problema o fato de estarmos lidando com armamento militar, suscetível à obsolescência técnica, que podem transforma-lo em produto inútil, vemos que a decisão de descartar e comprar novo ou recertificar não é trivial.
Apresentaremos neste artigo, em linhas bem gerais e fugindo sempre que possível dos aspectos técnicos, como foi implementada a decisão da Marinha do Brasil de recertificar os motores foguete do míssil EXOCET MM-40 Block 1.
A primeira novidade dessa implementação foi o “modelo” para gerenciamento. Após a decisão tomada pelo Almirantado foi criada, na Diretoria de Sistemas de Armas da Marinha (DSAM), uma Gerência Especial de Mísseis (GEM), subordinada ao diretor. Procurava-se atender assim a uma a uma das regras das “boas práticas” de gerenciamento de projetos que trata o “Livro de Conhecimentos”, mais conhecido como PMBOK (Project Management Book of Knowledge). Para esta Gerência foram contratados, via ENGEPRON, oficiais da reserva com algum conhecimento do assunto e o firme propósito de mante-la o mais enxuta possível.
A outra grande novidade foi a decisão do Almirantado de realizar esta recertificação no Brasil, com empresasbrasileiras, com ou sem ajuda do fabricante estrangeiro. Esta decisão fugia da habitual que era contratar o serviço ao fabricante original, enviar o míssil para sua fábrica no exterior e, após alguns anos e milhões de euros, recebê-los de volta com um novo carimbo que estipulava seu novo prazo de validade. Como qualquer novidade essa decisão tinha seus riscos, e uma das primeiras tarefas da GEM foi analisar esses riscos.
Para podermos entender melhor o que levou o Almirantado a tomar essa decisão precisamos retroceder um pouco na história dos mísseis antinavio lançados por plataformas de superfície na Marinha do Brasil. Os primeiros navios que vieram com esses mísseis foram duas Fragatas classe Niterói configuradas como Emprego Geral (EG). Elas foram equipadas com o míssil EXOCET MM-38, que na ocasião em que foram escolhidos ainda estavam em desenvolvimento pela empresa francesa “AEROSPATIALE”. Este míssil foi desenvolvido segundo os requisitos da Marine Nationale, o mais importante dos quais tinha o alcance de 38 km, dai o nome “Mer-Mer 38″. Seu motor foguete usava como propelente a “Base Dupla” (BD), que tem como um de seus itens perecíveis anitrocelulose, componente perigoso e instável quando começa a se decompor com o tempo. Ao vender o seu produto, a AEROSPATIALE certificou-se de que o seu tempo de vida, considerando algumas premissas de armazenamento, seria de dez anos.
Esse prazo de dez anos venceria na década de 80 e a Marinha Brasileira pretendia recertificá-los, já que atendiam perfeitamente aos requisitos do nosso setor operativo e até tinham sido alvo de uma avaliação operacional. Nessa ocasião, a Marinha, as outras Forças e algumas indústrias já haviam adquirido um grande conhecimento sobre motores foguete com propelente sólido, o que permitia discutirmos com o fabricante que melhor seria se trocássemos a BD por um dos novos propelentes que o mundo todo estava utilizando, e aos quais se davam o nome genérico de “composite”.
Para grande surpresa da Marinha e de todos os usuários no mundo que haviam adquirido esse míssil, o fabricante AEROSPATIALE participou que não mais ofereceria o serviço de recertificação, e mais ainda, que teria decidido não continuar a fabricação do míssil. Não restou outra solução para a Marinha do que descartar, não só os mísseis que ainda tinha, como também os lançadores e sistemas de bordo das duas Fragatas EG.
O novo míssil adotado pela Marinha foi o EXOCET MM-40 Block 1, já agora fabricado pela MBDA, empresa que assumiu o acervo da antiga AEROSPATIALE, junto com outras empresas europeias. A Marinha também decidiu padronizar este míssil e o instalou em todas as Fragatas da classe Niterói, em todas as Corvetas classe Inhaúmae na Corveta Barroso. Ficamos assim com um total de onze sistemas de lançamento, necessitando só para preencher os lançadores dos navios de, no mínimo, 44 mísseis.
Ao comprarmos esses mísseis no final da década de 90, o fabricante certificou-os para os mesmos 10 anos do motor anterior. Portanto, no início dos anos 2000 estávamos novamente discutindo a sua recertificação. Dessa vez recebemos propostas para o serviço, mas com um aviso de que esta seria a última para este tipo de míssil, já que a empresa pretendia descontinuar a sua fabricação e introduzir o seu “novo e melhor sucessor” o EXOCET MM-40 Block 3 com alcance de 300 Km.
Para nós, marinheiros da “época do canhão”, fica difícil entender como uma empresa estrangeira possa decidir e influir tão drasticamente na configuração de nossos navios prontos e acabados. Lembramos com saudade quando a bateria principal era, por exemplo, de seis polegadas. Qualquer munição de seis polegadas poderia ser disparada, não interessando seu fabricante. Podíamos mesmo entender que cada fabricante poderia tentar criar calibres, os mais exóticos possíveis, mas uma vez definido o calibre do tubo alma, todo o resto estava definido.
O mais estranho é que com mísseis também poderia ser assim. Os seus diâmetros são todos em torno de 300 mm, as informações que recebem para inicialização são as mesmas, com formatos diferentes, e o posicionamento a bordo bem semelhantes. O que mudou foi que cada fabricante encontrou a forma de escravizar seu cliente.
Foi esta constatação que estava no âmago da decisão do Almirantado, nós só poderíamos nos livrar dessa escravidão se conseguíssemos reativar o conceito de “munição” também para os mísseis, e nada melhor do que começar por aquele que mais usávamos e tínhamos necessidade, o verdadeiro sucessor da “Bateria Principal”.
Assim, junto com o desenvolvimento do motor-foguete para substituir aqueles com vida útil vencida, decidiu o Almirantado começar um projeto para desenvolver um míssil que pudesse ser lançado dos sistemas instalados nos nossos navios, recriando o conceito de “munição” para os mísseis antinavio. A primeira etapa desse projeto seria o motor.
Para a implementação do projeto seguimos os passos do PMBOK definindo uma “estrutura de trabalho”, um “cronograma macro”, os “recursos disponíveis” e as “empresas candidatas”. Com a decisão da MBDA, autorizada pelo governo francês, de “transferir tecnologia” do motor, foi possível discutir com a AVIBRAS um contrato para desenvolvimento e fornecimento de motores. No mesmo contrato com a MBDA exigimos que ela subcontratasse a empresa MECTRON para desenvolvimento e fornecimento das “cabeças telemétricas” que substituiriam as cabeças de combate nos três disparos de homologação do novo motor, e para ajudar a GEM no gerenciamento do projeto, contratamos a Fundação ATEC, hoje EZUTE.
Os contratos se desenvolveram dentro dos prazos e custos acordados, os desvios do planejamento foram mínimos e todos corrigidos antes dos prazos finais. A atuação da MBDA foi exemplar, respondendo as dúvidas com franqueza e honestidade e fornecendo todas as informações necessárias e suficientes para que a AVIBRAS produzisse um novo motor, que nada tem há ver com o antigo, pois não é sua engenharia reversa, mas cumpre exatamente as mesmas funções do anterior.
Hoje a Marinha do Brasil tem em seus navios e armazenados no Centro de Mísseis e Armas Submarinas, mísseis EXOCET MM-40 Block 1 com motores produzidos no Brasil e temos o conhecimento para produzi-los toda vez que se fizer necessário.
NOTADO EDITOR: “Bravo Zulu” à Marinha do Brasil e a todos os envolvidos nesse projeto, onde a busca pela independência foi primordial!
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