A história mostra que os EUA sempre se beneficiaram politicamente e economicamente de guerras na Europa. O gigantesco fluxo de capital que saiu da Europa depois da Iª e da IIª Guerra Mundial transformou os EUA em superpotência (…) Hoje, ante o declínio econômico, os EUA estão tentando precipitar outra guerra europeia para conseguir o mesmo objetivo.
Sergey Glazyev, político e economista russo.
A descoberta das maiores reservas de gás conhecidas no Golfo Persa, em área partilhada por Qatar e Irã, e novas avaliações que encontraram 70% de gás a mais no Levante em 2007, são chaves para compreender a dinâmica do conflito que vemos hoje. Depois de concluído o gasoduto PARS, do Irã, atravessando Iraque e Síria até a costa leste do Mediterrâneo, a União Europeia receberá mais que os estimados 45% do gás que consumir pelos próximos 100, 200 anos, de fontes russas e iranianas. Em circunstâncias de não conflito, seria garantia para crescente integração dos setores de energia e das economias nacionais europeias, russa e iraniana.
Christof Lehmann, entrevista à Route Magazine.
A falhada operação dos EUA na Síria levou a uma intensificação da guerra por procuração, dos EUA, na Ucrânia. O que o governo Obama esperava obter na Síria mediante o apoio que deu a extremistas islamistas ditos “moderados” era derrubar o governo de Bashar al Assad, substituí-lo por fantoche dos EUA e impedir a construção do oleogasoduto Irã-Iraque-Síria, crítico. Esse plano fracassou e continuará fracassado pelo menos no futuro próximo, o que significa que o plano do oleogasoduto tem boas chances de prosseguir.
Oleogasoduto Irã-Iraque-Síria |
Por que é problema?
É problema porque – segundo o Dr. Lehmann – “Junto com o gás russo (…) a União Europeia conseguirá cobrir cerca de 50% de suas carências de gás natural a partir de fontes iranianas e russas”. Como fornecedores primários de recursos críticos para a Europa, Moscou e Teerã fortalecer-se-iam economicamente e politicamente, o que minaria significativamente a influência dos EUA e de seus aliados na região, particularmente Qatar e Israel. Essa é a razão pela qual os opositores do oleogasoduto desenvolveram um plano para sabotar o projeto, fomentando uma guerra civil na Síria. Novamente, fala Lehmann:
Christof Lehmann |
Em 2007, o Qatar enviou 10 bilhões de dólares norte-americanos para que o ministro Davotoglu de Relações Exteriores da Turquia preparasse a Fraternidade Muçulmana da Turquia e da Síria para subverterem a Síria. Como se soube recentemente do ministro Dumas de Relações Exteriores da Turquia, mais ou menos na mesma época atores no Reino Unido começaram a planejar a subversão da Síria com a ajuda de “rebeldes”. (Christof Lehmann, Interview with Route Magazine).
Em outras palavras, a ideia de armar, treinar e financiar um exército de militantes jihadistas para derrubar al-Assad e abrir a Síria aos interesses ocidentais tem suas origens num contexto mutante de energia que com certeza, hoje, se moveu a favor dos rivais dos EUA na região. (Nota: Não se sabe com certeza por que Lehmann exclui da sua lista a Arábia Saudita, o Kuwait ou outros Estados do Golfo que também estavam implicados).
A tese de Lehmann é corroborada por outros analistas, inclusive Nafeez Ahmed do TheGuardian, que explica o que se passava por trás das cenas do falso levante civil na Síria. Aqui, um excerto do artigo de Ahmed intitulado “Plano de intervenção na Síria movido a interesses do petróleo, não a preocupação com armas químicas”:
Seymour Hersh |
Em maio de 2007, documentos da presidência revelaram que Bush autorizara operações da CIA contra o Irã. Estavam também em pleno andamento nessa época operações anti-Síria, como parte desse programa clandestino, segundo Seymour Hersh na [revista] The New Yorker.
“Várias fontes do governo e da inteligência dos EUA contaram-lhe que o governo Bush “cooperara com o governo da Arábia Saudita, que é sunita, em operações clandestinas” que visavam a enfraquecer o Hezbollah xiita no Líbano. “Os EUA também tomaram parte em operações clandestinas contra Irã e sua aliada Síria”, escreveu Hersh, “subprodutos das quais foram a mobilização e o fortalecimento de grupos extremistas sunitas” hostis aos EUA e “simpáticos à al-Qaeda”. Observou que “o governo saudita, com aprovação de Washington, garantiria fundos e ajuda logística para enfraquecer o governo do presidente Bashar Assad, da Síria”(…).
Segundo o ex-ministro francês de Relações Exteriores, Roland Dumas, a Grã-Bretanha planeja ação clandestina na Síria desde 2009:
Roland Dumas |
Eu estava na Inglaterra dois anos antes da violência na Síria, tratando de outros assuntos, disse Dumas à televisão francesa
Estive com altos funcionários britânicos que me confessaram que estavam preparando alguma coisa na Síria. Foi na Grã-Bretanha, não nos EUA. A Grã-Bretanha estava preparando gente armada para invadir a Síria. (…) E-mails que vazaram da empresa privada de inteligência Stratfor incluindo notas de uma reunião com funcionários do Pentágono confirmaram que EUA-GB estavam treinando forças da oposição síria desde 2011 para provocar o “colapso” do governo de Assad, “de dentro para fora”.
Assim sendo, ao que visava toda essa estratégia para minar Síria e Irã? Segundo o secretário-geral aposentado da OTAN, general Wesley Clark, memorando do Gabinete do Secretário de Defesa dos EUA poucas semanas depois do 11/9 revelaram planos para “atacar e destruir os governos em sete países em cinco anos”, a começar pelo Iraque, andando para “Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irã”. Numa entrevista subsequente Clark argumenta que essa estratégia é fundamentalmente sobre o controle dos vastos recursos de petróleo e gás da região (“Plano de intervenção na Síria movido a interesses do petróleo, não a preocupação com armas químicas”, The Guardian).
Bashar al-Assad, Presidente da Síria (20/11/2013) |
Aparentemente, Assad foi abordado pelo Qatar sobre a questão do oleogasoduto, em 2009; mas recusou-se a cooperar, “para proteger os interesses do seu [de Assad] aliado russo”. Se Assad se tivesse alinhado e aceitado a oferta do Qatar, o esforço para derrubá-lo provavelmente teria sido cancelado. Em qualquer caso, foram os desenvolvimentos na Síria que dispararam a reação frenética na Ucrânia. Segundo Lehmann:
A guerra na Ucrânia tornou-se previsível (inevitável?) quando fracassou o grande projeto da Fraternidade Muçulmana na Síria, durante o verão de 2012. (…) Em junho e julho de 2012, cerca de 20 mil mercenários da OTAN que haviam sido recrutados e treinados na Líbia e reuniram-se na cidade de Al-Mafraq na fronteira jordaniana, lançaram duas campanhas massivas para tomar a cidade síria de Aleppo. As duas campanhas falharam e a “Brigada Líbia” foi literalmente dizimada pelo Exército Árabe Sírio.
Foi depois dessa derrota decisiva que a Arábia Saudita iniciou campanha massiva para recrutar combatentes jihadis mediante a rede da Fraternidade Muçulmana, irmã gêmea do mal da Al-Qaeda.
O International Crisis Group respondeu publicando seu relatório “Tentative Jihad”. Washington teve de tentar distanciar-se “politicamente” dos “extremistas”. O Plano B, as armas químicas, foi alinhavado, mas já se tornara óbvio que já não era possível vencer a guerra contra a Síria (“The Atlantic Axis and the Making of a War in Ucrânia”, New Eastern Outlook).
Desculpe… Hoje não tem gás |
Houve outros fatores que empurraram os EUA na direção de uma conflagração com Moscou na Ucrânia, mas a principal força foi o fato de que rivais dos EUA (Rússia e Irã) posicionavam-se para tornar-se atores dominantes numa guerra por energia que só faria consumir, erodir cada vez mais o poder de Washington. Maior integração econômica entre Europa e Rússia implica ameaça direta aos planos de os EUA ‘’pivotearem-se’’ para a Ásia, implantarem a OTAN junto às fronteiras da Rússia e continuarem a denominar os fornecimentos globais de energia em dólares norte-americanos.
Lehmann observa que teve uma conversa com “um almirante alto comandante da OTAN de um país do norte da Europa” que lhe esclareceu a situação com um tenso resumo, de duas frases, da política externa dos EUA. Disse ele:
Colegas norte-americanos no Pentágono disseram-se, inequivocamente, que EUA e Grã-Bretanha jamais permitirão que se desenvolvam relações Europa-soviéticos a ponto de que venham a desafiar a primazia militar, política ou econômica de EUA/GB e sua hegemonia no continente europeu. Tal desenvolvimento será impedido por todos os meios necessários, inclusive, se necessário, provocando uma guerra na Europa central.
Paul Wolfowitz |
Esse é o xis da questão. Os EUA não permitirão que nenhum estado ou combinação de estados desafiem sua dominância. Washington não quer rivais. Quer ser superpotência global indiscutível, exatamente o ponto que Paul Wolfowitz articulou num esboço inicial da Estratégia de Defesa Nacional dos EUA:
Nosso primeiro objetivo é impedir a re-emergência de um novo rival, no território da ex-União Soviética ou noutro ponto, que represente ameaça da ordem da que foi, antes, a União Soviética. Essa é consideração subjacente dominante na nova estratégia regional de defesa, e exige que nos empenhemos em impedir que qualquer poder hostil venha a dominar uma região cujos recursos serão, sob controle consolidado, suficientes para gerar poder global.
Assim sendo, o governo Obama fará tudo que supuser que seja necessário para impedir que prossiga a integração econômica entre União Europeia e Rússia, e para preservar o sistema do petrodólar – sistema surgido em 1974, quando o presidente Richard Nixon persuadiu membros da OPEP a denominar seu petróleo exclusivamente em dólares.(…)
Nas palavras de um crítico:
O comércio mundial é agora um jogo no qual os EUA produzem dólares e o resto do mundo produz coisas que os dólares podem comprar.
Dólar, nova utilidade? |
O sistema do petrodólar ajuda a manter o monopólio do dólar para fazer preços, o qual, em troca, sustenta o dólar como moeda mundial de reserva. Cria excessiva demanda por dólares, o que permite que o Fed (Federal Reserve) expanda o crédito da nação, reduzindo dramaticamente o custo do financiamento. Se o petróleo e o gás natural deixarem de ser denominados em dólares norte-americanos, o valor do dólar despenca, o mercado de ações entra em colapso e a economia dos EUA deslizará para poço fundo, em descida de longo prazo.
Essa é uma das razões pelas quais os EUA invadiram o Iraque imediatamente depois que Saddam passou-se para o euro; porque os EUA entendem que qualquer desafio à absoluta dominação pelo petrodólar é ameaça direta à segurança nacional dos EUA.
Moscou sabe onde está o calcanhar de Aquiles de Washington e está fazendo todos os esforços para explorar essa fraqueza, reduzindo o uso do dólar em seus acordos comerciais. Até aqui, Moscou já persuadiu China e Irã a abandonar o dólar nas suas negociações bilaterais, e já descobriram que há outros parceiros comerciais ansiosos para seguirem a mesma trilha. Recentemente, ministros russos de economia conduziram uma reunião de “desdolarização”, da qual saiu uma “ordem executiva para troca de moeda”, que ordena que “o governo tem poder legal para forçar empresas russas a negociar em rublos uma porcentagem de determinados bens”.
Desdolarização…? |
Semana passada, segundo RT (Rússia Today):
Os bancos centrais russo e chinês já têm pronta uma primeira versão de acordo de swap de moedas, mediante o qual poderão aumentar o comércio doméstico em suas próprias moedas e cortar a dependência do dólar dos EUA em pagamentos bilaterais. “Aquela versão do documento entre o Banco Central da Rússia e o Banco do Povo da China sobre trocas em moedas nacionais já foi aprovada pelas partes (…) O acordo estimulará ainda mais o desenvolvimento de comércio direto em yuan e rublos nos mercados domésticos de moedas estrangeiras na Rússia e na China” – informou o regulador russo.
Atualmente, mais de 75% dos pagamentos nos negócios Rússia-China são feitos em dólares norte-americanos, segundo o jornal Rossiyskaya Gazeta.(“Acelera-se a Desdolarização – China e Rússia completam acordo de swap de moeda”, Zero Edge).
O ataque ao sistema de reciclagem dos petrodólares é uma das muitas estratégias assimétricas que Moscou está usando para desencorajar qualquer agressão que venha dos EUA, para defender a própria soberania, e para promover uma ordem mundial multipolar na qual predomine a ordem legal. O Kremlin também trabalha a favor de mudanças institucionais que ajudaram a nivelar o campo de jogo, em vez de criar vantagens injustas a favor dos países mais ricos, como os EUA. Naturalmente, Moscou trabalha também para substituir o FMI, cujos empréstimos de extorsão e políticas punitivas sempre estiveram no topo da lista para a maioria dos mercados de nações emergentes, particularmente os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Os BRICS em números |
Esses BRICS, em julho, decidiram criar um Banco de Desenvolvimento com capital de US$ 100 bilhões, o qual “equilibrará a influência de instituições de empréstimos com sede no ocidente e do dólar”. O novo banco garantirá financiamento para projetos de infraestrutura e desenvolvimento nos países BRICS e, diferente do que fazem o FMI ou o Banco mundial, os votos de todos os países têm o mesmo peso, independente do tamanho do PIB.
Segundo RT:
O grande lançamento do banco dos BRICS é visto como um primeiro passo para quebrar a dominação do dólar norte-americano no comércio global, e de instituições mantidas pelo dólar, como o FMI e o Banco Mundial, ambas com sedes nos EUA e nas quais os países BRICS têm fraca influência (…).
Esse mecanismo cria a fundação para uma efetiva proteção de nossas economias nacionais contra crises nos mercados financeiros – disse Vladimir Putin, presidente russo (“BRICS establish US$ 100bn bank and currency pool to cut out Western dominance”, RT).
É claro que a agressão de Washington contra a Ucrânia focou a atenção de Moscou, agora, na retaliação. Mas, em vez de confrontar militarmente os EUA, como Obama & Co. prefeririam que ele fizesse, Putin está usando a favor da Rússia as vulnerabilidades que há dentro do sistema. Um Banco de Desenvolvimento dos BRICS desafia o papel dominante do FMI como emprestador de último recurso, papel que reforçou muito o poder dos países ricos e de suas indústrias. O novo banco cria as bases para real mudança institucional, embora ainda dentro do mesmo amplo e pervasivo contexto capitalista.
Sergei Glazyev |
Sergei Glazyev, político e economista russo, resumiu a abordagem de Moscou sobre a conflagração EUA-Rússia, em artigo intitulado “EUA militarizam a Ucrânia, para invadir a Rússia”. Aqui, um excerto:
Para parar a guerra, é preciso pôr fim às forças que a movimentam. No estágio atual, a guerra se trava principalmente nos planos econômico, de relações públicas e da política. Todo o poder da superioridade econômica dos EUA é baseado na pirâmide financeira da dívida, que há muito tempo deixou de ser sustentável. Os principais emprestadores estão entrando em colapso, a ponto de privar o mercado dos EUA de dólares e de papéis do Tesouro. Claro, o colapso do sistema financeiro dos EUA causará sérias perdas a todos os que têm moeda e papéis dos EUA. Mas, em primeiro lugar, essas perdas para Rússia, Europa e China serão menores que as perdas causadas pela geopolítica dos EUA, que está desencadeando uma nova guerra mundial. Em segundo lugar, quanto antes se sair das obrigações financeiras dessa “pirâmide norte-americana”, menores serão os prejuízos. Em terceiro lugar, o colapso do ‘esquema Ponzi’ do dólar é oportunidade para, afinal, reformar o sistema financeiro global, à base da equidade e de mútuo benefício.
Washington supõe que “guerra moderna” implique operações clandestinas de apoio a exércitos alugados constituídos de neonazistas e extremistas islamistas.
Moscou sabe que guerra moderna significa minar a capacidade do inimigo para fazer guerra – o que se obtém com ataques sustentados contra a moeda, as instituições, o mercado de ações do inimigo, e contra a capacidade do inimigo para convencer seus aliados de que seria guardião responsável confiável para zelar pelo sistema econômico global.
Já apostei meu dinheiro: vai dar Putin.
Vai dar Putin! |
Oriente mídia
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