Há 70 anos, em 27 de janeiro de 1945, o Exército Vermelho libertou Auschwitz, o maior e mais terrível campo de extermínio dos nazistas. Em suas câmaras de gás e crematórios foram mortas pelo menos um milhão de pessoas.
Auschwitz foi o maior e mais terrível campo de extermínio do regime de Hitler. Em suas câmaras de gás e crematórios foram mortas pelo menos um milhão de pessoas. No auge do Holocausto, em 1944, eram assassinadas seis mil pessoas por dia. Auschwitz tornou-se sinônimo do genocídio de judeus, sintos e roma e tantos outros grupos perseguidos pelos nazistas.
As tropas soviéticas chegaram a Auschwitz, hoje Polônia, na tarde de 27 de janeiro de 1945, um sábado. A forte resistência dos soldados alemães causou um saldo de 231 mortos entre os soviéticos. Oito mil prisioneiros foram libertados, a maioria em situação deplorável devido ao martírio que enfrentaram.
“Na chegada ao campo de concentração, um médico e um comandante questionavam a idade e o estado de saúde dos prisioneiros que chegavam”, contou Anita Lasker, uma das sobreviventes. Depois disso, as pessoas eram encaminhadas para a esquerda ou para a direita, ou seja, para os aposentos ou direto para o crematório. Quem alegasse qualquer problema estava, na realidade, assinando sua sentença de morte.
Interior do crematório de Auschwitz
Câmaras de gás e crematórios
Auschwitz-Birkenau foi criado em 1940, a cerca de 60 quilômetros da cidade polonesa de Cracóvia. Concebido inicialmente como centro para prisioneiros políticos, o complexo foi ampliado em 1941. Um ano mais tarde, a SS (Schutzstaffel) instituiu as câmaras de gás com o altamente tóxico Zyklon B. Usada em princípio para combater ratos e desinfetar navios, quando em contato com o ar a substância desenvolve gases que matam em questão de minutos. Os corpos eram incinerados em enormes crematórios.
Um dos médicos que decidiam quem iria para a câmara de gás era Josef Mengele. Segundo Lasker, ele se ocupava com pesquisas: “Levavam mulheres para o Bloco 10 em Auschwitz. Lá, elas eram esterilizadas, isto é, se faziam com elas experiências como se costuma fazer com porquinhos da Índia. Além disso, faziam experiências com gêmeos: quase lhes arrancavam a língua, abriam o nariz, coisas deste tipo…”
Restos dos barracões de prisioneiros em Auschwitz-Birkenau
Trabalhar até cair
Os que sobrevivessem eram obrigados a trabalhos forçados. O conglomerado IG Farben, por exemplo, abriu um centro de produção em Auschwitz-Monowitz. Em sua volta, instalaram-se outras firmas, como a Krupp. Ali, expectativa de vida dos trabalhadores era de três meses, explica a sobrevivente.
“A cada semana era feita uma triagem”, relata a sobrevivente Charlotte Grunow. “As pessoas tinham de ficar paradas durante várias horas diante de seus blocos. Aí chegava Mengele, o médico da SS. Com um simples gesto, ele determinava o fim de uma vida com que não simpatizasse.”
Interior dos barracões de prisioneiros em Auschwitz-Birkenau
Marcha da morte
Para apagar os vestígios do Holocausto antes da chegada do Exército Vermelho, a SS implodiu as câmaras de gás em 1944 e evacuou a maioria dos prisioneiros. Charlotte Grunow e Anita Lasker foram levadas para o campo de concentração de Bergen-Belsen, onde os britânicos as libertaram em abril de 1945. Outros 65 mil que haviam ficado em Auschwitz já podiam ouvir os tiros dos soldados soviéticos quando, a 18 de janeiro, receberam da SS a ordem para a retirada.
“Fomos literalmente escorraçados”, lembra Pavel Kohn, de Praga. “Sob os olhos da SS e dos soldados alemães, tivemos de deixar o campo de concentração para marchar dia e noite numa direção desconhecida. Quem não estivesse em condições de continuar caminhando, era executado a tiros”, conta. Milhares de corpos ficaram ao longo da rota da morte. Para eles, a libertação chegou muito tarde.
Auschwitz sintetiza horror do Holocausto em uma palavra
Soldados soviéticos retiram um jovem de 15 anos do campo de concentração de Auschwitz, em 1945
Uma Alemanha onde não haja a lembrança do Holocausto é hoje inconcebível. Mas nem sempre foi assim: décadas se passaram até que as imagens das atrocidades nazistas entrassem na memória coletiva da nação.
Às vezes basta uma palavra e tudo está dito. Auschwitz incorpora todo o Holocausto, os 6 milhões de judeus mortos, os milhões de seres humanos brutalmente assassinados pelos nazistas entre 1933 e 1945.
Também se poderia dizer: basta uma imagem, e o horror está de novo presente: o portão do campo de extermínio Auschwitz-Birkenau, diante dele, os trilhos ferroviários. A memória coletiva completa o quadro: os trens – sim, vagões de gado – cheios de gente, de crianças, de mulheres, de homens jovens e anciãos, chegando após dias, por vezes semanas de viagem, sem comida nem água. Nos olhos, ainda um vislumbre de esperança.
Esquerda ou direita
A maioria dessas pessoas sabia que a morte as esperava em Auschwitz. Não raramente, ela já se anunciava na plataforma entre os trilhos duplos, a assim chamada “rampa”, na figura do médico do campo, Josef Mengele – mais um nome que desencadeia associações imediatas.
A sobrevivente Esther Bejarano, de 90 anos, recorda: “O Dr. Mengele ficava na nossa frente e aí fazia um gesto de mão, apontando com o polegar para um lado ou para o outro. Para a esquerda, a pessoa ainda tinha um prazo antes da execução; para a direita, queria dizer: ‘Você vai para a câmara de gás.'”
Mais de 1 milhão de pessoas foram mortas nesse campo de concentração, hoje em território polonês. Cerca de 90% eram judeus, empurrados para as câmaras de gás logo após a chegada. Mas também poloneses, nômades das etnias sinto e rom, homens, mulheres e crianças de toda a Europa.
Memória mantida viva
Mas não se assassinava apenas em Auschwitz: também Majdanek, Treblinka, Belzec e Sobibor eram campos de extermínio, onde se matava com a eficiência e simplicidade de uma linha de montagem numa fábrica.
E, também em Ravensbrück, Dachau, Buchenwald, Mauthausen e muitos outros campos, os detidos morriam sistematicamente, quer em decorrência do trabalho excessivo ou das torturas, quer por fome ou fuzilamento. Isso sem falar nas execuções em massa, como na ravina Babi Yar, em Kiev, ou no bosque de Paneriai, próximo a Vilnius.
Ainda assim, Auschwitz simboliza todos esses lugares, pois lá o homicídio industrializado dos nazistas atingiu o seu ápice. Em nenhum outro lugar tantos foram assassinados em tão pouco tempo e de forma tão pérfida. Dos crematórios, a fumaça subia dia e noite: depois de uma morte horrenda, por sufocamento com o gás tóxico Zyklon B, os corpos eram incinerados.
Também essa é uma das imagens que nunca sairão da mente de Esther Bejarano, testemunha ocular das atrocidades de Auschwitz. E que ela não deixará que se extingam: assim como muitos outros sobreviventes do Holocausto, ela não se cansa de relatar os crimes que presenciou, em escolas e talk-shows. No início de 2015, um grupo deles foi recebido pelo papa Francisco no Vaticano.
Judeus húngaros aguardam transporte para campo de concentração em 1944
Anos de “esquecimento”
Mas nem sempre os sobreviventes do Holocausto mereceram tanta atenção. Em seguida à Segunda Guerra Mundial, ninguém na Alemanha queria admitir ter escutado ou visto qualquer coisa, nem ter sentido algum cheiro fora do comum.
Nem mesmo os que moravam a apenas poucos minutos a pé do campo de Bergen-Belsen, na região de Hannover. Mas o Exército do Reino Unido os fez visitarem o campo de concentração, após a libertação, para que vissem com os próprios olhos os montes de cadáveres e os prisioneiros subnutridos, antes esqueletos do que seres vivos.
Os britânicos filmaram o local, com a intenção de produzir um grande documentário, que também incluiria imagens feitas pelos militares russos depois de libertar Auschwitz. O famoso cineasta Alfred Hitchcock foi encarregado de examinar o material e começou a trabalhar com ele.
Mas, naquele início de Guerra Fria, os aliados britânicos e americanos preferiram não confrontar excessivamente os alemães com sua culpa, e o projeto foi engavetado. E passaram-se décadas até que os horrores de Auschwitz fossem publicamente expostos e discutidos na Alemanha.
Processos de Frankfurt
Os processos de Auschwitz, realizados em Frankfurt entre 1963 e 1965, acarretaram uma virada na confrontação dos alemães com os crimes dos nazismo – e com a própria culpa. Pela primeira vez ouvia-se os sobreviventes relatarem detalhadamente sobre as atrocidades e o sistema do campo de extermínio.
Lá não se visava apenas o homicídio em escala industrial, mas também a exploração total da mão de obra e dos recursos das vítimas. Conectado a Auschwitz I (onde se mantinham sobretudo presos políticos) e a Auschwitz-Birkenau (uma gigantesca área onde se concentravam tanto as barracas dos prisioneiros quanto as câmaras de gás e os crematórios), estava Auschwitz III ou Monowitz, terreno industrial em que firmas como a I.G. Farben faturavam.
Além do ouro dental e das roupas dos executados, até seus cabelos eram transformados em dinheiro para os cofres alemães. As montanhas de cabelos, sapatos e óculos em Auschwitz são outra imagem gravada na memória coletiva da nação.
Ao lado das reportagens diárias da imprensa, em 1965 o dramaturgo Peter Weiss, autor de Marat-Sade, cuidou para que a discussão sobre os processos de Frankfurt se mantivesse, mesmo após seu fim. A peça teatral O interrogatório, Oratório em 11 cantos desencadeou indignação, ao confrontar os depoimentos das testemunhas anônimas com os dos acusados que elas citavam nominalmente.
Força da realidade e da ficção
No fim da década de 70, o horror dos crimes nazistas chegou às salas de estar alemãs na forma de uma minissérie americana de TV. Dirigida por Marvin J. Chomsky, Holocausto traçava o destino da família judaico-alemã Weiss, tendo a atriz Meryl Streep no papel principal da esposa não semita.
A transmissão de seus quatro episódios suscitou entre muitos jovens alemães a discussão sobre até que ponto seus pais sabiam do “desaparecimento” de seus vizinhos judeus.
Com mais de nove horas de duração, o documentário de Claude Lanzmann Shoah, de 1985, foi outro choque para a consciência alemã. Pela primeira vez, um diretor de cinema ia com os sobreviventes dos campos de concentração até o palco de seus horrores, encorajando-os a relatar o que haviam vivenciado.
“Clava de Auschwitz”
Em seu discurso ao receber o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, em 11 de outubro de 1989, para a surpresa de muitos o autor Martin Walser denunciou o que percebia como instrumentalização do Holocausto.
“Mas quando sou confrontado todos os dias com esse passado na mídia, noto que algo dentro de mim se revolta contra essa exibição incessante de nossa vergonha. Em vez de ficar grato […], eu começo a olhar para o outro lado.” E prosseguiu: “Auschwitz não se presta a se tornar rotina de ameaça, meio de intimidação sempre a postos, ou clava moral, ou até mero exercício de dever.”
Assim cunhou-se a expressão “clava de Auschwitz”, gerando clamor crítico. O Conselho Central dos Judeus da Alemanha acusou Walser de “incêndio intelectual culposo”. Na realidade, a intenção do autor não fora, em absoluto, relativizar. Mas ele colocara uma questão difícil: como não esquecer o horror – e também a culpa – de Auschwitz, e ao mesmo tempo não minimizar o poder simbólico dessa palavra, ao evocá-la de forma leviana, rotineira demais?
Auschwitz está arraigado na memória cultural dos alemães, as imagens são presentes. Literatura, arte e cinema podem continuar cuidando para que elas persistam para a próxima geração, quando não houver mais testemunhas diretas. Só é preciso olhar.
O filme que os britânicos iniciaram por ocasião da libertação de Bergen-Belsen e que Hitchcock começou a montar foi agora concluído. Ele se chama Night will fall (a noite vai cair). Não é sempre fácil assisti-lo. E, no entanto, é preciso.
Plano Brasil
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