Recentemente a Arábia Saudita advertiu os Estados Unidos, a propósito de suas negociações com o Irã, que uma bomba atômica iraniana levaria os países a uma corrida nuclear no Oriente Médio, onde apenas um país, Israel, desde dos anos 60, possui armas atômicas.
A preocupação do reino saudita é apenas mais uma manifestação de uma rivalidade iniciada nas últimas décadas com o Irã. E, ao lado de tantas outras rivalidades no Oriente Médio, esta possui também elementos religiosos, étnicos e políticos. Este conflito, com características de uma Guerra Fria, está, cada vez mais, transformando-se em guerra aberta entre Arábia Saudita e Irã, no Líbano, na Síria e no Iraque.
As guerras envolvendo grandes contingentes travadas entre países no Oriente Médio, como a Guerra árabe-israelense do Yom Kippur, em 1973, e a Guerra Irã-Iraque, na decada de 1980, foram substituídas por conflitos violentos e assimétricos de curta duração, com baixas pesadas entre civis; e na forma de uma “guerra suja” travada longe dos olhos do público.
O conflito saudita-iraniano, em maior ou menor grau, serve como pano de fundo nos conflitos na Síria, Iraque, Líbano, Gaza, Bahrein e Iêmen. Mas afinal, qual é a origem de uma rivalidade entre dois países muçulmanos que se desenha tão ou mais perigosa que a já tradicional rivalidade entre árabes e israelenses?
A Arábia Saudita, ao contrário do que pode pensar, é um país novo, formado em 1932, após um longo processo de conflitos tribais com tons religiosos que se aceleraram com após a I Guerra Mundial. Uma linhagem, em particular, os sauditas, se impuseram militarmente como dinastia reinante e por meio de uma aliança político-religiosa firmada no século 18, com adeptos do wahabismo, que pode ser entendido, resumidamente, como uma interpretação rígida, literal, radical e com pretensões puritanas do sunismo islâmico.
O Irã é uns pais majoritariamente persa, igualmente muçulmano, que, porém, adota, desde do século 16, uma versão do Islã xiita duodecimano, que, como indica o nome, se baseia na crença em 12 imams ou líderes, que seriam os únicos legítimos sucessores de Profeta Maomé na liderança da comunidade muçulmana.
As origens dessas divisões sectárias entre sunitas e xiitas remetem-se aos primeiros séculos do Islã e envolvem rivalidades tribais, divergências de interpretações teológicas e até mesmo disputas pela liderança, que poderiam, como exemplo distante, ser comparadas ao cisma entre as igrejas católica romana e ortodoxa, pouco depois do ano mil, ou mesmo à violenta divisão que separou protestantes e católicos a partir do século 16 na Europa.
Voltando ao presente, o fato é que a partir da Revolução Islâmica em 1979, o Irã e a Arábia Saudita se convertem em dois pesos-pesados de suas respectivas correntes islâmicas e se engajam numa disputa político-religiosa pelo domínio geopolítico na região.
Nesse processo, a Arábia Saudita saiu na frente, estabilizada como uma monarquia absolutista teocrática nas mãos de uma única família, com apoio norte-americano desde a sua formação e com um lastro monetário incalculável obtido pela exploração de petróleo. Além disso, a casa real saudita se investiu, por conquista, na década de 1920, em guardiã dos lugares santos, assumindo papel altamente simbólico aos olhos de mais de um 1 bilhão de muçulmanos.
Para completar o quadro, após a Revolução Islâmica, a Arábia Saudita se consolidou, ao lado de Israel, como principal aliado dos EUA no Oriente Médio. Além disso, no âmbito religioso, graças aos bolsos largos dos príncipes, a versão saudita do Islã passou a ser exportada por intermédio da construção de mesquitas, bolsas de estudos, vários tipos de apoio a organizações muçulmanas e na formação de clérigos para espalhar o credo wahabita. Se levarmos em consideração que os sunitas perfazem 80-90 % do total de muçulmanos no mundo, pode-se imaginar o imenso capital espiritual detido pelos sauditas.
O Irã, por sua vez, longe de ser uma nação criada no século 20, é uma civilização milenar, independente, na forma monárquica, há quase 500 anos. Ao longo do século 20, o Irã, sendo uma sociedade muito mais complexa e estratificada que a Arábia Saudita, cercado por vizinhos poderosos e sujeito à cobiça e à intervenção ocidental, passa por todas as dificuldades características dos países de 3º mundo. Em 1941, sobe ao trono Reza Pahlevi, que deslancha uma era de reformas, pretendendo fazer do país uma nação moderna nos moldes ocidentais.
Reza Pahlevi, no entanto, esqueceu de combinar seus planos iluministas com a vasta maioria da população iraniana profundamente religiosa e com o poderoso clero xiita. No intuito de implementar suas reformas a qualquer custo, o Xá recorreu a repressão e a uma política deliberada de marginalizar a religião como forma de alcançar seus objetivos. Em 1979, mesmo possuindo um exército poderoso, armado pelos EUA, o Xá é deposto e o líder religioso exilado na Franca. O Aiatolá Khomeini, então, assume o controle “nos braços do povo”. O Irã se torna uma república teocrática islâmica, xiita, com um governo cujos integrantes seculares são eleitos pelo povo. O Oriente Médio nunca mais seria o mesmo.
Os problemas do Irã, contudo, não haviam terminado com a Revolução. Um ano após a queda do Xá o país é atacado pelo vizinho Iraque, então governado pelo ditador Saddam Hussein, àquela altura aliado do Ocidente. Após quase uma década de um conflito sangrento, a guerra termina sem vencedores.
Eram tempos difíceis para o Irã dos aiatolás, mas mesmo durante a guerra com o Iraque, o Irã já estava redesenhando o mapa geopolítico do Oriente Médio. Catapultado à condição de inimigo número 1 dos Estados Unidos, em uma região cheia de competidores de peso para ocupar esta posição, o Irã inicia um jogo de xadrez geopolítico complexo que logra atrair inicialmente para sua esfera de influência duas peças importantes no Oriente Médio: a Síria e o Líbano. A Síria interessava pelo poderio militar, sendo considerada campeã do arabismo e, aos olhos das massas árabes, portanto, um país na vanguarda na luta contra Israel. Ainda mais conveniente aos propósitos iranianos, a Síria era uma ditadura controlada pelos alauítas, um grupo minoritário vagamente xiita que dominava o país, apesar de representar pouco mais de 10% da população síria. O apoio iraniano, inclusive, se desdobra no plano espiritual, quando clérigos xiitas, iranianos e libaneses, emitem fatwas (opiniões legais), alçando, assim, uma seita obscura, como a dos alauítas, considerada por muitos muçulmanos como completamente herética, à condição de integrantes legítimos da comunidade islâmica xiita. Por último, ao aliar-se à Síria árabe, o Irã anulava parcialmente a propaganda iraquiana e de outros países árabes que tentavam transformar o conflito com o Irã em um velho acerto de contas entre árabes e persas.
O Líbano, o outro alvo da política estratégica do Irã, é um país pequeno, onde existe um mosaico de 18 grupos religiosos oficialmente reconhecidos pela Constituição. Na base da sociedade libanesa, marginalizada, encontrava-se uma minoria xiita, composta principalmente por camponeses e pequenos proprietários nas regiões do sul e no Vale do Bekaa. Graças a uma versão xiita do “crescei e multiplicai-vos” combinada com o êxodo migratório de outros grupos religiosos, a minoria torna-se gradual e silenciosamente uma maioria.
Porém, em uma região na qual hierarquias são esculpidas em pedra, não é tarefa fácil promover mudanças, principalmente as que podem alterar um equilíbrio de poder tão frágil como o existente no Líbano. Isso ocorre como resultado de três fatores: uma mobilização interna capitaneada por líderes religiosos carismáticos; o apoio decisivo do Irã, e a invasão israelense no Líbano, em 1982. Esta última transformou os xiitas libaneses, até então apáticos no que se referia ao conflito palestino-israelense, nos mais ferozes e perigosos rivais de Israel e aliados incondicionais do Irã, o que, inclusive, dá origem ao grupo Hezbollah.
Ao integrar a Síria e a comunidade xiita libanesa à sua esfera de influência, o Irã passa a dispor de bases concretas para ocupar um novo papel aos olhos da comunidade muçulmana, xiita e sunita, de defensor da causa palestina e principal adversário de Israel. Note-se que a religião, naquela área, ressurge com toda força, devido ao fracasso fragoroso do nacionalismo árabe secular baseado em modelos ocidentais, surgido após a 2a Guerra Mundial. Os regimes sírio e egípcio, protagonistas do nacionalismo árabe, falharam miseravelmente em solucionar o problema palestino, tanto no que diz respeito ao aspecto militar quanto no que tange ao setor diplomático. Isso, combinado à repressão de governos autocráticos, crises econômicas e outras mazelas sociais, que muitos viam como originárias do Ocidente, gerou nas massas árabes um profundo sentimento coletivo de desilusão, angústia e complexo de inferioridade. Tal vácuo assim produzido foi ocupado pela religião polarizada em tendências ao longo de linhas etno-sectárias, trazendo no seu bojo posições radicais.
O quadro no Oriente Médio mudou drasticamente após os ataques de 11 de setembro de 2001 e a segunda invasão norte-americana no Iraque em 2003. O primeiro teve como consequência imediata alertar que o radicalismo exportado pela Arábia Saudita, implícito do sunismo wahabita e em variantes mais extremas como o salafismo, não podia ser controlado pelos seus criadores. O radicalismo, com tons jihadistas, serviu, por exemplo, aos interesses ocidentais, no Afeganistão e no Cáucaso soviético, para fustigar a moribunda URSS. Porém, essas forças e ideologias radicais liberadas nesses processos ficaram livres para criar suas próprias agendas do “jihad” global.
No Iraque, invadido e ocupado por uma coalização liderada pelos Estados Unidos sob falsas alegações, o ditador Saddam Hussein, de origem sunita, é deposto, preso, condenado e executado por um tribunal xiita. No Iraque, os sunitas apesar de minoria, estão presentes em números consideráveis (42%) e historicamente sempre desfrutaram de grande poder. Dessa maneira, a despeito de considerações humanitárias e morais sobre o regime deposto, o equilíbrio de poder e outros arranjos tradicionais no Iraque foram subitamente alterados dando início a um período de ocupação, violência a níveis incontroláveis e massacres sectários mútuos.
Na Síria a situação é oposta. Naquele país, já aliado por décadas ao Irã, a Irmandade Muçulmana, organização política sunita surgida no Egito nas primeiras décadas do século 20, tem ramificações que nunca aceitaram o regime secular, muito menos uma ditadura controlada por uma minoria. No início da década de 1980, após um ataque brutal da Irmandade e depois da repressão selvagem levada a cabo pelas forças de segurança de Damasco, o acerto de contas se tornou inevitável. A chamada Primavera Árabe na Síria, que certamente tem um elemento legítimo de descontentamento popular, foi rapidamente engolfada por velhas vendetas sectárias, por grupos salafis radicais de várias partes do mundo islâmico, por uma renitente crise econômica e sobretudo pelo desejo saudita e de países do Golfo Pérsico de realinhar a Síria no eixo sunita-wahabita.
Por último, o Egito, certamente o maior representante do nacionalismo árabe foi parcialmente neutralizado e atraído para à esfera de influência e dependência norte americana desde os acordos de Camp David, em 1978. Sofrendo recentemente de mazelas econômicas, políticas e sociais muito mais complexas que outros países árabes, o Egito à beira do caos se retira de cena para lamber suas próprias feridas.
Assim, ao longo dos anos, no vácuo deixado pelo Egito, Iraque e Síria, o reino saudita, que sempre preferiu financiar grupos e países ao invés de se envolver diretamente em aventuras na região, hesitantemente assume o papel de protagonista face a política afirmativa do Irã e até mesmo para amenizar a imagem associada ao Islã radical.
Na atualidade, em uma região em que paradoxo e coerência nem sempre são antônimos, mas muitas vezes sinônimos, Irã e Arábia Saudita hoje estão lutando em várias frentes, no Líbano, onde ambos apoiam sunitas, xiitas e facções rivais cristãs. Na Síria, o Irã garante a sobrevivência do regime de Damasco, vital para a estratégia de manter o apoio ao Hezbollah, e aproveita a situação para expandir sua presença, abrindo uma nova frente, na fronteira litigiosa com Israel das Colinas de Golã. Em Gaza, a despeito das discordâncias teológicas, o Irã apoia politicamente e logisticamente o Hamas sunita, completando, dessa maneira, um “cerco” estratégico ao regime israelense.
No Iraque, ironicamente, com a invasão e a retirada norte-americana, os iranianos obtiveram, o que não conseguiram em quase uma década de guerra com Saddam Hussein: trazer o regime de Bagdá à esfera de influência de Teerã. Mesmo no “quintal saudita”, que em realidade são zonas de influências historicamente contestadas por árabes e persas, o Irã atua ativamente, apoiando a maioria xiita no Bahrein, sob jugo sunita, e, no Iêmen, onde uma considerável minoria xiita, como em outros países da região, se mobiliza em um despertar xiita deflagrado pela Revolução Islâmica.
É incontestável, que apesar dos percalços nas últimas décadas, o Irã consolidou uma posição geopolítica invejável no Oriente Médio como resultado do caos nos países árabes e das limitações sauditas. Hoje, sobretudo, o Irã assumiu o protagonismo na luta direta com os radicais do Isis e congêneres, subprodutos do regime saudita e das intervenções estrangeiras na região. De forma surpreendente, os Estados Unidos parecem aceitar a expansão iraniana e diplomaticamente buscam conter ou adiar as ambições nucleares dos aiatolás, estes aliás, conscientes da necessidade de reconstruir pontes com o Ocidente.
Preocupados, Arábia Saudita e Israel se sentem cada vez mais dependentes de si mesmos, pois alguns dizem que esse quadro é irreversível, mesmo na era pós-Obama. Do lado norte-americano, a dependência do petróleo no Oriente Médio diminuiu consideravelmente e parece haver uma exaustão em lidar com os problemas intermináveis naquela região. Que tal deixar o problema para os chineses, altamente dependentes daquele petróleo? Afinal, após 11 de setembro, com o surgimento de grupos como al Qaeda, Isis etc., muitos defendem a ideia de “levantar o cerco” aos iranianos e engajá-los em negociações diplomáticas ao invés de continuar “dormindo com inimigo” saudita. Não seria melhor um Irã nuclear, assim como Israel, Paquistão, Índia, China e Coréia do Norte, e cercado de todo o controle internacional em vez de, quem sabe, arriscar as consequências de futuras armas atômicas sauditas caírem em mãos de grupos “jihadistas”?
Oriente Mídia
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