Guerra do Golfo Pérsico em 1991 |
Depois da Guerra do Golfo em 1991, os neoconservadores nos EUA supuseram que nenhum país nunca mais conseguiria resistir aos exércitos high-tech dos EUA e deram-se conta de que já não havia União Soviética para limitar as ações dos EUA. Foi quando nasceu a estratégia das “mudanças de regime” – e muita gente começou a morrer.
O general de quatro estrelas e ex-insider em Washington, Wesley Clark, cantou essa história toda há vários anos, de como Paul Wolfowitz e seus coconspiradores neoconservadores implementaram o plano deles, de varredura, para desestabilizar países chaves no Oriente Médio, tão logo ficou evidente para todos eles que a Rússia pós-soviética “não nos conterá”.
Como revi recentemente no clip de oito minutos em YouTube (acima, em inglês), do discurso do general Clark em outubro de 2007, o que mais me saltou aos olhos foi que os neoconservadores sentiam-se fortalecidos pela avaliação que fizeram de que, depois do colapso da União Soviética, a Rússia estaria neutralizada, já sem capacidade para conter a ação militar dos EUA no Oriente Médio.
A fala pública de Clark escapou a qualquer crítica ou comentário na mídia-empresa sempre amiga dos neoconservadores (surpresa, surpresa!), mas ele conta lá que lembra perfeitamente de ter ouvido, de um alto general do Pentágono, pouco depois dos ataques do 11/9/2001, sobre o plano coordenado por Donald Rumsfeld/ Paul Wolfowitz para “mudança de regime” no Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e Irã.
Foi muito surpreendente, porque oficialmente os EUA apresentam-se como país que respeitaria a lei internacional, que protesta muito quando outras nações poderosas derrubam (alguns) presidentes em estados fracos e – depois da IIª Guerra Mundial – os EUA condenaram agressões passadas cometidas pelos nazistas alemães e protestaram muito por os soviéticos “subverterem” nações pró-EUA.
Mas o que realmente me chamou a atenção dessa vez foi o significado de Clark lá estar denunciando Wolfowitz, em 1992, a se gabar do que supunha que tivesse sido uma grande lição aprendida do ataque ao Iraque (“Tempestade no Deserto”) em 1991, a saber, que “os soviéticos não nos conterão”.
O que Clark disse que Wolfowitz dissera tem a ver diretamente com um problema que me atormenta desde março de 2003, quando George W. Bush atacou o Iraque. Será que osneocons – conhecidos como “os doidos” entre a pequena população que permanece mentalmente sã em Washington – teriam sido suficientemente doidos a ponto de optar pela guerra para “rearranjar” o Oriente Médio, se a União Soviética não se tivesse esfacelado em 1991?
Não é questão ociosa. Apesar do fracasso dos EUA no Iraque e por toda parte, os “doidos”neocons ainda têm enorme influência sobre o Establishment em Washington. Assim sendo, a questão muda um pouco: será que, com a Rússia muito mais estável e muito mais forte hoje, os “doidos” ainda estão pensando em arriscar uma escalada militar contra a Rússia, pela Ucrânia – o que William R. Polk, diplomata norte-americano aposentado, avaliou como confrontação nuclear potencialmente perigosa, uma “crise dos mísseis cubanos ao contrário”?
O comentário de Putin
O vácuo geopolítico que permitiu que os neocons tentassem pôr em operação o esquema deles de “mudança de regime” no Oriente Médio pode bem ser a causa profunda do que o presidente Vladimir Putin da Rússia disse em seu discurso do Estado da Nação, dia 25/4/2005, (vídeo com legendas em inglês no fim do parágrafo) que o colapso da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. O comentário do presidente Putin foi convertido em meme favorito dos que obram para demonizar Putin, apresentando-o como decidido a atacar a Europa, para assim reconstruir alguma poderosa neo-URSS.
Mas, falando dois anos depois da invasão contra o Iraque, Putin parece acertar, pelo menos no que tenha a ver com o modo como os neocon sexploraram a ausência do contrapeso russo, para super distender o poder dos EUA, de modo que agrediram muito violentamente o mundo, devastadores para as pessoas nos países atacados pelas intervenções norte-americanas e, mesmo, com considerável prejuízo para os próprios EUA.
Se se toma alguma distância e tenta-se uma visada não enviesada sobre a disseminação da violência no Oriente Médio ao longo dos últimos 25 anos, é difícil não chegar à conclusão de que o comentário do presidente Putin acertou o olho do alvo. Com a Rússia enfraquecida como potência militar nos anos 1990s e início dos 2000s, nada havia que contivesse os políticos norte-americanos e os impedisse de se atirarem ao mais desatinado aventureirismo contra o “baixo ventre macio” da Rússia, ação que, anos antes, implicaria risco considerável de confrontação armada entre EUA e Rússia.
Morei na URSS durante os anos 1970s e não desejo a ninguém aquele tipo de regime restritivo. Mas até que se desintegrou, foi regime militarmente forte a ponto de conter o aventureirismo à moda Wolfowitz. E digo que – para os milhões de pessoas já mortas, feridas ou arrancadas da própria terra e da própria casa pela ação militar dos EUA no Oriente Médio ao longo dos últimos 12 anos – o colapso da URSS, como força de contenção contra as guerras norte-americanas não foi só “catástrofe geopolítica”: foi desastre absoluto, até agora ainda sem remédio ou alívio.
Encontro com Wolfowitz
No discurso de 2007, o general Clark contou de um encontro que teve, no início de 1991, com Paul Wolfowitz, então subsecretário de Defesa para Assuntos Políticos (e depois, de 2001 a 2005, vice-secretário de Defesa). Aconteceu logo depois de um grande levante dos xiitas no Iraque, em março de 1991. O governo do presidente George H.W. Bush provocara o levante, mas nada fez para salvar os xiitas da retaliação brutal que Saddam Hussein aplicou-lhes, Saddan que mal sobrevivera à derrota no Golfo Pérsico.
Paul Wolfowitz |
Nas palavras de Clark, Wolfowitz disse:
Devíamos ter-nos livrado de Saddam Hussein. A verdade é que, uma das coisas que aprendemos é que podemos usar força militar no Oriente Médio, e os soviéticos não nos impedirão. Temos cinco, dez anos para limpar aqueles velhos governos clientes dos soviéticos – Síria, Irã (sic), Iraque – antes que a próxima superpotência apareça para nos desafiar.
Hoje, claro, já são mais de dez anos. Mas não se deixem enganar pela suposição de que Wolfowitz e seus colegas neocons entendam que teriam falhado de modo significativo. O desassossego que eles iniciaram não para de aumentar – no Iraque, Síria, Líbia, Somália, Líbano, para nem falar da nova onda de violência que atinge frontalmente o Iêmen, além da crise na Ucrânia. Pois... a carapaça antiaderente que envolve os mesmos neocons continua a recobri-los e protegê-los, na grande mídia-empresa.
Um detalhe é, sim, verdade: o Irã é terrível desapontamento para os neocons. O Irã está hoje mais estável e menos isolado do que antes; desempenha papel sofisticado no Iraque; e está muito próximo de concluir um grande acordo nuclear com o ocidente – o que impedirá que algum macaco neocon-israelense entre na loja de porcelanas para quebrar tudo, como aconteceu no passado.
Revés anterior sofrido pelos neocons aconteceu no final de agosto de 2013, quando o presidente Barack Obama decidiu não se deixar prender na ratoeira que os neocons lhe preparavam para que ordenasse às forças dos EUA que bombardeassem a Síria. Wolfowitz et alii estiveram muito próximos de conseguir que os EUA formalmente se envolvessem na guerra contra o governo do presidente Bashar al-Assad da Síria quando aconteceu o que aconteceu. Com a ajuda de Vladimir Putin, o diabo encarnado (para os neocons), Obama enfrentou os neocons, derrotou-os e evitou a guerra.
Vladimir Putin |
Uma semana depois de já não haver qualquer dúvida de que os neocons não conseguiriam a guerra que queriam na Síria, de repente, lá estava eu, no estúdio central da rede CNN em Washington ao lado de Paul Wolfowitz e do ex-senador Joe Lieberman, outro destacado neocon. Como contei em “How War on Syria Lost Its Way”, a cena era surreal – na verdade, fúnebre, com os dois, Wolfowitz e Lieberman, aos palavrões, furiosos, como se tivessem saído do estádio onde o time deles perdera feio o Super Bowl.
Preferências israelenses/neocons
Mas os neocons são duros na queda. Apesar dos grotescos fracassos, como a Guerra no Iraque, e seus desapontamentos, como não conseguir a guerra com que sonhavam, na Síria, eles jamais aprendem qualquer lição, nem mudam as próprias metas. Apenas recalibram o objetivo. Passaram imediatamente a atirar contra Putin novamente, dessa vez por causa da Ucrânia, como meio para limpar o caminho novamente para “mudança de regime” na Síria e no Irã.
Os neocons também podem extrair algum consolo, do “sucesso” que tiveram nas ações para pôr fogo no Oriente Médio, com xiitas e sunitas já saltando uns na goela dos outros – péssimo para muita gente em todo o mundo e com certeza para as muitas vítimas inocentes na região, mas, afinal, nem tão péssimo para os neocons. Líderes israelenses e seus companheiros de leito (homens e mulheres) entendem que guerras lá entre os próprios muçulmanos sempre têm, no mínimo, alguma vantagem de curto prazo para Israel, porque consolidam o controle sobre a Cisjordânia palestina.
Em memorandum que a organização Veteran Intelligence Professionals for Sanity (VIPS) enviou ao presidente Obama dia 6/9/2013, chamamos a atenção de todos para umamatéria excepcionalmente clara e sincera sobre as motivações de israelenses e neoconservadores, assinada por ninguém menos que a chefe da sucursal do The New York Times em Jerusalém e empenhada amiga de Israel, Jodi Rudoren, de 2/9/2013, apenas dois dias antes de Obama colher os frutos do sucesso de Putin, que conseguira persuadir os sírios a entregar seus arsenais de armas químicas para serem destruídas, e cancelasse qualquer plano de atacar a Síria – para terrível consternação dos neocons em Washington.
Jodi Rudoren |
Pode-se provavelmente perdoar Rudoren pela ingenuidade “politicamente incorreta”. A moça estava há apenas um ano no serviço, tinha pouca experiência de como noticiar eventos do Oriente Médio e – excitadíssima ante e iminência do ataque à Síria – ela aparentemente esqueceu o que reza o manual de redação do Times para quem escreva de Jerusalém. Seja como for, as prioridades de Israel transpareceram muito claramente no que Rudoren escreveu.
No artigo dela, intitulado “Israel apoia ataque limitado contra a Síria”, Rudoren observava que os israelenses andavam dizendo, em voz baixa, que o melhor resultado para a guerra na Síria que (então) já durava 2 anos e meio seria, pelo menos naquele momento, resultado-zero:
Para Jerusalém, o status quo, por horrendo que seja do ponto de vista humanitário, é preferível, seja a uma vitória do governo de Assad e seus apoiadores iranianos, seja a um fortalecimento dos grupos rebeldes, cada dia mais dominados por jihadistas sunitas.
É situação “de tabela”, na qual é preciso que os dois times percam, ou, pelo menos, você não deseja que qualquer deles vença – quer que fique como está – disse Alon Pinkas, um ex-cônsul geral de Israel em New York. “Que sangrem os dois, que sangrem até morrer: esse é o pensamento estratégico por aqui. Enquanto sangrarem, a Síria não será ameaça real”.
Mais claro, impossível. Se esse ainda é o modo como os líderes israelenses veem a situação na Síria, eles contam com envolvimento cada vez maior dos EUA – declarado ou clandestino – como meio que garantiria que nenhuma solução apareça para o conflito na Síria. Quanto mais tempo demorar a matança entre sunitas e xiitas, não só na Síria, mas por todo o Oriente Médio, mais segura estaria Israel, pelo cálculo dos líderes em Telavive.
Ajudar os terroristas
Mas os líderes israelenses também deixaram claro que, se algum lado tiver de prevalecer, que prevaleçam os sunitas, apesar de todo o extremismo sangrento da Al-Qaeda e do Estado Islâmico. Em setembro de 2013, pouco depois do artigo de Rudoren, o embaixador de Israel nos EUA, Michael Oren, então conselheiro muito próximo do Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu, disse ao Jerusalem Post que Israel preferia os extremistas sunitas, a Assad.
O maior perigo para Israel vem do arco estratégico que se estende de Teerã a Damasco e Beirute. E vemos o governo de Assad como pedra basilar desse arco – disse Oren numa entrevista. – Sempre quisemos que Bashar Assad saísse, sempre preferimos os bandidos que não fossem apoiados pelo Irã, aos bandidos apoiados pelo Irã. E disse que continuava a ser assim, mesmo que os “bandidos” fossem ligados à al-Qaeda.
Michael Oren |
Em junho de 2014, Oren – que então falava como ex-embaixador – disse que Israel preferiria uma vitória do Estado Islâmico, que estava massacrando soldados iraquianos capturados e degolando ocidentais, à continuação do governo de Assad, apoiado pelos cidadãos sírios.
Do ponto de vista de Israel, se um dos males tiver de prevalecer, que prevaleça o mal sunita – disse Oren.
Netanyahu disse coisa semelhante dia 3/3/2015, no discurso ao Congresso dos EUA, no qual trivializou a ameaça do Estado Islâmico com suas “facas de açougueiro, armas capturadas e YouTube”, comparado ao Irã que, para ele, estaria “exaurindo as nações” do Oriente Médio.
O fato de o principal aliado da Síria ser o Irã, com o qual a Síria mantém tratado de defesa mútua tem papel importante nos cálculos dos israelenses. Por isso, enquanto alguns líderes ocidentais tentam construir algum acordo realista, ainda que imperfeito, para pôr fim à guerra na Síria, outros, com considerável influência em Washington, querem, só, que o governo do presidente Assad e toda a região sangrem até a morte.
Por cruel e cínica que seja essa estratégia, não é muito difícil de entender. Mas, sim, parece ser uma dessas situações complicadas, politicamente carregadas, que está muito acima das competências pelas quais são pagos os calouros, os amadores, que aconselham o presidente Obama – e que, muito lamentavelmente, não têm recursos nem talentos nem meios para derrotar os neocons que mandam no Establishment em Washington. Para nem falar do Congresso que Netanyahu mantém hipnotizado.
Espertalhões desmascarados
Falando de Congresso, um ano depois da matéria de Rudoren, o senador Bob Corker, R-Tennessee, que atualmente preside a Comissão de Relações Exteriores do Senado, divulgou alguns detalhes do ataque militar que estava planejado contra a Síria, ao mesmo tempo em que muito lamentou que tivesse sido cancelado.
Bob Corker |
Nessa fala, Corker apresentou a mudança abrupta de Obama, dia 31/8/2013, quando optou por negociações, em vez de ataque declarado à Síria, Como “o pior momento da política exterior dos EUA desde que estou aqui”. Seguindo estritamente o roteiro dos neocons, Corker atacou o acordo com Putin e os sírios, para livrar a Síria de suas armas químicas.
Corker protestou:
Na essência – lamento se soar um tanto retórico – pulamos no colo de Putin.
Um grande Não-Não, é claro – sobretudo no Congresso – a qualquer coisa que se assemelhe a “pular no colo de Putin”, mesmo que Obama tenha conseguido tirar as armas químicas da Síria, sem fazer os EUA pularem em mais uma guerra no Oriente Médio.
Seria ótimo, é claro, se o general Clark tivesse partilhado antes, com o resto dos norte-americanos, o que sabia sobre a posição do Pentágono. Ninguém jamais o veria como “vazador” de segredos.
Quando fez aquele discurso (vídeo acima), em setembro de 2007, o general estava empenhado na tentativa quixotesca de conseguir a indicação dos democratas como candidato à presidência em 2008. Em outras palavras, Clark quebrou o juramento de silêncio que todos os generais fazem, e que perdura mesmo depois da aposentadoria, apenas para conseguir separar-se, pouco que fosse, do fracasso dos EUA no Iraque – e arrancar alguns votos entre os Democratas antiguerra. Não funcionou, então ele apoiou Hillary Clinton; não funcionou, então ele apoiou Barack Obama.
Wolfowitz, como lhe é característico, já tomou novamente pé na situação. Agora trabalha para ser conselheiro de política externa e de defesa de Jeb Bush, aspirante à presidência dos EUA, e com certeza já está a soprar suas ideias para o Oriente Médio nas orelhas do próximo chefão. Alguém sabe se “pandemônio” tem plural?
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[*] Ray McGovern nasceu no Bronx em Nova York em 25/8/1939 e lá cresceu. Formou-se com honras pela Universidade Fordham e serviu no Exército dos EUA de 1962-1964. Está casado com Rita Kennedy por 50 anos. Juntos têm cinco filhos e oito netos.
Aposentado como analista da CIA onde trabalhou no período 1963-1990. Trabalhou inicialmente como oficial da CIA responsável pela análise da política soviética no Vietnã.
No início da década de 1980, já como analista sênior, montou e dirigiu o grupo de National Intelligence Estimates que preparava o President's Daily Brief. Rotineiramente apresentava essesbriefings matinais de inteligência na Casa Branca. Em meados da década de 1980 era o analista que conduzia briefings matinais one-on-one com o Vice-Presidente, os Secretários de Estado e da Defesa, o Comandante do Estado Maior Conjunto e do Assistente do Presidente para a Segurança Nacional. Sua carreira CIA começou no governo do presidente John F. Kennedy, e durou até a Presidência da George Bush (pai).
Após aposentar-se fundou a organização Veteran Intelligence Professionals for Sanity (VIPS)[Profissionais Veteranos de Inteligência, pela Sanidade] onde atua até hoje.
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