21/8/2015, Joris Leverink,* Telesur, Venezuela
Tradução Vila Vudu
Na escolha dos aliados, na batalha contra o Estado Islâmico, os EUA estão mostrando que derrotar os jihadistas pode não ser sua prioridade absoluta.
Escolher aliados em tempo de guerra é negócio a ser feito com extremo cuidado. Podem-se fazer concessões, mas sem ceder demais. É preciso confiar, sem se tornar dependente demais. É preciso manter-se ao mesmo tempo firme e flexível. Aliados em tempo de guerra podem tornar-se amargos inimigos tão logo a vitória seja declarada, e o pior inimigo pode revelar-se o melhor amigo.
Nenhum país do mundo sabe mais disso, que os EUA, que, desde que foram fundados em 1776, não passaram jamais uma década inteira, que fosse, sem guerra. Os EUA viveram espantosos 222 anos, de seus 239 anos de existência, em guerra.
A mais recente guerra dos EUA contra os fascistas militantes do chamado “Estado Islâmico” (EI) difere pouco das que a precederam: os EUA são os únicos culpados pela escalada do conflito; o pretexto é a autodefesa; o método, violência extrema; o objetivo, alguma “democracia”, que ninguém sabe em que consistiria, além de nome de fantasia em rótulo de publicidade. Cada guerra vira campo de semeadura da guerra seguinte e, dado que o objetivo fictício de paz e estabilidade continua a ser sacudido à frente das massas, como cenoura à frente do burro, jamais há qualquer motivo para realmente depor armas.
Combate ou não combate contra o EI?
Recentemente, os EUA selecionaram um novo aliado na luta contra o EI. Porque não querem pôrCOTURNOS norte-americanos em solo – o que, é verdade, pouco alteraria qualquer coisa –, os EUA vivem obrigados a encontrar grupos interessados em dar jeito na desgraça que eles fazem no chão, enquanto os EUA cuidam de, no máximo, deixar cair suas bombas, preservando-se, eles mesmos, bem lá no alto, bem longe de supostas posições inimigas.
A escolha entre dois aliados potenciais foi dura, porque era jogo de soma zero: o vencedor leva tudo. Os dois aliados a serem escolhidos odeiam-se e desconfiam mutuamente um do outro, o que significava que escolher um quase com certeza implicaria deterioração nas relações com o outro.
Um dos possíveis aliados já provara o próprio valor em combate, acumulando várias vitórias importantes contra o Estado Islâmico, depois de várias operações bem-sucedidas em meses recentes. Esse possível aliado não incluía mercenários, soldados alistados por lei ou à força ou radicais de qualquer tipo. Ao contrário: eram filhos daquela região, lutando para proteger a própria terra, suas vilas, suas cidades, suas famílias. Não lutavam só contra o EI, mas – e mais importante – a favor de importantes valores, como democracia real, igualdade de gêneros e atenção à sustentabilidade do meio ambiente.
O outro aliado possível tinha agenda completamente diferente. Ao longo dos últimos poucos anos, mostrou pouco, ou nenhum, interesse em combater contra o EI. Na verdade, o EI é livre para recrutar e fazer lavagem cerebral nos jovens dentro de seu território; bandidos do EI feridos são acolhidos e tratados gratuitamente em hospitais públicos; e milhares e milhares de aspirantes a jihadistas têm licença para atravessar as fronteiras desse território, para áreas controladas pelo EI.
E também atravessam as mesmas fronteiras e na mesma direção toneladas de armas e munição, caminhões cheios de material de construção e produtos de consumo em quantidade suficiente para manter bem abastecidas as prateleiras das lojas de Raqqah. Descobertas recentes comprovaramque o tal país é o ‘cliente’ número um, na compra de petróleo que o EI saqueia e contrabandeia. Essa é a via pela qual o tal mesmo país abastece os jihadistas com milhões de dólares diários, para que possam manter a campanha de terror.
O primeiro aliado possível de que se falou acima são as milícias curdas, chamada Forças de Defesa dos Povos e das Mulheres (YPG e YPJ). São o braço armado do PYD, partido sírio curdo, com laços muito próximos com o PKK turco. O segundo aliado possível de que se falou acima é a República da Turquia, onde vivem aproximadamente 17 milhões de curdos étnicos. O governo da Turquia considera YPG e YPJ ameaças mais graves à segurança nacional, que o EI.
O inimigo do meu inimigo é meu inimigo
Considerados os objetivos declarados dos chefes norte-americanos da guerra, a escolha acima não parecia difícil. Nada disso. Enquanto os combatentes curdos do YPG e YPJarriscavam a vida combatendo corpo a corpo contra militantes do EI, EUA e Turquia anunciaram em triunfo o acordo que engendraram entre eles e que permitiu que aviões dos EUA decolem de bases em território turco; em troca, os EUA dariam proteção aérea para criar uma “zona segura” (“segura” para a Turquia) dentro da Síria, inacessível para o EI e, também para as forças curdas.
Quando o EI atacou dentro da Turquia, com um suicida-bomba que matou 33 jovens ativistas na cidade turca de Suruc, a Turquia, preocupada com a evidência de que nem toda a camaradagem estava impedindo o EI de atacá-la, a Turquia afinal declarou que era hora de atacar os terroristas.
Porém, num movimento que surpreendeu amigos e inimigos, depois de fraca intervenção, com bombardeios leves contra posições do EI na Síria, a Turquia mudou de direção e lançou ataque gigante, de guerra total, contra os curdos do PKK, tanto na Turquia como no Iraque.
Efetivamente, a Turquia bombardeou – e reduziu a cacos – o precário processo de paz que se esperava que pusesse fim a 35 anos de guerra civil: os jatos turcos fizeram milhares de incursões, lançando o país outra vez em total caos, como se viu nos anos 1990s, quando a guerra civil estava no auge.
Internacionalmente, o PKK é visto como organização terrorista, embora suas ações quase sempre sejam atos de retaliação contra violências cometidas pelo governo turco contra seus próprios cidadãos (turcos) curdos – ações ilegítimas, portanto, por definição. Mas EUA e OTAN sistematicamente reconhecem o direito da Turquia de “defender-se” contra “a agressão do PKK“.
O que resta, como resumo de toda essa novela, é que atacar os guerrilheiros curdos é o melhor modo de a Turquia ajudar o EI. Os guerrilheiros curdos, homens e mulheres, já mostraram que são os oponentes mais determinados que o EI tem de enfrentar.
Foi o PKK quem derrotou o EI em Shengal, resgatando dezenas de milhares de Yezidis, quando até os Peshmergas, apoiados e armados pelos EUA, já havia fugido dos combates com o rabo entre as pernas. Esses guerrilheiros do PKK, que acumulam longa experiência de combate, foram integrados às fileiras do YPG e YPJ, e sem eles e elas vitórias importantes como em Kobane, Tel Abyad e, mais recentemente, Hassaka, nunca teriam acontecido.
A guerra é mais importante que a paz
Se os EUA estivessem seriamente engajados em combater contra o EI, estariam não só dando total apoio – em dinheiro e em palavras – aos combatentes do YPG e YPJ e à sua organização irmã, o PKK, mas, mais que isso, estariam cobrando coerência da Turquia, ante a montanha de provas que há de que os turcos, eles sim, estão apoiando os terroristas do EI; estariam exigindo que se abrissem as fronteiras entre os dois territórios de maioria curda, na Síria e na Turquia; estariam exigindo que os turcos suspendessem imediatamente (i) os bombardeios contra posições dos curdos do PKK e (ii) a campanha de terror contra civis curdos; e, também muito importante, tirariam o PKK da lista de organizações terroristas.
Infelizmente, as ações dos EUA mostraram que não estão interessados em nada disso.
Em vez de derrotar o EI, o objetivo dos EUA é preservar e expandir a influência dos EUA na região. Para essa meta, a Turquia é parceira mais valiosa que o YPG, o YPJ ou o PKK. Gestos falam mais que palavras. Ao escolher seus aliados, os EUA deixaram ver claramente suas prioridades: o poder dos EUA é mais importante que qualquer democracia; a influência dos EUA é mais importante que qualquer transparência ou honestidade; e qualquer guerra é mais importante que qualquer paz.*****
* Joris Leverink é jornalista free-lancer, com base em Istanbul; é pós-graduado em Economia política e edita o periódico ROAR Magazine.
Oriente Mídia
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