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quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A Rússia e o Oriente

IRRUSSIANALITY
13/10/2015, Paul Robinson,[1] Irrussianality
Tradução Vila Vudu
“Caros senhores, não duvidem: os senhores estão lidando com gente dura e cruel, mas não são pessoas ‘primitivas’ ou ‘atrasadas’. São exata e precisamente tão espertos quanto os senhores. Na relação com eles, ninguém jamais saberá quem manipula quem. Perfeita prova disso está nos dados recentes sobre destino final do armamento doado àquela oposição 


A campanha militar da Rússia na Síria é hoje notícia de primeira página; assim sendo, talvez seja o caso de, essa semana, o meu curso “A Rússia e o Ocidente” tirar uma folga das relações russo-ocidentais, para dar uma olhada na direção das interações da Rússia com o resto do mundo. E a olhada logo mostra que o relacionamento histórico entre a Rússia e povos não europeus não cristãos tem sido de certo modo diferente do relacionamento entre a Rússia e a Europa ocidental (e, depois, com os EUA) e diferente praticamente do relacionamento da Rússia com quase todo o resto do mundo.

Enquanto o mundo muçulmano foi muitíssimo mais avançado que a Europa ocidental, os europeus não parecem ter olhado naquela direção como algo a imitar. De fato, o mundo muçulmano foi durante séculos civilização a ser temida, e depois que deixou de ser temida (mais ou menos depois de levantado o sítio de Viena, de 1683 em diante) passou a ser algo que se olhava de cima para baixo. Com o poder europeu a disseminar-se pelo mundo na era do colonialismo, o ocidente acabou por se convencer da própria superioridade e da inferioridade dos demais, ideia que de certo modo persiste até hoje e se reflete na obsessão das políticas externas com disseminar por todo o mundo as normas democráticas liberais ocidentais.

A Rússia, diferente disso, raramente viu o oriente sob cores tão negativas. Apesar de o grande filósofo Vladimir Solovyov ter declarado os medos que lhe inspirava o ‘perigo amarela’, que ele acreditava que destruiria a Rússia, no geral os russos sempre se preocuparam mais com perigos que vinham do ocidente. Afinal, quase todas as grandes invasões que devastaram a Rússia haviam chegado por aquele lado. A única exceção são os mongóis, mas apesar do mito do ‘jugo mongol’, relatos contemporâneos dão conta de que os mongóis foram de fato bem brandos. Além do mais, governantes russos, longe de pintarem a administração mongol como inferior, a consideraram como modelo de poder e eficiência a ser copiado. Notável, por exemplo, que Alexander Nevskii, em meados do século 13, tenha optado por fazer a paz com os mongóis e lutar contra os germanos. Os mongóis, afinal, só queriam impostos; os Cavaleiros Teutônicos queriam converter todos, à força, ao catolicismo. Podendo escolher entre a conquista pelo oriente ou a conquista pelo ocidente, o oriente pareceu preferível.

Quanto ao Islã, não ameaçou a Ortodoxia Russa como se entendia que ameaçasse o Ortodoxia Russa . Houve relativamente poucos contatos entre o mundo muçulmano e a Rússia pré-Romanovs, mas ou poucos russos que se aventuraram por regiões islamistas em geral ficaram impressionados com o que viram. Exemplo disso é Afanasii Nikitin, cujo relato da viagem que fez à Pérsia nos anos 1460s convenceu muita gente de que o autor convertera-se ao Islã. Quando a Rússia expandiu-se para território muçulmano depois da conquista de Kazan em 1552, não deu qualquer sinal de interesse em converter muçulmanos à Igreja Ortodoxa. Depois houve várias guerras contra o Império Otomano, mas não diferiram, em natureza, das guerras que a Rússia combateu contra estados europeus.

A guerra russo-turca de 1877-8 foi justificada por um verniz de discurso civilizacional sobre salvar cristãos, dos bárbaros turcos, mas mesmo nesse caso os russos só se preocupavam com ‘resgatar’ búlgaros, não com ‘civilizar’ os otomanos.

Como David Schimmelpenninck van der Oye mostrou, o ‘orientalismo’ russo pré-revolucionário diferia de seu contraparte ocidental porque a maioria dos russos jamais endossou completamente os ideais europeus de superioridade racial. Especialistas como Aleksandr Kazem-Bek, Jozef Kowalewski e Vladimir Vasilev argumentaram que o governo russo beneficiaria territórios relativamente atrasados que a Rússia conquistara no século 19 no Cáucaso e na Ásia Central, mas ao mesmo tempo observaram que o atraso era produto de circunstâncias históricas, não de alguma inferioridade racial. Povos orientais, aos olhos daqueles russos eram tão perfeitamente capazes quanto os ocidentais. Os europeus, por sua vez, eram tão exatamente bárbaros quanto muçulmanos e asiáticos – como se vê nos quadros de Vasilii Vereshchagin de 1868, ‘After Success’ e ‘After Failure’, que mostra uma equivalência moral entre soldados da Ásia Central e soldados europeus, todos igualmente indiferentes aos mortos em combate.
Vasilii Vereshchagin, ‘After Success’ [Depois do sucesso], 1868
 
Vasilii Vereshchagin, ‘After Failure’ [Depois do fracasso]
Depois de conquistar larga fatia de território muçulmano na Ásia Central e no Cáucaso nos anos 1860s e 1870s, o Império Russo era ambivalente em relação aos seus súditos muçulmanos. Por um lado, o Império os via com alguma suspeita e não os tratava exatamente como iguais. Por outro lado, não tinha interesse nenhum em convertê-los à Igreja Ortodoxa e queria isentá-los de outros deveres de outros súditos, como o alistamento militar obrigatório. Alguns oficiais viam os muçulmanos como uma potencial 5ª coluna; mas outros os viam como excepcionalmente leais. 

Durante a 1ª Guerra Mundial, por exemplo, a esposa do vice-rei do Cáucaso Conde Vorontsov-Dashkov rejeitou pedido para que sua fundação caritativa oferecesse apoio a refugiados do Azerbaijão, sob o argumento de que “Não conheço nenhum refugiado tátaro (i.e., muçulmano). Só conheço traidores tátaros.” Por sua vez, o sucessor de Vorontsov-Dashkov, grão-duque Nikolai Nikolaevich, fez questão de visitar as mesquitas sunita e xiita em Tbilisi no mesmo dia em que chegou; adiante, rejeitou planos para instalar refugiados europeus em terra de muçulmanos; e declarou logo depois que “ninguém pode duvidar dos laços firmes que unem muçulmanos do Cáucaso e a Rússia”.Na era soviética, o Islã era, de uma perspectiva marxista, ideologia opressora, que tinha de ser eliminada. Os soviéticos, sim, conduziram estratégia vigorosa de secularização. 

Mas eram igualmente hostis ao cristianismo e a todas as religiões. Não segregaram o Islã, nem o expuseram sob luz exclusivamente negativa. É verdade que o estrato superior dos governantes soviéticos veio quase exclusivamente de partes europeias da URSS, e as práticas econômicas soviéticas na Ásia Central podem, em alguns casos, ser vistas como colonialistas. Aos olhos dos soviéticos, a relação entre russos e centro-asiáticos tinha algo de relação entre mãe e prole – garantir à prole nutrição e sobrevida, mas absolutamente sem igualdade. Mesmo assim, de Khrushchev em diante, sob a doutrina da korenizatsiia [indigenização] (que determinava que as repúblicas nacionais da URSS fossem governadas por membros da nacionalidade em questão, caso a caso), o Partido Comunista tentou empenhadamente educar e promover elites locais e permitir certo grau de autonomia. O modelo colonial não é totalmente adequado.

Em resumo, se se revisa a história do relacionamento entre a Rússia e o oriente em geral, e com o Islã em particular, vê-se que essa história não é tão negativa quanto a história do ocidente. Houve um pouco menos de hostilidade e medo, um pouco menos de ares de superioridade e também um pouco mais de tolerância. Combina com a visão eslavófila que descrevi noutro trabalho, que argumenta a favor da diversidade cultural. Isso pode ajudar a explicar por que a Rússia, apesar de ter conquistado e até certo ponto explorado povos muçulmanos no passado, mantém hoje relações bem melhores (embora longe de serem perfeitas) com partes do mundo muçulmanos, que as relações que há (ou não há) entre o ocidente e o mundo muçulmano. *****


[1] Paul Robinson é professor da Graduate School of Public and International Affairs da Universidade de Ottawa, e autor de vários livros sobre história russa e soviética, dentre os quais Grand Duke Nikolai Nikolaevich: Supreme Commander of the Russian Army.
* Epígrafe acrescentada pelos tradutores [NTs].

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