26/10/2015, Ghassan Kadi, The Vineyard of the Saker
Tradução Vila Vudu
Devo agradecer ao meu querido amigo Andrew Korybko, pela inspiração para escrever esse artigo. Depois que Korybko entrevistou-me, há alguns dias, em seu programa Redline na Sputnik Radio, ficou claro para mim que muitos observadores veem Erdogan como personagem mercurial, o que ele é. Contudo, se se examinam sua ideologia e sua história, muitos se surpreenderão, provavelmente, ao descobrir que é homem muito mais previsível que muitos outros governantes.Confessar que não visito a Turquia desde o final de 1983. Entre o início de 1982 e o final de 1983, fiz no mínimo dez viagens de trabalho à Turquia.
Um dos truques que aprendi foi fazer minhas refeições no hotel e incluí-las na conta a ser paga na minha partida. Para pequenas despesas em dinheiro, também aprendi a nunca converter mais de 100 dólares norte-americanos, por causa da rápida depreciação da lira turca. Assim, cada vez que convertia 100 EUA-dólares, mais dinheiro turco eu recebia; e deixando para pagar a conta do hotel no último momento, era garantido que pagaria sempre o menor preço possível.Muita coisa mudou desde então, e sem dúvida no front econômico. A Turquia hoje se orgulha de ser a 16ª economia do mundo.
Tem-se de reconhecer os sucessos de Erdogan no front econômico. Em curto tempo, ele converteu a economia turca, de estado quase falido, em economia industrial viável e competitiva. Com economia mais rica, Erdogan desenvolveu melhor atenção à saúde e melhores serviços sociais em geral, com o que ganhou prestígio e apoio.A Turquia também mudou, de nação com características, ares e trajes liberais à ocidental, para nação que tem governo islamista em espírito, ares, trajes e aspirações.
Por fim, mas não menos importante, o poder político saiu das mãos das forças armadas e poucos, para aparecer, de fato e de direito, nas mãos do presidente. Essa foi enorme mudança, que talvez tenha metido o último prego no caixão do legado de Ataturk.
Ataturk deu poder às lideranças militares. Chefes militares, um conselho de três, das três principais divisões das forças armadas, tinha o poder de um conselho de anciãos e a posição de fiscal do dos atos do governo. Se os políticos pusessem seus próprios interesses à frente do bem público, o conselho dos generais podia declarar o que, no ocidente, foi visto como golpe militar, quando, na verdade, tratava-se de um colégio de chefes militares exercendo os próprios poderes constitucionais para salvar o estado, ante a temeridade dos políticos.
Erdogan acabou com o poder dos militares e deu ao presidente poder total e impunidade virtual. Claramente estava preparando algo grande, para o que entendia que precisaria de poder sem fiscais militares.
Nada do que acima escrevi sobre Erdogan é argumento a favor da previsibilidade, a menos que se ponham as coisas no contexto de sua filiação religiosa islamista. Para poder ver a previsibilidade, é preciso parar um momento e considerar que se está falando do presidente de um país, e analisar quais os traços definitórios de um governante crente do Islã e a ‘hierarquia’ que há de respeitar no seu processo de tomada de decisões.
Considerados do ponto de vista das deformações ideológicas do islamismo, não há diferença alguma entre Erdogan e qualquer militante do ISIL. Ambos são movidos pela mesma ‘doutrina’ resultante de interpretações viciosas do que supõem que seja o Corão; e ambos são movidos pela mesma paixão e visam aos mesmos objetivos de converter todo o mundo em estado islamista regido pelo que entendem que seria a lei da Xaria.
Apesar dos muitos diferentes grupos islamistas que há hoje, a diferença entre eles não é religiosa. Diferem, sim, mas só nas estratégias, discutem lealdades políticas circunstanciais e transitórias, dinheiro e armas (como acontece hoje na Síria), não concordam entre eles sobre o que significa a Jihad para uns e outros e sobre quem seguir, quando entrar e quando sair da guerra, mas, em essência, não há nenhuma diferença entre as respectivas doutrinas e vários ‘grupos’, absolutamente nenhuma.
Erdogan pode ter tido alguma rusga com o ISIL, que o separou mortalmente deles, pelo menos por hora, mas brigas entre islamistas não é coisa que chegue às manchetes ‘jornalísticas’. Para elaborar esse ponto, pode-se dizer que um membro da Fraternidade Muçulmana (FM) pode facilmente mudar de lado, tornar-se salafista, depois unir-se ao ISIL e, adiante, voltar ao começo e à FM. Como islamista que é, jamais se alistará, digamos, ao Partido Comunista e/ou a qualquer outro partido secular.
Afinal, estrategicamente e ideologicamente, Erdogan tem dois inimigos regionais: os curdos e a Síria.
Pode-se ampliar um pouco a coisa e incluir um terceiro inimigo: os xiitas. Dizer isso implica que, se Erdogan declarasse abertamente sua animosidade contra os xiitas, teria de declarar guerra ao Irã. Se o fizesse, estaria levando a Turquia para direção sem precedentes, embora ideologicamente previsível. Ainda não chegou a esse ponto e tem limitado aos xiitas alawitas sírios o seu ódio sectário contra todos os xiitas, sabendo perfeitamente que isso desagrada aos milhões de alawitas turcos e causa tensão sectária dentro da Turquia.
Mas há o outro aspecto de Erdogan: o aspecto étnico nacionalista turcomeno. A Turquia é um amálgama de culturas e povos, com longa história de rivalidade étnica e remanescentes de impérios ancestrais. Os turcomenos, que são mongóis de origem, são os fundadores originais do Império Otomano que tiraram dos bizantinos o poder e a glória de Constantinopla (adiante renomeada Istanbul), pondo fim à dinastia ortodoxa do Sacro Império Romano do Ocidente.
Ao tomarem à força a Anatólia, os otomanos mudaram o nome, a religião e o idioma que ali havia. Além do mais, desde a fundação do Império Otomano no século 15, os turcomenos têm ascendência sobre os demais povos (ou ‘raças'; em turco, Halks), que ficam em posição subalterna, eternamente ressentidos por o poder que lhes ter sido usurpado e por terem cidadania de nível inferior à dos turcomenos.
Nos primeiros dias dos otomanos, os cristãos ortodoxos enfrentaram coerção para adotarem o Islã, e discriminação, se não o adotassem. Nos estágios finais, gregos e armênios enfrentaram o mesmo destino. Até que, com o Império Otomano já em colapso, e a França decidindo doar à Turquia, como prêmio de consolação, as regiões sírias de Celicia e Iskandarun, os sírios e, claro, também os curdos, foram também deixados na mesma posição de desvantagem em que já viviam outros grupos não turcomenos.
Os curdos, vale lembrar, são, de longe, o maior grupo étnico desses todos, com aproximadamente 20 milhões de pessoas só na Turquia.
Além do mais, dizer que os gregos viveram no Turquia é cometer grave erro de subestimação. Em termos históricos, o Mar Egeu é berço da cultura helênica, que dali se espalhou para as duas costas litorâneas. E muita gente deixa passar sem ver a evidência de que a antiga cidade “grega” de Troia pode ser visitada hoje, na costa ocidental da Turquia. Até hoje, da costa ocidental da Turquia avistam-se as ilhas gregas; e a própria Turquia ocidental é pois historicamente helênica, e não é menos grega que Atenas.
Não é raro nem surpreendente portanto ouvir na Turquia a expressão “Halkler turcos”, para “Povos Gregos”, sem qualquer referência à palavra “povo” ou “povos”. O termo Halkler subentende divisões e perigos subjacentes se e quando aqueles diferentes “Halks” estão em combate uns contra os outros – precisamente a direção para onde a Turquia parece estar caminhando, se se intensificarem as divisões entre curdos e turcos, e entre sunitas e alawitas, como se vêm intensificando desde que Erdogan resolver ter papel protagonista na “Guerra contra a Síria”.
É irônico que Erdogan tenha iniciado sua caminhada até a liderança fazendo fortes avanços na direção de se reconciliar turcos e curdos. Mas depois, quando Erdogan vestiu o boné de aspirante a sultão islamista, escolheu apoiar os islamistas que lutassem contra a Síria secular. Esses erros de cálculo levaram à situação em que os curdos sírios tiveram de pegar em armas e se defender, eles mesmos, contra os tais islamistas. E Erdogan também teve de vestir o boné de zelote fanático turcomeno e virar-se contra os curdos sírios, sabendo perfeitamente que, com isso, atrairia contra ele a ira dos curdos turcos.
Quando os curdos foram empurrados entre a espada e a parede e ficaram sem alternativa e tiveram de lutar contra o ISIL, Erdogan, “irmão” da Fraternidade Muçulmana, pôs de lado as diferenças políticas que o separavam do ISIL e arriscou a própria unidade da Turquia para se aliar contra os curdos. Tudo isso porque Erdogan é, em primeiro lugar e sobretudo, islamista; e porque, em segundo lugar, é zelote turcomeno fanático.
Fica assim perfeitamente claro que Erdogan põe sua agenda islamista à frente de sua agenda turcomena e à frente da unidade e coesão da Turquia.
Erdogan dispôs-se a arriscar tudo que algum dia fizera de bom, todas as realizações de seu governo, e pôr o país à beira de uma guerra civil, para não abandonar seus ‘irmãos’ e respectiva agenda islamista.
Agora, com as decisivas eleições do dia 1º de novembro que se aproximam rapidamente, a Turquia está rachada por fundos ressentimentos ‘étnicos’, há agitação entre os cidadãos, há divisões religiosas sectárias, há risco de desastre econômico que sem dúvida pode advir do quadro geral e, sobretudo, já começaram os ataques terroristas, o mais grave dos quais, até agora, aconteceu recentemente contra manifestação pacífica de cidadãos na capital Ancara.
Por tudo isso, Erdogan pode mostrar-se um dia com o boné de reformador, dia seguinte como o homem da OTAN no Levante. Pode até enganar alguns dos lobbyistas pró-palestinos, quando bate no peito e chora porque Israel atacou Gaza ou matou várias pessoas que viajavam a bordo do Mavi Marmara.
Agora, quer ser visto como herói nacional que tanto luta para alcançar o marco ante o qual fracassaram todos os seus predecessores: pôr a Turquia como membro da União Europeia. Porém, se isso lhe trouxer algum voto, o tempo voa e dia 1º de novembro não está longe.
Erdogan também faz pose de herói turcomeno que promove o legado da superioridade turcomena, como todos seus predecessores otomanos. Porém, se se examinam a fundo os seus movimentos como governante, vê-se que, do Islã, Erdogan só conhece algum manual cheio de dogmatismo e da previsibilidade típica dos textos ultra simplificados, de iniciação.
Oriente Mídia
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