“Quando os EUA lançaram sua Guerra Global ao Terrorismo logo depois do 11 de setembro, o lançamento acompanhava uma agenda grandiosa. As forças norte-americanas imporiam dali em diante, a todos, um conjunto específico e exaltado de valores.”
EUA: Construir exércitos (e vê-los fracassar)
Primeiro foi Fallujah, depois Mosul, e adiante, Ramadi no Iraque. Agora, aí está Kunduz, capital provincial no norte do Afeganistão. Em todos esses locais, viu-se encenada a mesma história: em cidades que a mídia-empresa gosta de chamar de “estrategicamente importantes”, forças de segurança treinadas e equipadas por militares norte-americanos a custo altíssimo, simplesmente fugiram, abandonando suas posições (e boa parte das armas que os EUA lhe forneceram), sem sequer oferecer resistência considerável. Convocados à luta, fugiram. Em cada caso, as forças de defesa cederam ante inimigo em muito menor número, o que torna o resultado ainda mais vergonhoso.
Somados, esses revezes são o veredito vivo dessa hoje praticamente já sem nome “Guerra Global ao Terrorismo” (GGT) [orig. Global War on Terrorism (GWOT)]. Guerras-relâmpago sucessivas comandadas pelo ISIL/ISIS/Daesch/Estado Islâmico e pelos Talibã respectivamente fizeram muito mais do que simplesmente penetrar defesas iraquianas e afegãs. Elas também abriram buracos na estratégia que os EUA abraçaram, na esperança de controlar a crescente erosão de sua posição do Oriente Médio Expandido.
Recordemos que, quanto os EUA lançaram sua Guerra Global ao Terrorismo logo depois do 11 de setembro, o lançamento acompanhava uma agenda grandiosa. As forças norte-americanas imporiam dali em diante, a todos, um conjunto específico e exaltado de valores. Durante o primeiro mandato do presidente George W. Bush, sua “agenda liberdade” constituía o alicerce ou, no mínimo, a justificativa, da política norte-americana.
O tiroteio só pararia, Bush jurava, quando países como o Afeganistão tivessem aprendido a não dar abrigo a terroristas anti-EUA, e países como o Iraque tivessem parado de encorajá-los. Alcançar esse objetivo significava que os habitantes desses países teriam de mudar. Afegãos e iraquianos, seguidos na devida ordem dos fatos por sírios, líbios, iranianos e incontáveis outros povos abraçariam a democracia, todos os direitos humanos e o estado de direito, ou seriam dinamitados. Pela ação concertada do poder dos EUA, todos esses países seriam tornados outros – mais assemelhados aos EUA e mais inclinados a concordar conosco. Cada vez menos Meca e Medina, cada vez mais “nós defendemos essas verdades” e “do povo, pelo povo”.
Nisso Bush e outros do seu círculo mais íntimo juravam crer. No mínimo, alguns deles, provavelmente até o próprio Bush, talvez realmente cressem.
A história, pelo menos os fragmentos e pedaços que os norte-americanos viram acontecer, parecia confirmar tais expectativas, com um mínimo de plausibilidade. Semelhante transferência de valores já não acontecera, sem tirar nem pôr, depois da 2ª Guerra Mundial, quando as derrotadas Potências do Eixo tão rapidamente se atiraram ao colo do lado vencedor? Já não acontecera também nos estertores da Guerra Fria, quando comunistas comprometidos sucumbiam à sedução do consumismo e da distribuição trimestral de lucros?
Se o mix apropriado de sedução e coerção lhes fosse servido, afegãos e iraquianos, eles também, com certeza seguiriam o mesmo caminho que antes bons alemães e lépidos japoneses seguiram e que, depois, também tchecos cansados de repressão e chineses cansados de só desejar também seguiram.
Uma vez libertados, afegãos e iraquianos gratos se alinhariam também a uma concepção de modernidade da qual os EUA haviam sido pioneiros e hoje exemplificam. Para que essa transformação acontecesse, contudo, os restos acumulados de convenções sociais e arranjos políticos que tanto haviam retardado o progresso teriam de ser varridos para bem longe. Esse era o objetivo que as invasões do Afeganistão (Operação Liberdade Duradoura!) e do Iraque (Operação Liberdade Iraquiana!) foram concebidas para atingir num só golpe, por militares como o mundo jamais antes vira (bastaria ouvir o que Washington dizia). Power of War, POW, Poder da Guerra!
Eles se erguem, nós nos retiramos.
Escondidas por trás da tal tão citada “liberdade” – a justificativa com 1001 utilidades para o deslocamento do poder bélico dos EUA – havia muitas nuances de significado. O termo, na verdade, tem de ser decodificado. Mesmo assim, dentro dos estratos superiores do aparelho de segurança nacional dos EUA, uma definição assume precedência sobre todas as demais. Em Washington, “liberdade” passou a ser eufemismo para “dominação”. Disseminar a liberdade significa posicionar os EUA para comandar e decidir. Vistas nesse contexto, as vitórias esperadas no Afeganistão e no Iraque visavam a afirmar e expandir a predominância dos EUA, mediante a incorporação, ao poder imperial dos EUA, de vastas porções do mundo islâmico. Eles se beneficiariam, é claro. Mas muito mais nos beneficiaríamos nós.
Infortunadamente, libertar afegãos e iraquianos revelou-se empreitada muito mais complicada do que havia sido previsto pelos arquitetos da agenda de libertação (ou de dominação), de Bush. Antes de Barack Obama substituir Bush, em janeiro de 2009, poucos observadores – além de um punhado de ideólogos e militaristas – acreditavam no conto de fadas de um poder militar norte-americano que obrigaria o Oriente Médio, por mágica, a se alinhar. Brutalmente, mas eficientemente, a guerra educou os educáveis. Quanto aos não educáveis, continuaram a ouvir e a repetir tudo que lhes ensinavam a rede Fox News e Weekly Standard [revista fortemente conservadora, que hoje, por falar nela, já está empenhada de corpo e alma na candidatura de Hillary Clinton(NTs)] .
Mas, se a estratégia de transformar mediante invasão e “construção da nação” falhara, havia outra posição que parecia ditada pela lógica dos acontecimentos. Juntos, Bush e Obama cuidariam de reduzir as expectativas de o quanto os EUA alcançariam, mesmo enquanto impunham novas demandas aos militares norte-americanos, o braço dos EUA para política exterior, para que continuassem a tentar cumprir a agenda posta.
Em vez de operar como parteiro de mudança política e cultural fundamental, o Pentágono recebeu ordens para escalar os esforços – já então desmesurados – para criar exércitos (e forças policiais) locais capazes de manter a ordem e a unidade nacionais. O presidente Bush criou formulação concisa da nova estratégia: “Enquanto os iraquianos se erguem, nós nos retiraremos”. Com Obama, depois de seu próprio golpe naquela “avançada/surge”, o dictum passou a se aplicar também ao Afeganistão. A construção-da-nação gorara. Construir exércitos e forças policiais capazes de manter a tampa bem firmemente fechada sobre tudo e todos passou a ser, então, a definição prevalente de “sucesso”.
Claro, os EUA já haviam tentado antes essa abordagem, com resultados infelizes. Foi no Vietnã. Ali, esforços para destruir as forças do Vietnã do Norte e do Viet Cong que lutavam para unificar o próprio país haviam exaurido os militares norte-americanos e a paciência do povo dos EUA. Respondendo à lógica dos eventos, os presidentes Lyndon Johnson e Richard Nixon já tinham plano previsto para essa eventualidade. Com as chances de as forças dos EUA conseguirem eliminar as ameaças à segurança do Vietnã do Sul, o treinamento, armamento e preparação dos sul-vietnameses para se autodefenderem viraram prioridade absoluta.
Apelidada de “Vietnamização”, essa empreitada acabou no mais abjeto fracasso, com a queda de Saigon, em 1975. Mas o fracasso levantou importantes questões às quais a elite da segurança nacional dos EUA deveria ter prestado atenção: Se o estado é fraco, com duvidosa legitimidade, que viabilidade há/haveria em esperar que gente de fora realmente investiria as forças locais com genuíno poder de luta? Como diferenças na cultura ou história ou religião afetam o futuro do tal ‘investimento’ exterior, em forças locais? Há capacitação e armas suficientes para suprir um déficit de vontade? Equipamento substitui coesão? Sobretudo: se forem encarregadas de dar nova chance a uma nova versão da Vietnamização, o que as forças dos EUA têm de fazer de modo muito diferente, para poder esperar resultado diferente?
Naquela época, com oficiais generais e oficiais civis mais inclinados a esquecer o Vietnã, do que a analisar implicações do Vietnã, essas questões atraíram bem pouca atenção. Em vez de cuidar delas, os militares profissionais devotaram-se a se reequipar para a guerra seguinte, a qual, como então decidiram, seria diferente. Não mais Vietnãs – e, portanto, não mais Vietnamização.
Depois da Guerra do Golfo de 1991, apoiados no ostentável sucesso da Operação Tempestade no Deserto, o corpo de oficiais se autoconvenceu de que havia definitivamente apagado as más lembranças induzidas pelo Vietnã. Como o comandante-em-chefe George H.W. Bush disse, em frase inolvidável, “Juro por Deus, chutamos de uma vez por todas a síndrome do Vietnã!”
Em resumo, o Pentágono decifrara a guerra. A vitória, agora, seria conclusão necessária. O que aconteceu foi que essa avaliação autocongratulatória esqueceu as tropas norte-americanas, que foram mal preparadas para as dificuldades que as esperavam depois do 11 de setembro, quando as intervenções no Afeganistão e no Iraque começaram pelo velho script, que determinava guerras rápidas por força sem igual, que alcançaria vitórias decisivas. Mas os soldados encontraram duas longas guerra, que até hoje não foram ‘decididas’. Era o Vietnã, tudo outra vez, em escala menor – mas multiplicado por dois.
Vietnam 2.0
Para Bush no Iraque e Obama depois de rápido flerte pouco entusiasmado com uma contrainsurgência no Afeganistão, optar por uma variante da Vietnamização pareceu a coisa mais simples de fazer. E a opção oferecia uma sugestão de rota de fuga para bem longe de todas as complexidades. Bem verdade que o Plano A – nós exportamos liberdade e democracia – fracassara. Mas o Plano B – eles (com nossa ajuda) restauram alguma coisa que passe por estabilidade – pode permitir que Washington salve pelo menos algum sucesso parcial nos dois espaços. Com a barra das exigências assim já bem convenientemente rebaixada, uma versão de “Missão Cumprida” pode ainda ser alcançável.
Se o Plano A visara a conseguir que os militares norte-americanos dizimassem rapidamente os adversários, o Plano B focava-se em empurrar aliados sitiados para que assumissem os combates. A meta já não era vencer – dada a incapacidade dos militares norte-americanos para vencer qualquer guerra, essa meta era autoevidente, não era adivinhação. – A meta passava ser manter o inimigo a uma distância segura.
Embora aliados dos EUA, só no sentido mais laxo da expressão Iraque ou Afeganistão qualificam-se como nação-estado. Governos em Bagdá e Cabul só nominalmente e intermitentemente são imbuídos de autoridade que as respectivas populações conhecidas como ‘afegãos’ e ‘iraquianos’ respeitem. Mesmo assim, na Washington de George Bush e Barack Obama, algo como uma voluntária suspensão de qualquer racionalidade passou a ser ‘a base’ das políticas. Em terras distantes onde o conceito de nacionalidade mal existia, o Pentágono meteu-se a tentar construir um aparelho completo de segurança nacional capaz de defender aquela aspiração como se representasse a realidade. Desde o primeiro dia, foi grosseira subestimação da realidade, amparada na fé.
Como em todos os projetos que o Pentágono assume ‘para arrasar’, esse também consumiu recursos em escala gargantuesca – $25 bilhões no Iraque e ainda mais estarrecedores $65 bilhões no Afeganistão. “Erguer” por lá mesmo as necessárias forças envolveu transferência de vastas quantidades de equipamento e a criação de elaboradas missões norte-americanas para treinamento. Forças iraquianas e afegãs obtiveram toda a parafernália da guerra moderna – aviões ou helicópteros de ataque, artilharia e veículos blindados, equipamento para visão noturna e drones. Desnecessário dizer, logo apareceram longas filas deempresas fornecedoras da Defesa, interessadas em fazer dinheiro rápido.
A julgar pelo desempenho, as forças de segurança nas quais o Pentágono injetou anos de atenção permanecem visivelmente insuficientes para o serviço. Entrementes, os guerreiros do ISIL/ISIS/Daesch/Estado Islâmico, sem os benefícios da orientação de um caríssimo quadro de distantes mentores especiais, surgiu pleno de convicção, para lutar e morrer pela própria causa. Como os combatentes Talibã no Afeganistão. E os beneficiários da assistência técnica que os EUA distribuem? Nada bem. Considerados retornos parciais, mas em considerável quantidade, a Vietnamização 2.0 parece estar seguindo uma trajetória fantasmagoricamente familiar em que todos, sem faltar um, reconhecerão a Vietnamização 1.0. As perguntas que teriam de ter sido se não respondidas, no mínimo examinadas lá atrás, quando nossos aliados sul-vietnameses foram miseravelmente derrotados, voltaram como fantasma e vingança.
A mais importante daquelas questões desafia o pressuposto que deu forma à política dos EUA no Oriente Médio Expandido desde que a agenda ‘da liberdade’ viajou para o sul: que Washington tem alguma especial capacidade e extraordinária competência para organizar, treinar, equipar e motivar exércitos estrangeiros. Se se consideram as evidências que se empilham diante dos nossos olhos, aquele pressuposto é em grande parte, falso.
Falando desses resultados, o tenente-general aposentado Karl Eikenberry, ex-comandante militar e embaixador dos EUA no Afeganistão, já ofereceu sua avaliação de autoridade no assunto. “Nosso currículo no setor de construir forças [estrangeiras] de segurança ao longo dos últimos 15 anos é miserável” – disse ele recentemente ao New York Times. Só isso.
Guerrear a guerra errada.
Há de haver quem argumente que, se se tentar com mais empenho, investirem-se mais bilhões, enviar mais equipamento durante, digamos, mais 15 anos, os resultados aparecerão. Mas isso é o mesmo que acreditar que, no prazo longuíssimo, os frutos do capitalismo acabarão por gotejar pirâmide abaixo e beneficiarão até o último dos homens, ou que a marcha da tecnologia esconde o segredo da felicidade humana. Se você quiser, pode acreditar, mas é jogo perdido.
A verdade é que os EUA estaria mais bem atendido, se os políticos parassem de fingir que o Pentágono teria algum dom sobre-humano qualquer para “erguer” exércitos em terras distantes. A prudência aconselha, na verdade, que Washington assuma que, no que tenha a ver com organizar, treinar, equipar e motivas exércitos estrangeiros, os EUA estão absolutamente sem noção.
Pode haver exceções. Por exemplo, os esforços dos EUA podem provavelmente ter ajudado a ampliar o poder de combate da Peshmerga curda. Mas é exceção rara, que ajuda a confirmar a regra. Tenham em mente que, antes dos instrutores e equipamentos norte-americanos tivessem sequer surgido por lá, os curdos iraquianos já tinham os atributos essenciais para constituir uma nação. Diferentes dos afegãos e iraquianos, os curdos não precisam de mentores que lhes ensinem sobre a imperiosa necessidade de haver alguma autodefesa coletiva nacional.
Quais as implicações políticas de desistir da ilusão de que o Pentágono saberia o que fazer para construir exércitos estrangeiros? A maior delas é a seguinte: sublocar guerras deixa de aparecer entre as alternativas plausíveis a guerrear diretamente, porque assim se substituem soldados nossos, por soldados deles. Perdida a ilusão de que o Pentágono teria o tal ‘dom’, aconteceria que, em todos os casos em que, para defender interesses dos EUA, fosse preciso guerrear, nós teríamos de morrer nas próprias guerras.
Por extensão, em circunstâncias nas quais as forças dos EUA são demonstradamente incapazes de vencer guerra alguma, ou onde os norte-americanos se neguem a admitir qualquer gasto adicional de sangue norte-americano – hoje, no Oriente Médio Expandido, as duas condições acima se aplicam -, a conclusão será que nada temos de fazer lá (seja onde for).
Fingir que alguma outra coisa seria melhor solução é jogar dinheiro bom onde já se perdeu dinheiro ruim, como um famoso general norte-americano disse certa vez, para guerrear (ainda que indiretamente) “a guerra errada, no lugar errado, na hora errada e contra o inimigo errado.” É o que os EUA vimos fazendo já há várias décadas em grande parte do mundo islâmico.
Na política norte-americana a nação espera por presidente ou candidato à presidência interessado em afirmar o óbvio e enfrentar suas implicações. 1
Putin reforça a mão de Assad, antes de conversações de paz.
O repentino, inesperado encontro entre o presidente Vladimir Putin da Rússia e o presidente Bashar al-Assad da Síria, em Moscou, n 3ª-feira passada, teve a ver com a ação diplomática para iniciar um processo político, segundo destacados especialistas russos aqui em Sochi.
Um dos mais importantes diplomatas russos, embaixador Alexander Aksenyonok (que trabalhou nas negociações para os acordos de Dayton), disse que Moscou tem interesse numa solução política na Síria “o mais rapidamente possível – e essa será também nossa estratégia para sair de lá.”
Segundo todos os relatos, a reunião em Moscou na 3ª-feira transcorreu em atmosfera excepcionalmente calorosa, amistosa; e Assad viajou imediatamente depois de receber o convite de Putin. Os dois presidentes mantiveram conversações em nível de delegação, e também uma reunião limitada.
A transcrição oficial do Kremlin cita Putin, falando a Assad: “Sobre a questão de um acordo para a Síria, nossa posição é de que resultados positivos nas operações militares são a base para construam acordo de longo prazo baseado num processo político que envolva todas as forças políticas, grupos étnicos e religiosos.”
Putin acrescentou: “Na verdade, é o povo sírio, e só ele, quem deve ter a palavra final nesse assunto. A Síria é nação amiga da Rússia, e estamos prontos a dar nossa contribuição, não só nas operações militares e na luta contra o terrorismo, mas também para o processo político. Faremos tudo isso, claro, em íntimo contato com as demais potências globais e com os países da região que desejem ver acordo pacífico que ponha fim a esse conflito”.
Consideradas no todo, as observações de Putin devem pôr fim a quaisquer noções fantasiosas (ou mal-intencionadas) disseminadas pelos adversários detratores no ocidente e na região, segundo as quais a Rússia estaria se aproximando da ideia de que Assad teria de sair para abrir caminho para um novo governo na Síria.
Bem ao contrário, a reunião da 3ª-feira no Kremlin reforça os laços já fortes que unem os dois países e os dois presidentes. Na verdade, a recepção de ‘tapete vermelho’ preparada pelo Kremlin para dar boas-vindas a Assad – tudo deliberadamente planejado, é claro – deixou muita gente em Washington com as penas arrepiadas, como era previsto. O porta-voz da Casa Branca lamentou abertamente que [a reunião] “desmente o que os russos dizem sobre transição política na Síria”.
Como se poderia esperar, também causou algum desconforto em Washington que Putin tenha decidido agendar a reunião com Assad exatamente no mesmo dia em que EUA e Rússia firmavam memorando de entendimento para prevenir incidentes aéreos na Síria.
Assim também, o timing da reunião de Putin e Assad, apenas poucos dias antes do início das conversações tripartites em nível ministerial, entre EUA, Rússia, Turquia e Arábia Saudita, na 6ª-feira, em Viena, também carrega seu próprio simbolismo.
De fato, Putin falou ao telefone com o presidente Recep Erdogan da Turquia, com o rei Salman da Arábia Saudita, com o presidente egípcio Abdel Fattah el-Sisi e com o rei Abdullah II da Jordânia, na 4ª-feira, para informá-los dos “resultados das conversações” com Assad na noite anterior.
Tudo considerado, portanto, a visita de Assad a Moscou assinala, em termos políticos, o início da avançada diplomática chefiada por Putin, para resolver a questão síria. Impulso robusto dos russos para uma reunião das potências exteriores com influência na Síria, para que todas voltem às negociações que agora se podem esperar para a reunião em Viena, da qual participará o ministro Sergey Lavrov, das Relações Exteriores da Rússia.
Por outro lado, as conversas de Putin com os líderes turco e árabe, para atualizá-los sobre suas conversas com Assad transmitem mensagem forte de que, na avaliação dos russos, Assad continua em ativo comando como chefe do Estado sírio; é protagonista inafastável de qualquer processo político; e seus interesses não podem ser ignorados em qualquer processo político. Sem sombra de dúvida, a realidade em campo é também que a ação a Força Aérea da Rússia, no combate contra os terroristas, fortaleceu o governo sírio.
Enquanto isso, a Turquia assistirá com crescente mal-estar aos relatos recentes que sugerem que os sírios curdos podem brevemente inaugurar um ‘escritório’ em Moscou. Alto especialista em Oriente Médio, Vitaly Naumkin, Diretor do Instituto de Estudos Orientais da Academia de Ciências da Rússia, disse aqui em Sochi na 4ª-feira, que os sírios curdos têm esperança de ter entidade deles em seus territórios tradicionais na parte norte do país, mas que a linha a não ultrapassar para negociadores sírios e árabes será preservar a unidade do país a qualquer custo e, daí, portanto, o papel da Rússia será de ‘mediadora’.
Mas a impressão que persiste é que Moscou sente-se cada dia mais exasperada ante o jogo duplo dos turcos na questão síria. Pode ser o caso de a Turquia ter afinal captado a mensagem e pode estar cautelosamente modificando sua posição sobre Assad.
Alto funcionário turco disse em Ancara, na 2ª-feira, que a Turquia está disposta a aceitar uma transição política pela qual Assad permanece no poder por seis meses, antes de deixar o governo. Bem evidentemente, a Turquia percebeu que se meteu num beco sem saída, dado que seria impossível não se dar conta de que confronto direto com a Rússia seria movimento arriscado demais.
Quanto à Arábia Saudita, já está superdistendida no Iêmen e não é provável que se interesse por desagradar Moscou e manter o apoio a grupos armados que se opõem a Assad. No máximo, talvez mantenha o fluxo de dinheiro. Seja como for, a especulação sobre a Arábia Saudita estar-se organizando para um replay da ‘Jihad afegã’ dos anos 80s, agora na Síria, nos próximos meses, está muito fora dos limites de qualquer possibilidade.
Mais uma vez resta saber se o rei Abdullah da Jordânia, que há um ou dois anos trabalha para construir laços com o Kremlin, deixará que o território da Jordânia seja usado como rota para enviar armas para grupos terroristas na Síria.
Ao contrário do que diziam relatos iniciais, a Jordânia não participará das conversações em Viena na 6ª-feira, apesar de o secretário de Estado dos EUA John Kerry ter mencionado o país como um dos convidados. Dada a decisão dos EUA de fechar seus campos de treinamento para terroristas sírios (e outros), é perfeitamente possível que a Jordânia esteja silenciosamente caindo fora da empreitada síria.
Interessante: o embaixador do Irã na Rússia Mehdi Sanaei revelou aqui em Sochi que o poderoso presidente do Parlamento do Irã [Majlis], Ali Larijani, estará em Moscou no próximo final de semana em visita oficial. Sem dúvida, as conversações entre Larijani e os russos serão dedicadas à Síria.
Mais uma vez, o timing da visita de Larijani a Moscou é balde de água fria sobre a especulação segundo a qual Rússia e Irã teriam interesses opostos na Síria. Têm-se ouvido recentemente especulações de que Moscou estaria querendo desistir de Assad, mas Teerã insistiria em que Assad permaneça e conversas desse tipo. A reunião de 5ª-feira no Kremlin acaba com essas especulações – pelo menos por enquanto.
E já começa nova especulação, segundo a qual Assad ter escolhido Moscou para sua primeira visita ao exterior desde o início dos confrontos na Síria há quatro anos, seria sutil mensagem ao Irã, de que quem manda é a Rússia. Mas, como a visita de Larijani comprova, a verdade é que Rússia e Irã trabalham em estreita coordenação na questão síria.
Na reunião em Moscou, na 3ª-feira, Assad manifestou claramente a Putin sua avaliação sobre a ação da Rússia de “ter-se integrado às operações militares, como parte da frente comum contra o terrorismo”. Evidentemente, Assad nada disse sobre a composição da “frente comum”, mas fato é que nem precisava dizer, quando é amplamente sabido que o Irã, ali, é constituinte chave. 2
Rússia: Vitória em Aleppo é crucial.
Trata-se, sempre, de Aleppo. Eis o que, na essência, está acontecendo no solo.
Damasco, com o Exército Árabe Sírio [ing. Syrian Arab Army (SAA)] controla a parte ocidental de Aleppo.
Algumas áreas no norte são controladas por curdos do Partido da União Democrática, (cur. Partiya Yekîtiya Demokrat , PYD) – muito mais engajados em combater contra ISIS/ISIL/Daesh do que contra Damasco. O PYD também é considerado aliado objetivo pelo governo de Obama e o Pentágono, para grande desgosto do ‘sultão’ Erdogan da Turquia.
A chave portanto é o leste de Aleppo. Está sob controle do chamado “Exército da Conquista”, que reúne militantes da Frente al-Nusra, codinome “Al-Qaeda na Síria, e o grupo salafista Ahrar al-Sham. Outras partes no leste estão sob controle de “restos” (©Donald Rumsfeld) do Exército Sírio Livre [ing. Free Syrian Army (FSA), que se recusaram a colaborar com o Exército da Conquista.
Lá pelos prédios da Av. Beltway onde vivem os operadores do governo norte-americano, todos os supracitados são considerados “rebeldes moderados”.
O desenvolvimento recente mais importante no campo de batalha em Aleppo é que o Exército Árabe Sírio – com a ajuda crucialmente importante dos russos – matou Abu Suleiman al-Masri, também conhecido como Mahmud Maghwari, líder da Frente al-Nusra, egípcio, nome que permanecia há eras na lista de matar do Cairo.
Adicionalmente, várias centenas de combatentes xiitas iraquianos, sob a supervisão do comandante superstar das Forças Quds Iranianas,Qasem Soleimani, foram transferidos de Latakia para Aleppo. E uma brigada blindada do Hezbollah, de cerca de três mil combatentes, também está para chegar.
O que está tomando forma é uma espécie de ofensiva pelo sul. Todas essas forças estarão convergindo não só para Aleppo, mas, num segundo estágio, terão também de limpar o terreno todo, até a fronteira turco-síria, que hoje é zona aérea de exclusão de facto, controlada pelos russos.
O alvo supremo é cortar as linhas de suprimento para todos e quaisquer atores salafistas ou jihadistas-salafistas – dos “rebeldes moderados” aoISIS/ISIL/Daesh. Aí está a razão de Moscou tanto insistir em que a luta se trave contra todas as griffes do terror, sem distinção. Não interessa que ISIS/ISIL/Daesh não seja o principal ator presente dentro e nos arredores de Aleppo.
Para todos os objetivos práticos, toda a campanha síria está agora sob gestão operacional, tática e estratégica dos russos – claro que com oinput estratégico chave, do Irã.
A coalizão Rússia-Síria-Irã-Iraque-Hezbollah na Síria – também conectada ao centro de inteligência “4+1” em Bagdá – tem grande chance de vencer a próxima Batalha de Aleppo, se preencher três condições:
1) Coordenação entre a cobertura aérea russa e a inteligência em solo para todas as operações (condição que se pode dar por preenchida); 2) Apoio popular (também se pode considerar condição atendida; a população sunita urbana em Aleppo, principalmente empresários, apoia Damasco); 3) Tropas em solo, com experiência de combate e em número não inferior a 15 mil (condição em vias de ser atendida, considerando a contribuição do Iraque e do Hezbollah).
No escuro.
Como se pode prever, há outra coalizão que não está exatamente felicíssima com a configuração que os combates estão assumindo.
No momento, a principal usina geradora de energia de Aleppo, a 25km a leste da cidade, está sob controle de ISIS/ISIL/Daesh. Por alucinado que pareça – mas toda a tragédia síria é alucinada -, há acordo informal entre Damasco e o falso ‘califato’: os doidos ficam com 60% da eletricidade produzida, o governo fica com 40%. Afinal de contas, até os degoladores – sejam suaves-moderados ou degoladores do tipo convencional -, também precisam de energia.
Assim sendo, o que fez a Coalizão dos Oportunistas Finórios (COF) – que inclui Turquia, Arábia Saudita e Qatar, além dos EUA – para ajudar na luta contra ISIS/ISIL/Daesh? Ora, há mais ou menos uma semana, bombardearam a usina de Aleppo. É bombardear infraestrutura civil síria – crime clássico, à maneira dos crimes de choque & pavor de 2003, cujas vítimas são, principalmente o “povo sírio” que o ‘Excepcionalistão’ tanto ama.
O que acontecer no campo de batalha em Aleppo e nos arredores nas próximas poucas semanas será essencial para definir o front diplomático. Como se sabe, Bashar al-Assad captou a mensagem de Moscou. Está pronto a discutir emendas à Constituição e preparado para realizar eleições parlamentares e presidenciais. Mas antes disso os “4+1” precisam de algum grande fato no campo de batalha.
Até o secretário de Estado dos EUA John Kerry mudou a cantilena, depois de falar com o ministro russo de Relações Exteriores Sergey Lavrov: qualquer solução política implica envolvimento direto de Damasco e também da “oposição patriótica”.
Mas os “patriotas” do Exército Sírio Livre ainda não entenderam. Lavrov explicitamente comprometeu Moscou com ajudá-los – mesmo depois de terem recebido armas via Turquia e Jordânia para usá-las contra Damasco – desde que combatam contra ISIS/ISIL/Daesh. Como seria de prever, os tais “patriotas/rebeldes moderados” desconsideraram o oferecimento de Lavrov.
Outro absurdo nada diplomático é a ausência do Irã na mesa de negociações – por causa da paranoia aguda da Casa de Saud. Generais e conselheiros iranianos são componentes chaves das operações em solo, na análise da inteligência colhida em solo e em toda a concepção estratégica do quadro geral na Síria.
Em vez disso, Washington e Riad insistem em aumentar o apoio àqueles”rebeldes moderados” -, depois que Kerry reuniu-se com o rei Salman em Riad. O Departamento de Estado, pela primeira vez dedicado a fazer suspense, não especificou o que significa “apoio”. Nem é preciso dizer que significa mais treino dado pela CIA e mais mísseis TOW antitanques que de modo algum devem ser mirados diretamente contraISIS/ISIL/Daesh.
O balé diplomático vai continuar, mais para o fim da semana. Bem na hora, com a crucial Batalha de Aleppo pegando fogo. 3
Fontes: [1] TomDispatch, autor: Andrew J. Bacevich :: [2] Asia Times Online, autor: M.K. Bhadrakumar :: [3] RT, autor: Pepe Escobar
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