27/11/2015, Pepe Escobar, Telesur English
Tradução Vila Vudu
Os objetivos de Rússia e Turquia na luta contra o grupo ‘Estado Islâmico’ são diametralmente opostos.É absolutamente impossível compreendermos por que o governo turco abraça a estratégia suicidária de derrubar um SU-24 russo sobre território sírio – tecnicamente uma declaração de guerra da OTAN à Rússia –, sem a considerarmos no contexto real o jogo de poder de Erdogan no norte da Síria.O presidente Vladmir Putin disse que a derrubada do jato russo havia sido uma “punhalada nas costas”.
Vejamos como os fatos em solo levaram àquela punhalada.Ancara usa, financia e arma uma coleção de grupos extremistas em todo o norte da Síria, e precisa, a qualquer custo, manter abertas linhas de suprimentos para eles a partir do sul da Turquia; afinal, tudo de que aqueles grupos tem de fazer é conquistar Aleppo, o que abriria caminho para o Santo Graal de Ancara: a ‘mudança de regime’ em Damasco.Ao mesmo tempo, Ancara teme mortalmente as YPG – Unidades de Proteção do Povo Curdo Sírio – organização irmã doPKK, partido curdo de esquerda. Esses todos têm de ser contidos a qualquer preço.
Assim sendo, o grupo ‘Estado Islâmico’ – contra o qual a ONU declarou guerra – é apenas um detalhe, na estratégia geral de Ancara, dirigida, essencialmente a combater, conter ou mesmo bombardear curdos; a apoiar de todas as maneiras os Takfiris e jihadistas-salafistas, inclusive o grupo ‘Estado Islâmico'; e a conseguir mudança de regime em Damasco.Não supreendentemente, os curdos sírios das YPG são fortemente demonizados na Turquia, acusados de, no mínimo, tentarem fazer uma limpeza étnica nas vilas árabes e turcomenas no norte da Síria.O que os curdos sírios estão tentando – e, para grande alarme em Ancara, apoiados de certo modo pelos EUA –, é conectar o que, por enquanto são três áreas separadas de terra curda no norte da Síria.
“O novo governo assumiu na Turquia no mesmo dia em que o jato russo foi derrubado. Agora, o astuto primeiro-ministro Davutoglu e o pesadão e pouco sensível presidente Erdogan estão ocupados em controlar os danos e mobilizar a opinião pública interna, nesse momento já deixando de lado até a retórica preferida dos dois, da solidariedade islâmica, e jogando descaradamente, completamente, a carta nacionalista. Mesmo que alguma ação militar com certeza lhes renda ganhos notáveis na popularidade doméstica, as consequências econômicas já começam a fazer-se sentir, com a Rússia já cortando a importação de produtos turcos. Isso pode sugerir que o governo do AKP tenha agido especificamente como lacaio da OTAN, ignorando todas as realidades em campo, numa autolouvação pretensiosa e escandalosa.”
A autolouvação pretensiosa e escandalosa não durará muito, porque a Rússia reagirá, reação fria, pensada, de várias pinças e de modo que sempre surpreenderá, à derrubada do SU-24.O míssil cruzador russo Moskva – carregado de sistemas de defesa aérea – cobre agora toda a região. Dois sistemas S-400 cobrirão toda a fronteira do noroeste sírio e sul da Turquia. A Rússia tem meios eletrônicos para interferir na estrutura de comunicações de todo o sul da Turquia. Absolutamente, de modo nenhum, Erdogan conseguirá sua “zona segura” paga pela União Europeia dentro da Síria, a menos que declare guerra à Rússia.
Exame rápido, mesmo nesse
mapa turco imperfeito, basta para mostrar como duas daquelas áreas curdas (em amarelo) estão já conectadas, a nordeste. Para conseguir isso, os curdos sírios, com ajuda do PKK, derrotaram o grupo ‘Estado Islâmico’ em Kobani e arredores. Para conseguir a terceira área da terra que consideram deles, os curdos sírios têm de chegar a Afryn. Mas no caminho (em azul) há várias cidades turcomenas ao norte de Aleppo.Essas terras turcomenas são gigantescamente importantes. É precisamente aí, até 35 km para dentro da Síria, que Ancara sonha com instalar a sua chamada “zona segura”, que será na prática uma zona aérea de exclusão, em território sírio, ostensivamente para abrigar refugiados sírios, e com tudo pago pela Comissão Europeia, que já desbloqueou 3 bilhões de euros, que podem ser sacados pela Turquia a partir de 1º de janeiro, mediante a Comissão Europeia (CE).
O obstáculo hoje insuperável para que a Turquia consiga sua zona aérea de exclusão é, como se poderia prever, a Rússia.
Servir-se dos turcomenos
Quem são os turcomenos? Aqui, é preciso mergulhar na história antiga da Rota da Seda. Há cerca de 200 mil turcomenos vivendo no norte da Síria. São descendentes de turcomenos tribais que chegaram à Anatolia no século 11.
Também brotaram vilas turcomenas ao norte da província de Idlib, a oeste de Aleppo, e ao norte da província de Latakia, a oeste de Idlib. E é aqui que encontramos um grupo raramente discutido: uma coleção de milícias turcomenas.
O mito de inocentes civis turcomenos massacrados pelo “regime de Assad” é, sim, mito. Em Washington essas milícias são consideradas “rebeldes moderadas” – dado que se fundiram com todos os tipos de grupos jihadistas ou supostos jihadistas, desde o sempre servil Exército Sírio Livre até a Frente al-Nusra, também chamada Al-Qaeda na Síria (a qual, afinal, Viena decidiu que, sim, é grupo terrorista).
O resumo disso tudo é que Turquia e Rússia simplesmente não podem ser parte da mesma coalizão que combate contra o ‘Estado Islâmico’ porque seus objetivos são diametralmente opostos.
Como facilmente se podia prever, a mídia turca cobre de elogios esses turcomenos, como “combatentes da liberdade” à moda Ronald Reagan com a Jihad afegã nos anos 1980s. A mídia turca vive de repetir que todo o território é controlado por uma “inocente” oposição turcomena, não pelo ‘Estado Islâmico’. Não é, mesmo, o ‘Estado Islâmico’, porque é, principalmente, a Frente al-Nusra – ambos virtualmente a mesma coisa.Para a Rússia, não há diferença alguma, especialmente porque grupos de chechenos, uzbeques e uigures (a inteligência chinesa acompanha esses movimentos) buscaram abrigo entre esses “moderados”. À Rússia, o que interessa é acabar com qualquer possibilidade de haver uma futura Autoestrada Jihad, de 900km de extensão, que conecte Aleppo e Grozny.
Isso explica que a Rússia esteja atacando o norte da província Latakia. Ancara, como se podia prever, enfureceu-se. O ministro de Relações Exteriores chegou a ameaçar a Rússia, há alguns dias: as “ações do lado russo não são combate contra o terror. Estão bombardeando vilas turcomenas, o que pode levar a consequências sérias.”
Ancara apoia diretamente as milícias turcomenas com ajuda humanitária, mas o que realmente conta são armas: entregues por caminhão controlados pela inteligência turcaMIT.
Tudo isso se encaixa perfeitamente na mitologia do partido AKP de Erdogan, de defender populações pré-otomanas; afinal, sempre prestaram “bons serviços” ao Islã. Os turcomenos sírios são tão pios quanto os líderes do AKP em Ancara.
O complô engrossa
Para a Rússia, a área conhecida como Montanhas Turcomenas, ou colinas – que os turcos chamam de Bayirbucak, ao norte de Latakia, são alvo valiosíssimo. Porque é onde se encontra a Autoestrada Armas & Mais Armas – pela qual Ancara, de mãos dadas com aCIA, arma aquelas milícias.
Para a Rússia, qualquer possibilidade de milícias aliadas com salafistas e jihadistas salafistas em avançada para conquistar a província Latakia, predominantemente alawita é linha vermelha intransponível, porque poria sob ameaça a base russa em Khmeimim e talvez até o porto de Tartus.
Então, em resumo, temos a CIA armando – os afamados mísseis TOW antitanques – e usando uma rota de contrabando através de território turcomeno que é, simultaneamente, uma base de poder de Ancara administrada pela al-Qaeda na Síria. Esse é o território mais importante para EUA, Turquia e Arábia Saudita na empreitada de minar Damasco e, ainda mais importante, território totalmente preferencial para fazer guerra por procuração: OTAN (EUA-Turquia) contra a Rússia.
A CIA faz divulgar que os TOWs estariam sendo entregues a 45 grupos “selecionados” – os famosos “rebeldes moderados”. Bobagem: as armas sempre são capturadas (ou compradas) pelos jihadistas muito mais experientes da al-Qaida na Síria, e pela nebulosa de incontáveis grupos chamada “Exército da Conquista”, mantida pela Arábia Saudita.
Assim, para esmagar completamente a Frente al-Nusra e o Exército da Conquista, a Rússia começou a bombardear os contrabandistas turcomenos, que absolutamente não se pode dizer que sejam “moderados”: são infiltrados por todos os lados por islamofascistas turcos – como os que metralharam o piloto russo tenente-coronel Oleg Pershin quando descia num paraquedas, o que configura crime de guerra segundo as Convenções de Genebra.
A Rússia está forçada a cobrir aposta altíssima, porque, se servindo de tribos turcomenas, a Turquia já está plantada bem fundo no norte da Síria.
Assim sendo, deve-se esperar que a Rússia aumente substancialmente os ataques em áreas turcomenas – muito mais do que alguma espécie de revide pelo assassinato do piloto russo. Noutros pontos, a Rússia tem inúmeras opções – armar mais pesadamente as unidades YPG; assim, elas poderiam afinal tomar a faixa de fronteira entre Afryn e Jarablus que é controlada pelo ‘Estado Islâmico’. Ancara ficará apoplética, se os curdos sírios conectarem o seu território até hoje fracionado, no que chamam de Rojava.
O historiador Cam Erimtan que vive em Istanbul resume o quadro geral:
“O novo governo assumiu na Turquia no mesmo dia em que o jato russo foi derrubado. Agora, o astuto primeiro-ministro Davutoglu e o pesadão e pouco sensível presidente Erdogan estão ocupados em controlar os danos e mobilizar a opinião pública interna, nesse momento já deixando de lado até a retórica preferida dos dois, da solidariedade islâmica, e jogando descaradamente, completamente, a carta nacionalista. Mesmo que alguma ação militar com certeza lhes renda ganhos notáveis na popularidade doméstica, as consequências econômicas já começam a fazer-se sentir, com a Rússia já cortando a importação de produtos turcos. Isso pode sugerir que o governo do AKP tenha agido especificamente como lacaio da OTAN, ignorando todas as realidades em campo, numa autolouvação pretensiosa e escandalosa.”
A autolouvação pretensiosa e escandalosa não durará muito, porque a Rússia reagirá, reação fria, pensada, de várias pinças e de modo que sempre surpreenderá, à derrubada do SU-24.O míssil cruzador russo Moskva – carregado de sistemas de defesa aérea – cobre agora toda a região. Dois sistemas S-400 cobrirão toda a fronteira do noroeste sírio e sul da Turquia. A Rússia tem meios eletrônicos para interferir na estrutura de comunicações de todo o sul da Turquia. Absolutamente, de modo nenhum, Erdogan conseguirá sua “zona segura” paga pela União Europeia dentro da Síria, a menos que declare guerra à Rússia.
Certo é que, doravante, a prioridade número um dos russos é derrotar absoluta e completamente a estratégia extremista da Turquia no norte da Síria.
Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.
Oriente Mídia
Nenhum comentário:
Postar um comentário