23/12/2015, Pepe Escobar, Sputnik News
Traduzido por Vila Vudu
O sudeste da Anatolia está em chamas. E ninguém pode dizer que o sultão Erdogan, codinome presidente Tayyip, teria deixado passar sem um daqueles ‘avisos’ super machos, sua marca registrada.
Desde meados de dezembro, o presidente turco só faz repetir e repetir que a operação de ‘limpeza’/blitzkrieg/ no sudeste da Anatolia só terminará quando os militantes curdos associados ao PKK forem completamente “aniquilados”.
Muitas cidades – especialmente Cizre, Silopi e Nusaybin – estão totalmente sitiadas, cercadas por tanques e veículos blindados. A tática de Ancara inclui o Ministério de Educação ordenar, por SMS, que 3 mil professores retornem às respectivas cidades natais para “on-the-job training.”
O exército turco enfrenta inimigo muito determinado: o Movimento da Juventude Patriótica Revolucionária (YDG-H) – facção urbana do PKK, que só tem acesso a armas leves e segue Abdullah Ocalan, líder do PKK que continua numa ilha-prisão. Em umas poucas cidades, o YDG-H ocupa toda a região, impõe barricadas e já declarou a própria autonomia.
Com Ocalan mantido por Ancara praticamente longe de qualquer contato humano já há meses, o vácuo político foi ocupado por Cemil Bayik, comandante do PKK que tem boa cabeça e apoia integralmente o YDG-H. Representantes do Partido Democrático do Povo (HDP) também foram proibidos por Ancara de ter qualquer contato com Ocalan.
Como era de prever, o primeiro-ministro turco Ahmet Davutoglu – o da doutrina de “zero problemas com os vizinhos” – disse ao HDP que se mantenha longe da conflagração, porque ali estariam “brincando com fogo”. O HDP estima que a nova ofensiva de Ancara já criou pelo menos 200 mil refugiados internos.
O urso mostra as garras
A renovada guerra civil de Erdogan contra os curdos, como se podia prever, não provocou nem um pio de protesto da União Europeia – apesar de o sultão ter-lhe extorquido 3 bilhões de euros, a serem usados, parecia, para conter a crise de refugiados que o próprio sultão criou, quando decidiu “libertar” os refugiados reunidos em vários campos turcos de contenção.
Mesmo assim esse novo capítulo da guerra civil oferece oportunidade para outro ator, esse, sim, ativo e poderoso jogador na disputa pelo poder – com Erdogan, agora, tolamente, tendo de guerrear em dois fronts, um interno (contra os curdos) e outro externo (contra Moscou). Mais cedo ou mais tarde o apoio que Moscou dá aos sírios curdos do YPG pode traduzir-se em apoio decisivo ao PKK dentro da Turquia.
Todos lembram quando o YPG, há quatro meses, estava a um passo de mover-se na direção de Jarablus – a última cidade ainda sob controle do ISIS/ISIL/Daesh na fronteira turco-síria, e nodo essencial para abastecer Raqqa, ‘capital’ do falso ‘califato’.
Se o YPG conquistasse Jarablus, Raqqa cairia inevitavelmente, em pouco tempo. Então, Erdogan declarou Jarablus uma “linha vermelha”. Tradução: os curdos ligados ao PKKseriam atacados até a dizimação, pelo Exército Turco.
A inteligência russa, monitora atenta e cuidadosamente o tabuleiro de xadrez, embora Moscou ainda não tenha feito qualquer movimento de apoio incondicional ao YPG-PKK – inclusive, ainda não lhes forneceu armas.
Mas não há dúvidas de que a guerra virá, ação hardcore. O ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov reuniu-se em Moscou com Selahattin Demirtas, líder do Partido Democrático do Povo, principal partido curdo da Turquia.
Demirtas disse que pode fazer o que o sultão não pode: restabelecer o relacionamento Rússia-Turquia.
Considerando que esse tema interno da Turquia está aberto à discussão, o que mais interessa a Moscou é a Síria; a Rússia insiste em que o YPG deve sentar à mesa de negociações sobre o futuro da Síria como representante de uma oposição legítima. A Rússia sabe muito bem que tudo pode acabar num cenário de autonomia curda no norte da Síria, o que implicaria liberdade de movimento para o PKK incomodar Ancara.
Não machuca, claro, manter bom relacionamento com o Partido Democrático do Povo na Turquia, que mantém distância do PKK, ainda que os dois partidos partilhem algumas metas e apoiadores chaves comuns.
Até membros do AKP governante na Turquia já perceberam que a estratégia de Erdogan, de criar uma guerra civil, leva a um beco sem saída. Então, têm sugerido que Erdogan converse com o Partido Democrático do Povo, como meio de marginalizar ainda mais, politicamente, o PKK.
Pode ser pouco demais, tarde demais. Demirtas tem dito que a autonomia é a via para todo o sudeste da Anatolia – em contraste com o que é conhece como “a ditadura de Ancara”.
Assim sendo, a Rússia pode agora pressionar o sultão em dois fronts separados: apoiar a autonomia na Anatolia e apoiar um norte da Síria controlado por curdos sírios.
Des-Afeganizar a Síria
Mais uma vez é esclarecedor voltar ao conceito que Kadri Gursel propôs, em artigo para o diário turco Milliyet, já em 2013, quando definiu a fronteira turca de Hatay a Gaziantep como o Peshawar do Oriente Médio (sombras da jihad afegã dos anos 1980s).
A Turquia continua a ser “paquistanizada”; é a versão neo-otomana de uma “cultura Kalashnikov”. Enquanto isso, na Síria, Rússia e a coalizão “4+1″ (Síria, Irã, Iraque + Hezbollah) fazem tudo que podem para deter a ‘libanização’ (polarização étnica e sectária); a ‘somalização’ (colapso do estado); e a ‘afeganização’ (jihadistas no poder).
A Síria não será “des-afeganizada”, se o cinturão de jihadistas – que inclui aquele trecho chave da fronteira turca – não for reconquistado. Só há dois candidatos com competências para cumprir essa tarefa: o YPG de curdos sírios e o Exército Árabe Sírio. É o que assegura, para o sultão, incontáveis noites sem dormir.
Assim sendo, a questão agora está em quão próximo – politicamente e militarmente – será o apoio que Moscou dará ao YPG-PKK.
Moscou não favorece exatamente o nascimento de um Curdistão, como querem Israel e os neoconservadores norte-americanos. O eixo EUA-Israel privilegia alguns curdos muito específicos: o imensamente corrupto Governo Regional do Curdistão [ing. Kurdistan Regional Government (KRG)] no norte do Iraque, o qual também mantém íntimas relações com Ancara (na questão da exportação de petróleo). Ninguém sabe como um Curdistão Sírio controlado por YPG-PKK entraria nessa equação já tão complexa.
Muito mais fácil é detectar a linha vermelha de Ancara: qualquer tipo de Curdistão sempre é linha vermelha.
À espera pelo Oleogasodutostão
Erdogan, em desespero, já flerta até, outra vez, com Israel. Nesse caso, pode vir por aí mais assado de sultão.
O longo jogo de Israel é jogo de energia: garantir acesso ao petróleo curdo, abundante, barato – significa: roubado de Bagdá – que flui pelo oleoduto Kirkuk-Haifa. E no longo prazo, Telavive adorará passar longe de [porto de] Ceyhan e substituí-lo por Haifa, como principal terminal de exportação de petróleo no Mediterrâneo Oriental.
Israel subornou sem dificuldade a daninha máfia do Governo Regional Curdo – e escorregadios operadores israelenses estão envolvidos há anos na compra (absolutamente sem documentação) de petróleo curdo, que pode já estar sendo misturado há muito tempo, ao longo do percurso, com petróleo do Daesh roubado de sírios e iraquianos. Quem quer que conheça o Governo Regional Curdo sabe que os israelenses em solo lá estão representados por empresas de petróleo norte-americanas e britânicas.
O resumo da história é espantoso: curdos iraquianos subornados até a morte estão vendendo a preço de liquidação petróleo roubado de Bagdá – que desenvolveu os poços e construiu os oleodutos – a país com o qual o Iraque recusa-se a negociar.
O “Curdistão” que neoconservadores em Israel e EUA realmente desejam, muito mais que uma entidade no norte da Síria, é uma colônia no norte do Iraque, um enclave vassalo governado pela gangue Barzani. Implicaria nada menos que guerra entre Bagdá (apoiada por Teerã) e o Governo Regional Curdo (apoiado por Washington e Telavive). Em matéria de cenários apocalípticos, esse, pelo menos, está temporariamente suspenso.
Moscou, por enquanto, prefere dedicar-se a arrancar a roupa de Ancara e deixá-la nua naquelas complexas negociações de paz para a Síria, as quais, para todas as finalidades prática, resumem-se a um jogo entre EUA e Rússia.
Enquanto Erdogan continuar como vassalo de Washington e ‘adversário’ de Israel só na pose, ele já nem pode ter certeza de onde está o governo Obama.
Há apenas poucas semanas, Obama mandou-o deslocar “30 mil (soldados) para vedar a fronteira do lado turco”. Naquele momento a equipe Obama tinha esperanças de que as forças de Erdogan conseguiriam limpar e ocupar uma área de 98km por 30km dentro de território sírio, onde viria a ser instalada a famosa “zona segura” de Erdogan. Ancara só precisaria de qualquer pequeno pretexto – e ajudinha dos jatos norte-americanos na cobertura.
Depois da derrubada do Su-24 e de a Rússia ter instalado ali os S-400s, todo aquele plano jaz a sete palmos de fundo.
Do ponto de vista dos incontáveis “Assad tem de sair”, o nome do jogo na Síria agora é “agarre-se ao que já obteve”. Erdogan, por desesperado que esteja, terá de recuar de volta para trás da fronteira turca a sua “Autopista Jihadista”, e lá esperar outra oportunidade para reabrir as portas do inferno (que a Rússia não lhe permitirá abrir).
Mas o jogo de longo prazo que realmente contra, para todos os jogadores envolvidos é, como se poderia adivinhar, o Oleogasodutostão. Quem controlará uma grande porção do petróleo e do gás que fluem do “Siriaque”, incluída a riqueza ainda inexplorada das áreas curdas; para onde ela fluirá; quem vende; e por qual preço.
É jogo de espera, lapso de tempo que o sultão planeja preencher com – e que outra coisa seria? – uma guerra civil anti-curdos.
Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.
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