Nesta quinta-feira, a comandante das Unidades Femininas de Proteção (YPJ), Nesrin Abdalla, concedeu uma entrevista exclusiva para a agência Sputnik em Paris. As Unidades Femininas de Proteção (YPJ) foram criadas na Síria em 2013, como um braço feminino das Unidades de Proteção Popular (YPG).
Sputnik: As negociações em Genebra foram adiadas. Os curdos participarão da próxima rodada?
Nesrin Abdalla: No presente momento, apesar do conflito no Oriente Médio, a região mais calma é a curda — Rojava. Mais de 700 mil refugiados, em sua maioria árabes, se estabeleceram nesta região e nos os estamos ajudando e apoiando. Nós os protegemos da agressão externa. Eu acho que nós não estamos participando da terceira conferência em Genebra em função dos interesses políticos e étnicos dos Estados. A solução ou resposta resultante dessa terceira conferência não terá legitimidade alguma, pois o povo que combateu no local, que acumulou o maior número de vitórias e que conseguiu obrigar os bárbaros a recuar somos nós. E nos contamos com um sistema democrático de autogestão, fundamentado na ideia da irmandade dos povos e da justiça social. Desse modo, não reconhecer a legitimidade do povo curdo como uma parte da Síria significa encontrar uma resposta que não terá legitimidade alguma.
S: Os bombardeios da coalizão internacional ajudaram no seu combate com Daesh?
Nesrin Abdalla: Claro. Quando, em 2015, começaram os bombardeios das forças da coalizão, claro que isso ajudou, nos permitiu combater o Daesh de modo mais eficiente. No entanto — e isso é dito tanto por nós, quanto por membros da coalizão — o combate ao Daesh acontece em terra. Porque Daesh se esconde entre a população civil, que usa como um escudo humano. Por isso essa organização precisa ser combatida em terra. Nós possuímos forças necessárias para o combate em terra e, além disso, não há necessidade de envolvimento de terceiros. Somente é preciso que todos tenham as armas necessárias. Por outro lado, eu gostaria de destacar mais uma coisa: até que não seja encontrada uma solução, ou seja, enquanto o sistema democrático curdo não for aceito, não haverá paz na Síria e no Oriente Médio. Trata-se de dois processos paralelos. Sem a normalização da questão curda não haverá paz na Síria, nem no Oriente Médio.
Aqueles que apoiam o Daesh e não querem ver o Daesh eliminado representam as mesmas forças que não desejam a solução da questão curda. Justamente, por pressão desses países, nós não estamos participando hoje da terceira conferência em Genebra.
S: Dessa forma, podemos dizer que os curdos, para combater o Daesh com eficiência, precisam de armas, que poderiam ser fornecidas, por exemplo, pelo Ocidente ou pela Rússia?
Nesrin Abdalla: Todos eles nos chamam de força que melhor combate nos locais, que nós obrigamos Daesh a recuar. Recebemos elogios o tempo todo. No entanto, assim que se fala em nós dar armas, eles dizem: “vocês são uma força ilegítima”. E, como eu já disse, nos precisamos de ajuda, de armas. Não precisamos de mais pessoas, temos recursos humanos suficientes para travar combate. O que precisamos é de armas. E nos combatemos e defendemos o futuro não só dos curdos, mas também o futuro de todos os povos, de todas as religiões. De todos aqueles que residem no Oriente Médio, bem como o futuro de todos que hoje observam como estamos combatendo. O futuro da humanidade.
Nesrin Abdalla, comandante das Unidades Femininas de Proteção Curdas (YPJ)
S: Você poderia descrever o dia a dia dos combatentes?
Nesrin Abdalla: Claro.Durante os combates é necessário estar presente 24 horas por dia na linha da frente, é preciso participar dos combates. Quando está tudo quieto, cada um do batalhão tem seu trabalho. Tem, por exemplo, um horário dedicado ao estudo ou a programas de TV, notícias. Tem horários para que a pessoa cuide de assuntos particulares, ou para que busque informações sobre estratégia militar, sobre temas de interesse, sobre cultura e etc. A grade de horários é bem rígida. Alguns destacamentos realizam exercícios em um determinado tempo, enquanto os outros patrulham ou fazem compras.
Realizamos ensino tradicional também. São cursos, que ajudam a receber educação ideológica e uma especialização em alguma área. Por exemplo, na área de estratégia militar, ou na área de pesquisa médica. A nossa vida não se resume ao campo de guerra. Para criar um sistema de igualdade social, são necessárias mulheres capazes de tomar decisões. Por isso devemos estar ideologicamente preparadas e experiente, devemos entender disso. E para estudos é preciso tempo. Uma precisa de três meses, outra precisa de seis, uma terceira de um ano. Mas isso é necessário para que o sistema democrático, criado por nós, continue existindo e se torne permanente.
S: Entre vocês há muitas mulheres casadas e com crianças?
Nesrin Abdalla: Não temos mães entre nós, nas forças armadas femininas, pois isso contradiz, do ponto de vista biológico, a nossa ocupação diária. Não podemos ter uma família e, ao mesmo tempo, conduzir um combate armado. Há mulheres casadas, mas não mães. A escolha definitiva delas foi pela guerra. Caso contrário, a nossa causa não teria se desenvolvido.
S: Qual a sua melhor memória durante toda a existência do batalhão?
Nesrin Abdalla: Nunca vou esquecer o dia em que foi formado o primeiro grupo de mulheres combatentes e foi preciso se dirigir de modo imediato para o campo de batalha. E também nunca esquecerei do dia em que o nosso batalhão foi formado.
S: E o dia mais assustador, ou um combate muito difícil?
Nesrin Abdalla: Foi muito difícil em Kobani. Perdemos mais de 1000 camaradas e, claro, seria impossível descrever como isso foi pesado. No entanto, no dia em que conseguimos tomar Kobani e erguer a bandeira da YPG e YPJ, nós não esquecemos de tudo o que aconteceu, mas pudemos dizer a nos mesmas: “Isso não foi em vão”. Esse pensamento nos consolou um pouco. Porque, naturalmente, os mortos não podem ser esquecidos. Cada um tinha sua história, vida, família, destino, afinal.
S: O que você gostaria de dizer às mulheres que estão lendo a sua entrevista?
Nesrin Abdalla: Eu gostaria de dizer às mulheres que elas devem saber — não estamos defendendo somente a nos, mas, pelo menos pensamos assim, estamos defendendo o seu futuro também. Existe o batalhão das YPJ e o nosso objetivo é proteger o futuro da humanidade, o futuro das mulheres. Essa é a nossa responsabilidade. O fato do batalhão feminino chamar a atenção e ser respeitado no mundo todo é muito importante para nós. Isso significa que a mulher voltou a ser respeitada e valorizada. A mulher precisa se conscientizar da sua responsabilidade pelas mudanças no sistema, porque até agora o sistema foi criado pelos homens, através do exército de homens. Mas hoje vocês podem ver como as mulheres são ativas na área militar e no plano ideológico. É preciso imprimir neste sistema o caráter feminino, razão, suavidade. É o que tentamos fazer. E todas as mulheres devem compreender as suas vidas da mesma forma. Se elas não começarem a participar de forma ativa nesses assuntos, não conseguirão deixar seus rastros.
É preciso que as mulheres consigam conduzir a luta todos os dias. Por exemplo, queremos criar um sistema comum, sem importar a etnia, a religião, no qual todos vivem juntos. Somente a mulher pode garantir que um sistema como esse se realize. Queremos igualdade em todas as áreas. Se a mulher participa de modo ativo dessa causa e combate obro a ombro com homens, ela pode ser garantia de um sistema como esse. Somente a mulher pode ser a garantia da paz, porque ela passou por muitos obstáculos para chegar a ela. Somente a suavidade da mulher pode mudar o pensamento dominador do homem. Na verdade, Daesh não é nada. O que realmente queremos derrotar é o sistema, onde o domínio seja do homem.
Sputnik
sábado, 6 de fevereiro de 2016
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Entrevista com comandante das Unidades Femininas de Proteção curdas, as YPJ
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