Por Martin Chulov
Em quase cinco anos de guerra, a cidade síria de Azaz, na fronteira com a Turquia, foi pouco mais que um ponto de apoio. Combatentes da oposição a utilizavam para receber suprimentos do cruzamento principal, 5 quilômetros ao norte, e as baixas do brutal conflito eram enviadas no outro sentido para os hospitais turcos.
Nada mudou quando o Estado Islâmico transformou Azaz em um de seus principais polos durante seis meses, a partir de meados de 2013. Os suprimentos continuaram a chegar e os feridos, a partir, mesmo quando a luta pelo norte mudou lentamente de tom, de uma insurreição interna para um conflito abastecido por várias agendas internacionais. O portal permaneceu exatamente isso. Até 15 dias atrás, quando os curdos do norte da Síria avançaram em sua direção.
A partir daí, Azaz passou a ser o epicentro da guerra pelo norte da Síria. Seu destino tem implicações que vão muito além, com a Turquia, especialmente, mais fortemente investida, e exposta, hoje à dinâmica cambiante da região.
O futuro da Síria poderá ser determinado nas áreas de fronteira ao redor de Azaz, onde um elenco de atores no estilo Game of Thrones quer conquistar a supremacia em terras que se estendem ao sul, até a antiga cidade de Alepo, e ao norte além da fronteira turca, sobre a qual Ancara detém menos controle hoje do que nunca desde a formação do Estado moderno da Turquia.
Nas salas de guerra no sul do país, autoridades árabes e ocidentais dizem que nunca viram seus anfitriões mais agitados. A irritação começou no início de fevereiro, quando jatos russos passaram a atacar territórios da oposição entre Alepo e Azaz, apoiada por Ancara.
O alvo russo declarado era o EI. Entretanto, suas posições estão bastante a leste das áreas atualmente bombardeadas, que eram exclusivamente as comunidades a abrigar combatentes da oposição síria, uma mistura de islamistas e grupos não ideológicos.
Com a chuva de bombas russas, dezenas de milhares de refugiados fugiram para Azaz, onde continuam acampados em prédios bombardeados ou sob plantações de oliveiras, perto da cerca da fronteira. Mais importante para a Turquia, as forças em terra aliadas ao regime de Assad começaram a manobrar em torno de Alepo.
O Hezbollah libanês liderou o ataque, juntamente com milícias xiitas do Iraque e do Afeganistão e o Exército sírio. Também entraram em ação, pela primeira vez nesta parte da Síria, unidades curdas da milícia YPG, que a Turquia não considera diferente do insurgente PKK na região sudeste, contra o qual luta há 40 anos.
“O alarme foi incontível”, disse uma destacada autoridade ocidental. “Os curdos realmente tentaram desta vez e a Turquia está extremamente preocupada. Eles continuam a nos dizer que criamos isto ao nos associarmos aos curdos na luta contra o EI e olharmos para o outro lado, enquanto os russos se tornam frenéticos.”
A irritação da Turquia fervilha desde o fim de 2014, quando os Estados Unidos começaram a usar o YPG no nordeste da Síria como força terrestre contra o EI, enquanto seus jatos de combate, juntamente com aqueles da coalizão que eles montaram, bombardeavam o grupo do alto.
Para os EUA, e para a Otan, da qual a Turquia é integrante, a ascensão do EI marcou uma grave ameaça à organização sociorreligiosa do Oriente Médio e à segurança global. Os curdos eram uma vantagem, e não um obstáculo. Tinham provado seu valor em agosto de 2014, ao cruzar da Síria para o norte do Iraque para liderar 40 mil yazidis que desceram do Monte Sinjar, onde haviam sido sitiados pelo EI. Depois de as tropas iraquianas abandonarem Mossul e o norte do Iraque, o Exército sírio fugiu do leste do país e nenhuma força ocidental se interessou em retornar à região, quem mais poderia mover o EI de suas posições-chave?
A Turquia recusou permissão para jatos norte-americanos usarem sua base aérea de Incirlik e não demonstrou interesse em participar. Os curdos eram uma ameaça muito maior, insistiu Ancara. E, como integrante da Otan, seus aliados eram obrigados a protegê-la.
Raramente aliados tiveram prioridades tão díspares. Os EUA e a Otan não veem paralelo entre uma organização que consideram uma ameaça à ordem mundial, com a clara intenção de causar o caos geral, e um grupo étnico que se inclina a aceitar e que deseja mais autonomia, não a independência. A Turquia não quer saber. Enquanto discutia com os EUA o acesso às suas bases e espaço aéreo, o YPG avançou pela Síria, especialmente na direção do polo do EI em Raqqa, e silenciosamente consolidou sua posição no noroeste. No fim do último verão, ficou claro para Ancara que os curdos sírios tinham usado com êxito o caos da guerra, e o apoio do principal aliado da Turquia, para expandir sua pegadana fronteira.
Os curdos controlaram uma área de Irfin, no noroeste, até pouco a oeste de Azaz. Só uma brecha de cerca de 160 quilômetros separava a área seguinte de influência curda, que então se estendia até a fronteira iraquiana. A percepção desse arranjo levou Ancara a recuar na proibição aos jatos americanos. Em troca da permissão, pressionou por um porto seguro em uma faixa de 160 quilômetros, cujo objetivo era manter os curdos afastados.
Na visão de Ancara, seus aliados e seus inimigos agora abriram o jogo. Os EUA têm pouco interesse em conter o YPG. Os próprios curdos associaram-se ao regime de Assad, depois de fingir ambivalência durante toda a guerra, e a Rússia uniu-se aos curdos no oeste da Síria, enquanto os EUA os apoiam no leste.
Os avanços do YPG foram possibilitados pela cobertura aérea russa. Depois de a Base Aérea de Menagh ter sido tomada de grupos de oposição, entre eles jihadistas, eles moveram-se pelo norte, em direção a uma faixa de fronteira de quase 100 quilômetros, onde nunca tiveram um baluarte.
Um diplomata ocidental disse: “O que está acontecendo em Azaz é culpa dos russos. Enquanto eles se queixam no Conselho de Segurança da ONU sobre a Turquia, fazem o que podem para provocar coisas”.
A Rússia aposta que cachorro que late não morde. Desde que um jato turco derrubou um caça russo no sul da Turquia em novembro de 2015, os dois lados se encaram com tensão. A Rússia apoia o Irã na Síria, onde os iranianos dominam as forças de terra rumo a sitiar Alepo.
O eixo pró-Assad está em ascensão pela primeira vez na guerra pelo norte, e a Turquia pouco pode fazer agora para evitar a queda de Alepo, além de lançar uma extensa intervenção própria. Até agora, o país limitou sua reação a disparar morteiros contra posições do YPG e advertir os curdos para se afastarem de Azaz. Ancara afirma ter permitido, aproximadamente, 900 combatentes rebeldes sírios a cruzar de volta da Turquia à Síria. Autoridades ocidentais que monitoram movimentos rebeldes não confirmaram tal deslocamento. Também não foram verificadas declarações da Arábia Saudita de que enviou jatos de caça ao sul da Turquia, ostensivamente para unir-se à coalizão aérea contra o EI. “Há muito falatório por aí”, disse a autoridade ocidental. “Todos estão muito agitados, mas continuam unidos.”
A Arábia Saudita investiu muito na oposição a Bashar al-Assad nos últimos três anos. Ela financiou um programa de treinamento nos EUA para rebeldes anti-Assad e, de modo mais revelador, forneceu vários milhares de mísseis antitanques teleguiados, que causaram sérios danos aos envelhecidos transportes de tropas e tanques sírios em 2015.
“Eles foram o principal motivo pelo qual a Rússia interveio com tanta força”, disse um importante apoiador árabe do regime sírio. “Os iranianos foram a Moscou e mostraram a Putin o que estava acontecendo. Ele enviou seus bombardeiros a Latakia em uma semana.”
A raiva saudita e turca contra os EUA continua palpável. “Eles não fizeram nada além de facilitar para Putin”, disse uma autoridade saudita em Riad. “Será realmente incompetência ou há uma estratégia por trás disso para forçar seus inimigos a lutar entre si até a morte nesta parte do mundo? Eles realmente pensam que podem fugir de suas responsabilidades dessa maneira?”
Uma mudança no modo como os EUA projetam seu poder no Oriente Médio é vista por seus aliados, particularmente a Arábia Saudita e o Conselho de Cooperação do Golfo, como um dos principais condutores do conflito. Em seu último ano como presidente dos EUA, Barack Obama não demonstrou apetite para tentar conduzir a saída de um dos conflitos mais intratáveis da região.
Ancara também tem graves desconfianças dos norte-americanos. A desconfiança tem mão dupla. Os EUA continuam convencidos de que a Turquia, em momentos durante a guerra, negociou com o EI e permitiu sua ascensão por um regime de fronteira frouxa no início e um mercado negro de petróleo. Enquanto a Turquia entrou para a coalizão contra a organização terrorista, o número de ataques aéreos que lança contra o PKK e o YPG continua muito maior do que os desferidos contra o EI.
Com sua campanha aérea na Síria no quinto mês, a Rússia demonstra pouco interesse pelo EI, enquanto continua a combater grupos de oposição que lutam contra Assad. Por enquanto, Putin desfruta do ritmo da guerra. Manipula os curdos, alfineta os turcos e apoia Assad. Se Azaz sofrer uma ameaça real, isso poderá mudar.
“O YPG não deve se iludir”, disse o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu. “Se eles acham que podem nos desafiar mais, estão realmente loucos.”
Quem prevalecerá na estreita faixa de terra no norte da Síria poderá ser definido nas próximas semanas. “Muito dependerá de quem é melhor em aumentar as apostas no jogo da política internacional”, disse a autoridade ocidental. “Por enquanto são os russos. Mas eles estão com uma mão de alto risco.”
*Reportagem publicada originalmente na edição 890 de CartaCapital, com o título “Game of Thrones em tempo real”
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