Argentina: de volta aos mercados? Ou de volta à crise da dívida?
Argentina teve de tomar emprestado o dinheiro de que precisava para pagar aos abutres, e assim o país voltou aos mercados financeiros, depois de mais de uma década de ausência. Para surpresa de muitos observadores de mercados financeiros, os papéis emitidos pelo ex-estado pária alcançaram forte sucesso de vendas. No maior lançamento de papeis de país emergente em toda a história, a Argentina conseguiu levantar US $16,5 bilhões em três diferentes séries de bônus que renderam em média 7,2%. É 'sucesso de vendas', mas com um grave inconveniente: ele reinicia um novo ciclo de endividamento.
Por mais que o governo argentino diga que conta com que a 'normalização' de relações financeiras atrairá mais investimento externo, nenhum desses dólares tomados emprestados será investido produtivamente. A parte do leão, de mais de US $10 bilhões, já desapareceu, usada para pagar os fundos abutres; a parte menor 'reabasteceu' as combalidas reservas argentinas de moeda estrangeira, quer dizer, servirá para refinanciar nova fuga de capitais.
A emissão de papéis do Tesouro argentino foi negócio dos céus, para os investidores. Em pouco tempo, já todos sabiam que a Argentina vendera seus papéis a preço escandalosamente baixo. Os preços subiram logo nos primeiros dias, gerando lucros rápidos para os bancos que geriam a negociação. JP Morgan celebrou: "Esses retornos não existem em nenhum outro ponto do mundo em países com níveis tão baixos de endividamento."
Os cidadãos argentinos estão pagando o preço que lhes custou a estratégia do próprio governo para satisfazer investidores externos. Recente cancelamento de restrições ao câmbio já resultou em 40% de desvalorização na moeda, e novo pico de inflação. Foram extintos subsídios aos serviços essenciais, e, em março de 2016, já haviam sido demitidos 32 mil servidores públicos.
Fundos abutres: ameaça à reestruturação da dívida e à democracia
O fato de a Argentina pagar aos fundos abutres tem repercussões que vão muito além do próprio caso. Para começar, recarregaram os cofres abutres para guerras com US $10 bilhões extras, o que os capacita para novos ataques, contra outras nações. Puerto Rico e Bélgica foram os primeiros países a virar presa dessas novas agressões.
Fundos abutres, especialmente Aurelius Capital, já compraram papéis de Puerto Rico, que têm status de papeis podres e são negociados muito abaixo do valor nominal em mercados secundários. O poder de fogo dos abutres no campo diretamente financeiro não os prepara só para pagar por caríssimos processos judiciais.
Também já iniciaram campanha de relações públicas para dirigir a opinião pública a favor deles. Por exemplo, já contrataram economistas aposentados do FMI para elaborarem um 'documento de pesquisa', que 'demonstra' que Puerto Rico será perfeitamente capaz de pagar toda a sua descomunal dívida externa, bastando para tanto que o governo imponha medidas de 'austeridade' [é ARROCHO, não é austeridade (NTs)] mais rigorosas à população. Obviamente, a campanha não visa só ao caso de Puerto Rico, mas também aos casos de processos que envolvem legislação de falências que tramitam no Congresso dos EUA; e à opinião pública em geral. Até o comediante John Oliver já comentou o caso.
Bélgica é mais um caso onde os fundos abutres estão atacando diretamente os processos legislativos democráticos. O pequeno país europeu aprovou em 2015 a mais ampla legislação de proteção contra os fundos abutres. A legislação belga determina que um fundo abutre não pode obter mais dinheiro, por efeito de sentença judicial, do que pagou no início ao comprar os instrumentos de crédito em litígio. Essa lei torna desinteressante o modelo de negócio dos abutres. Os investidores podem recuperar o próprio dinheiro, mas deixam de poder usar o processo judicial como ferramenta para extrair lucros exorbitantes.
Não surpreendentemente, a lei belga que inspirou a ONU a exigir que outros países implementem legislação semelhante não agradou aos fundos abutres. Então... imediatamente apresentaram denúncia à Corte Constitucional da Bélgica, na esperança de que aquela corte declare que a lei antiabutres aprovada na Bélgica seria anticonstitucional.
Participação do credor: partilha justa do prejuízo e boa-fé?
Outra consequência da vitória dos abutres no caso da Argentina é que milhares de investidores responsáveis foram burlados em sua boa fé. Até recentemente, a Argentina era país com baixos níveis de endividamento, como o banco JP Morgan analisou corretamente. Mas, isso, porque, depois da crise da dívida de 2001/02, a vasta maioria dos investidores que tinham títulos argentinos participaram de reestruturações da dívida e aceitaram cancelar parte substancial do que haviam investido.
Agora, os fundos abutres provaram que, se você for intransigente e procurar a colaboração de juízes de New York, é razoável esperar lucros de mais de 1.000% sobre seus investimentos. Investimentos abutres são possíveis. Significa que os que cooperaram em boa fé, sim, ajudaram a recuperar a solvência da Argentina, mas, também, abriram o caminho para que governos argentinos voltem a tomar empréstimos e a pagar o que os abutres cobrem. Seguindo essa experiência, a gestão da crise da dívida deixa de poder contar com a participação voluntária do credor.
E o que vem a seguir, na gestão da crise da dívida
Assim sendo, a questão permanece: com o que podem contar, sobretudo os países endividados – mas também toda a comunidade internacional –, para resistir contra a praga de abutres que só faz crescer? Há várias possibilidades:
1) "Legislação da Falência" internacional para devedores soberanos
Um fundo abutre pode processar devedores soberanos porque não há legislação de proteção ao direito de falência para esse tipo de dívida. É diferente do que se vê no mundo corporativo no que tenha a ver com dívidas e devedores, onde há cortes especializadas em falências com capacidade legal para decidir e lei clara sobre processos falimentares que guiam a ação dos empresários e dos juízes. Muita gente sabe que há esse vácuo na legislação – o FMI tem grande quantidade de trabalho teórico sobre essa questão, e também a ONU.
A solução multilateral é com certeza a melhor e a mais efetiva. Mas o dilema aí é que depende de consenso multilateral, incluindo as nações que são sedes de centros financeiros nos quais os fundos abutres recolhem defensores, graças à ativa contribuição que dão às campanhas eleitorais. Todas as iniciativas do FMI e da ONU sempre são bloqueadas, em primeiro lugar, pela resistência de EUA e Grã-Bretanha. Os processos nas duas instituições devem mesmo assim ser mantidos vivos, como janela de oportunidade que pode se abrir a qualquer momento. Por exemplo, muitos políticos em Washington já aprenderam graças ao caso de Puerto Rico (que é território/colônia dos EUA) que, afinal, garantir alguma proteção a dívidas soberanas não é tão ruim, nem que seja para evitar desperdiçar dinheiro dos eleitores, para resgatar credores. E ONU e FMI têm poderes para proceder a outras reformas.
2) Lei nacional de proteção contra ataques de fundos abutres
A lei belga foi inovação notável. Complementou uma lei britânica que foi aprovada quando se tornou claro que processos movidos por fundos abutres contra Países Pobres Pesadamente Endividados, PPPE [ing. Heavily Indebted Poor Countries (HIPC) implicam que os fundos britânicos de ajuda são usados, de facto para alimentar fundos abutres, em vez de ter a destinação legal para a qual foram criados, de combater a pobreza. Isso significa que já há dois países que já tem legislação vigente contra fundos abutres. Mas a legislação britânica cobre apenas um grupo muito pequeno de países PPPE. A ONU, no parágrafo 100 de sua recente Agenda Addis Ababa para a Ação sobre Financiamento para o Desenvolvimento, encoraja todos os governos a empreender ação semelhante. Orientar-se na direção de legislação nacional específica para os fundos abutres pode ser rumo progressista para muitos países que abrigam importantes centros financeiros, mas têm certa aversão a soluções multilaterais – como, especificamente, os EUA e a Grã-Bretanha.
3) Evitar os centros financeiros que não cooperem
Também há ações que podem ser empreendidas pelos emissores desse tipo de títulos. São quase sempre governos de países emergentes e em desenvolvimento que lançam papéis em moeda estrangeira e regidos por legislação estrangeira. São os mesmos países nos quais os fundos abutres estão mais particularmente interessados como alvos a atacar. Muitas pessoas surpreenderam-se com a violência e a má vontade com que a corte de New York tratou a Argentina; com a rapidez com que aplicaram a cláusula pari passupara satisfazer os fundos abutres.
Argentina é tradicionalmente um dos maiores mercados emergentes que lançam bônus, e cliente importante dos bancos de Wall Street. Mas cometeu o erro terrível (como adiante se viu), de emitir bônus sob a lei de New York. Claro, em mercados financeiros globalizados, há muitas alternativas ao centro financeiro de New York. Mesmo países que façam questão de lançar papéis denominados em dólar norte-americano podem fazê-lo facilmente em centros financeiros na Europa ou na Ásia. Ou, em alguns casos, podem emitir títulos regidos pela própria legislação doméstica – que deveria ser a via preferencial. Assim evitam praças nas quais, do ponto de vista de efetivo gerenciamento da crise da dívida, podem ser definidos como centros financeiros não cooperativos.
Os passos adiante
Indicadores de sustentabilidade da dívida em muitos países estão atualmente em rápida deterioração. A edição mais recente do Global Sovereign Indebtedness Monitor alemão encontrou problemas de dívida em 108 países emergentes e em desenvolvimento. O IMF também alertou em suas recentes Reuniões de Primavera que os riscos aumentam para a estabilidade financeira. Mais crises da dívida virão e mais reestruturações serão necessárias. É preciso que os políticos ajam rapidamente, para criar um regime de leis que torne possível uma gestão justa, rápida e efetiva da dívida. Com certeza há opções que ajudam a avançar.
* NOTA: O Ministério da Fazenda do ministro Palloci, em 2005, no governo Lula, quitou a dívida (US$ 15 bilhões) que o Brasil tinha com o FMI e antecipou-se a golpes que viriam dessa direção, tentando explorar politicamente essa fragilidade do Brasil. [Com a quitação da dívida com o FMI], "a dívida externa líquida do governo caiu de 14,3% para 4,1% do PIB, de dezembro de 2002, para setembro de 2005" – disse Palocci na ocasião. Esse movimento foi, sem dúvida, a causa real pela qual, adiante, o ministro Palloci viraria alvo de campanha incansável de desmoralização, pelos jornais do Grupo GAFE (Globo-Abr-FSP-Estadão).
Interessante observar que Palocci nada tinha de 'radical' e, de fato, tinha projeto político liberal bastante semelhante ao que se ouve agora dos lábios do usurpador Meirelles, no governo usurpador de Temer.
Em 2006, Palocci dizia que "a quitação da dívida com o FMI não significa mudança nos rumos econômicos. (...) O governo está empenhado em aumentar o volume e melhorar a qualidade dos investimentos em infraestrutura e em tornar o ambiente de negócios no Brasil mais atrativo, com a simplificação da estrutura tributária. (...) É preciso reduzir os custos da intermediação financeira no país e dar perspectiva de longo prazo ao processo de consolidação fiscal, diminuindo as fontes de rigidez do orçamento, controlando as despesas primárias correntes e revendo os mecanismos de despesas obrigatórias. Isso permitirá que os recursos de que dispomos sejam, cada vez mais, direcionados com eficiência para prioridades como programas sociais e para projetos de melhoramento e ampliação de nossa infraestrutura".
Umas das diferenças crucialmente importantes entre (i) o 'projeto Palocci' legal e legítimo e (ii) o 'projeto Meirelles' ilegal e ilegítimo, não está nos meios nem nos instrumentos, mas na destinação dos recursos que se obtenham de uma melhor administração da dívida.
Meirelles, do governo Temer usurpador, é homem dos banqueiros e só visa a abrir os canais de dinheiro para que jorrem em direção aos banqueiros do complexo imperial EUA-sionista. Palloci tinha outros planos para o mesmo dinheiro (a ser obtido praticamente pelos mesmos meios).
Em 2006, Palloci assim explicou os objetivos de seu ministério, alinhados com os objetivos do governo petista: "É preciso reduzir os custos da intermediação financeira no país e dar perspectiva de longo prazo ao processo de consolidação fiscal, diminuindo as fontes de rigidez do orçamento, controlando as despesas primárias correntes e revendo os mecanismos de despesas obrigatórias. Isso permitirá que os recursos de que dispomos sejam, cada vez mais, direcionados com eficiência para prioridades como programas sociais e para projetos de melhoramento e ampliação de nossa infraestrutura".
A implacável campanha de demonização de Palloci só fez crescer em todos os veículos do Grupo GAFE (Globo-Abr-FSP-Estadão) – não contra o que o governo Lula fazia naquele momento, mas, sim, CONTRA O PROJETO POLÍTICO daquele governo eleito. Até que, ao que parece contra a vontade de Lula, Dilma demitiu Palloci em 2011 (NTs. Todos os destaques são nossos).
Bodo Ellmers, "Triple Crisis", Dollars & Sense
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
blogdoalok
PSDB, PMDB, DEM e PP querem fazer o mesmo com o nosso país, mas com muitos agravos.
ResponderExcluirAguarde. O povo chorará sangue pedindo a volta do PT!