Outro dia, assisti estarrecido a uma entrevista na emissora de rádio estatal alemã. Foi na Deutschlandfunk, especializada em noticiário e temas correntes, e considerada por muitos a emissora de rádio mais séria e objetiva de toda a Alemanha.
Neste caso, o moderador entrevistava o Deputado do Parlamento Europeu Sven Giegold, dos Verdes, sobre o próximo referendum, também chamado Brexit, na Grã-Bretanha, sobre o país deixar a União Europeia. Giegold é inteligente, de fato um dos raros talentos ativos em Bruxelas. Uma das primeiras questões do moderador foi se não seria melhor se o ministro das Finanças da Alemanha Wolfgang Schäuble, o presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker e Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu fossem à Grã-Bretanha para defender o lado do "Fica" [ing. Remain] na União Europeia, com vistas ao próximo referendum.
A pergunta reflete alguns dos problemas muito básicos que são como pragas que acometem a elite europeia e sua respectiva e muito obsequiosa mídia-empresa. O primeiro é problema especificamente alemão: autoridade não se questiona. Em outras palavras, quando poderosíssimas figuras como o ministro das Finanças da Alemanha e os presidentes da Comissão e do Conselho Europeus dizem a você que vote "Fica", não cabe dúvida alguma sobre o que você tem de fazer.
Passa a ser dever de todos esquecerem imediatamente os 'feitos' recentes desses três políticos.
Schäuble, pode-se dizer sozinho, converteu a recessão europeia em depressão, além de ter reduzido a Grécia à situação de crise humanitária perpétua.
Juncker, como primeiro-ministro em Luxemburgo, criou o sistema de impostos hoje vigente, pelo qual grandes empresas praticamente não pagam imposto algum sobre lucros auferidos na Europa, em detrimento dos contribuintes cidadãos dos estados-membros. Deveria ter sido condenado e metido na cadeia. Em vez disso, foi instalado como presidente da Comissão Europeia.
Tusk enfiou uma política neoliberal europeia goela abaixo dos poloneses, resultado da qual os poloneses recentemente elegeram e deram maioria absoluta no governo da Polônia a um partido antieuropeu e ultraconservador. É a primeira vez, na era pós-comunista, que qualquer partido consegue esse tipo de mandato absoluto.
São feitos desse trio, que não se podem desprezar.
Para piorar, Schäuble serviu-se de sua tática preferida, de agressão e provocação [orig.bullying], para influenciar os britânicos, deixando perfeitamente claro que no caso de Brexit"Dentro é dentro, fora é fora". Não haverá boa-vontade, nada de concessões. E que ninguém suponha que é só atitude polêmica. Exatamente o que ele disse aos gregos, antes de destruí-los. Grã-Bretanha pode não usar o euro. Mas nação que desafie a hegemonia alemã e saia da União Europeia é precedente perigoso demais e tem de ser usada como exemplo de... Vejam lá a Grécia. Há enorme arsenal de armas econômicas que Schäuble pode usar. E ele não terá qualquer escrúpulo quanto a usá-las.
Seja como for, o moderador, na entrevista, ficou gago, sem saber o que dizer, quando Giegold explicou que a retórica ameaçadora grandiloquente da Alemanha, seja de Mr.Schäuble ou de outros líderes alemães, nunca, no passado, impressionou muito os britânicos. Na opinião de Giegold, quanto mais os alemães ameaçam, mais gasolina jogam na fogueira pró-Brexit, e absolutamente não ajudam na direção que os alemães preferem.
Depois das ameaças de Schäuble, Tusk demonstrou ao vivo a sagacidade típica da elite da União Europeia, na análise simplória que fez do Brexit, que, para ele, pode ser o começo da destruição total não só da União Europeia mas também de toda a civilização política ocidental, sem sobrar nem farelo. Ah, sim, sim, temos pela frente tempos muito excitantes!
Se a Grã-Bretanha prosperar depois do Brexit, a elite da União Europeia terá pela frente alguns problemas sérios. Pior ainda será se acontecer de a Grã-Bretanha prosperar, mas a União Europeia, não. Ninguém deve esquecer que, depois de aprovada a saída do país, da União Europeia, a Grã-Bretanha será governada por governo conservador neoliberal, cuja agenda política é semelhante à da União Europeia. O que acontecerá se em eleições futuras esse governo for substituído por outro, mais social-trabalhista (no caso de os Blairistas não conseguirem manter o controle sobre o Partido), que introduza programa econômico diferente?
O que o apresentador da rádio alemã parece não compreender é que Schäuble, Junckere Tusk, como o resto da elite da União Europeia, tornaram-se anátema para muitos europeus, especialmente para os privados de qualquer senso de democracia, justiça ou solidariedade.
A verdade é que nada que tenha a ver com a União Europeia é democrático ou transparente. Onde, exceto sob ditadura, há Parlamento cujos parlamentares não podem criar leis e onde só corpos não eleitos criam leis?!
Se alguém examina a União Europeia hoje, vê que nada mudou ao longo de anos. E a UE hoje faz de tudo para promover os acordos comerciais TTIP [Parceria Trans-Atlântico de Comércio e Investimento] e CETA [Acordo Econômico e Comercial Amplo], por mínimo que seja o apoio popular nos dois casos. Lobbystas de grandes empresas ditam a política. O que é ilegal nos EUA, relacionado a emissões de óxido de nitrogênio de veículos movidos a diesel, é legal na União Europeia, graças aos buracos implantados no texto das leis.
A Volkswagen provavelmente nunca será punida, por usar itens defeituosos em seus carros a diesel. Não surpreendeu ninguém que essa fraude tenha sido exposta nos EUA, mas não na União Europeia. A nova lei sobre testes de emissões para veículos leves movidos a gasolina, WLTP [ing. Worldwide harmonized Light vehicles Test Procedures] é pois absolutamente sem efeito na União Europeia. Apesar da chuva de escândalos relacionados a impostos, inclusive o que envolve Juncker, nunca se criou legislação efetiva para fechar a torneira. E a lista de casos é longa.
A União Europeia gasta milhões todos os anos para manter a ilusão de que ela própria seria um dos grandes feitos europeus. O problema é que nada disso é bem assim, há muito tempo. De fato, a União Europeia tornou-se agente para a imposição de uma agenda neoliberal, que converte em lei europeia o que não passa de interesses privados do big business. E assim aconteceu de haver hoje uma União Europeia antidemocrática sob hegemonia alemã, para promover os interesses das grandes empresas privadas – e duvido que seja o que o povo da Europa quer ou merece.
As palavras do dramaturgo britânico Dennis Potter aplicam-se à situação atual na União Europeia: "Não estão interessados em nosso desenvolvimento ou emancipação. É típico de força de ocupação." A mesma conclusão à qual chegaram os gregos há alguns anos.
Tem sido interessante acompanhar os estágios da campanha pró- Brexit. De início, parecia ser um referendo sobre o governo de David Cameron. Depois, o papel da imigração assumiu o centro do palco. Agora, a soberania nacional e a ausência de democracia na União Europeia tornaram-se importantes itens de discussão. Há até um início de debate dentro da esquerda britânica, sobre se é possível redemocratizar a União Europeia. Questão bem esquisita, dado que nunca antes, em tempo algum, foi organização democrática.
Parece haver pouca esperança de que a UE possa ser reformada. A elite da União Europeia sente-se segura demais e tem muito a perder. Uma União Europeia democrática é absolutamente inútil para eles, especialmente para os alemães. Recentemente,Schäuble uniu-se aos que querem o fim das reivindicações por mais integração europeia. A Alemanha não mais precisa de integração, que implica concessões, quando o país já está mandando no jogo. Estive recentemente em Bruxelas, e vi um membro de uma ONG explicar que a Alemanha está muito satisfeita com a situação atual da União Europeia. Estão ditando as políticas. Pode haver resistência aqui e ali, mas não são casos existenciais para a Alemanha e seus clientes.
Mas Brexit oferece oportunidade única à Grã-Bretanha. Uma vez fora da União Europeia, quem os Tories neoliberais culparão quando todos afinal perceberem que são eles que hoje arruínam a Grã-Bretanha, não a União Europeia nem os imigrantes?
Mathew D. Rose, Berlim (in Naked Capitalism)
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
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