Saberes correntes dizem, depois de anunciado o resultado do referendum na Grã-Bretanha na 6a-feira, que a diferença pequena a favor de o país deixar a União Europeia – dito Brexit– é prova de que parte da Europa estaria re-afundando no nacionalismo e no isolacionismo. São saberes errados ou, no mínimo, muito simplistas.
O resultado, que surpreendeu muitos observadores, atesta a natureza profundamente viciosa da campanha que precedeu o referendum. Isso, por sua vez, refletiu uma falha chave da política moderna, não só na Grã-Bretanha, mas em quase todo o mundo desenvolvido: a reemergência de uma classe política absolutamente opaca, sem transparência, da qual não se exige que preste contas de coisa alguma, a ninguém.
O traço mais claro da campanha foi a ausência de campo de batalha ideológica identificável. Não se discutiram visões de mundo em confronto, valores ou sequer argumentos de qualquer tipo. O que se viu foi um concurso para ver quem metia mais medo no adversário, mais efetivamente.
O comando da ala Brexit adotou a pose familiar do Little Englander: a União Europeia não controla as fronteiras; o influxo, para a Grã-Bretanha, de emigrados do leste-europeu, que fogem dos baixos salários, e a ameaça de milhões de refugiados saídos de zonas em crise como a Síria estariam criando uma mistura tóxica que teria completamente esvaziado de sentido o status do Reino Unido como ilha com trono e cetro.
O comando do campo "Fica" [ing. Remain] negociou uma espécie diferente de medo. Brexitlevaria os capitais a fugirem do Reino Unido e com os capitais lá se iria também a elite econômica a ele associada. O colapso da libra quebraria o país e esvaziaria as pensões e aposentadorias. A Grã-Bretanha deixaria de ser um player na moderna economia global.
Além disso, os que defendem a União Europeia tinham outra carta na manga. Acusaram apoiadores do Brexit de serem racistas e xenófobos que preferem culpar imigrantes a admitir que a desgraça econômica deles é efeito de fracassos e erros também deles.
Boceta de Pandora
"Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo;
em alguma parte há de ela ficar."
(MACHADO DE ASSIS, Dom Casmurro, cap. 7: "D. Glória")*
Postas as coisas nesses termos – e é difícil superestimar o que havia de simploriamente confrontacional nos argumentos dos dois lados – fica mais fácil compreender por que o campo do Brexit venceu.
O referendum na União Europeia abriu uma boceta de Pandora de divisões enraizadas nas classes, que muitos esperavam que tivesse sido fechada para sempre no período do pós-guerra, com o avanço temporário do estado do bem-estar e de políticas social-democratas.
Embora inadvertidamente, os líderes do "Fica" puseram-se a defender a causa de uma elite rica que incluía banqueiros e gerentes de fundos de investimentos que até recentemente haviam sido publicamente vilipendiados pelo papel que desempenharam no crash financeiro de 2008.
Foi uma bofetada na cara da classe trabalhadora, e também da classe média que pagou o preço pelas temeridades da elite econômica e pelos desperdícios autointeressados e pelas subsequentes 'exigências' de 'resgates' gargantuescos.
Os favoráveis à União Europeia – que tipicamente sofreram menos por causa do crash de 2008 – só fizeram acrescentar insulto à injúria, ao rotular suas vítimas de "racistas" por exigirem garantias de que os políticos eleitos trabalhariam para defendê-las, não para defender uma elite econômica.
Pilhagem econômica
Pode-se dizer, sim, que a União Europeia nem é a principal responsável pelos problemas que os trabalhadores britânicos enfrentam. Desde a ascensão Margaret Thatcher no final dos anos 1970s, figuras britânicas de todo o espectro político empenham-se no ataque contra uma agenda neoliberal que mutilou direitos que os trabalhadores muito lutaram para alcançar.
É revelador que alguns dos super-ricos – inclusive magnatas da mídia-empresa – tenham trabalhado a favor de a Grã-Bretanha separar-se da UE. Bem visivelmente, acreditam que, fora da UE, terão condições para pilhar a economia britânica em velocidade ainda mais alta, sem serem contidos pelas regras da UE.
Mas a UE passou a ser o bode expiatório para o ressentimento popular contra o consenso neoliberal – e por bons motivos.
A UE é vista, corretamente, como uma das instituições transnacionais chaves que facilitam o enriquecimento de uma elite global. E passou a ser obstáculo gigante, a impedir que os estados membros reformassem suas economias por vias que não implicassem 'austeridade' [não é 'austeridade': é ARROCHO], como os gregos dolorosamente logo descobriram.
Essa é a causa profunda da alienação experimentada por partidários ordinários do Brexit. Mas infelizmente ninguém na liderança nem dos pró-"Fica" [ing. Remain] nem dos pró-"Sai" [ing. Brexit] articulou com seriedade aquela frustração e aquela ira, ou ofereceu soluções que visassem àquelas ansiedades. Os pró-"Fica" rejeitaram arrogantemente os medos do outro lado, que chamaram de "racismo".
Serviu muito bem à liderança dos pró-"Sai", que reunia figuras da extrema direita no partido Conservador, como Boris Johnson e Michael Gove, além de Nigel Farage dos "independentes", perfeitamente acabada versão britânica de Sarah Palin.
Esse clube de milionários, claro, não estava interessada nas agruras pelas quais passa o novo precariato da Grã-Bretanha – uma classe trabalhadora permanentemente aprisionada nas garras da economia precária. Só queriam os votos dessa gente. Alimentar o medo contra os migrantes foi a via mais fácil para conseguir os votos – e desviar a atenção do fato de que os milionários sempre foram os reais culpados por trás da miserabilização das pessoas comuns.
Ninguém ama a União Europeia
O apoio ao Brexit foi ainda mais reforçado pelo pálido desempenho dos cérebros do campo pró-"Fica". A verdade é que os líderes dos dois principais partidos, investidos da tarefa de defender a União Europeia, só muito mal e porcamente acreditavam nos méritos das respectivas próprias causas.
O primeiro-ministro David Cameron é eurocético de longa data, que privadamente distribui praticamente a mesma desconfiança contra a UE, de Johnson e Gove.
E o recentemente eleito líder da oposição Trabalhista, Jeremy Corbyn, tampouco é amante da UE, embora por razões muito diferentes das razões da direita.
Corbyn é parte da velha guarda do partido Labour – relíquia de uma ala socialista democrática do Labour do pós-guerra que foi quase toda expurgada no período de liderança de Tony Blair. O Labour sob Blair converteu-se em versão 'light' do partido Conservador.
E aqui alcançamos afinal o xis do problema com a campanha do referendum.
Há argumentos fortes e sérios, pela esquerda, à favor de Brexit, baseados em princípios social-democráticos e internacionalistas, que Corbyn teve medo de abraçar em público, temendo que essa decisão rachasse seu partido ao meio. Assim, deixou desguarnecido o campo para a liderança de direita pró-"Sair" e aquela repugnante campanha de gerar medos.
O argumento pela esquerda, pró-Brexit
O argumento pela esquerda contra a União Europeia foi várias vezes exposto por Tony Benn, ministro do Labour nos anos 1960s e 1970s. Num debate em Oxford Union em 2013, um ano antes de morrer, Benn observou:
"O modo como a Europa desenvolveu-se só tem a ver com banqueiros e corporações multinacionais que obtiveram posições de muito poder e, se você chega sob os termos deles, eles dirão o que você pode e o que não pode fazer – e isso é inaceitável.
Minha visão sobre a União Europeia sempre foi (...), não que seu seja hostil a estrangeiros, mas sou a favor da democracia (...). Acho que estão construindo ali um império."
Quase 40 anos antes, em 1975, durante um referendum semelhante sobre deixar o que então se chamava Comunidade Econômica Europeia [ing. European Economic Community (EEC)], Benn apontou que o que estava em jogo era a democracia parlamentar britânica. E que só ela "nos ofereceu possibilidade de mudança pacífica; reduziu o risco de conflitos sociais; e nos manteve juntos, criando um contexto nacional de consentimento por todas as leis sob as quais somos governados."
Aquele alerta sobre "conflitos sociais" soa hoje assustadoramente profético: a campanha do referendum afundou-se no mais feio divisionismo político público de que se tem notícia.
Para os Benn-itas e a esquerda progressista, o internacionalismo é componente vital da luta coletiva pelos direitos dos trabalhadores e dos pobres. Quanto mais fortes forem os trabalhadores em todo o mundo, menos facilmente serão explorados pelas políticas de dividir para governar, dos ricos.
Mas a globalização, por seu lado, tem por premissa um internacionalismo muito diferente e muito estreito: internacionalismo que demanda 'livre trânsito' do trabalho, porque assim protege os direitos dos super-ricos, de reduzir sempre salários e direitos dos trabalhadores; internacionalismo que, além disso, dá plena liberdade à mesma elite econômica, para esconder os próprios lucros em remotos paraísos fiscais.
A globalização, em outras palavras, trocou o campo em que se trava a luta de classes, do estado-nação, para todo o globo. Permitiu que a elite econômica transnacional se movimente pelo mundo, explorando a favor dela mesma qualquer buraco que consiga encontrar nas nações mais frágeis, e forçando outras nações a fazer o mesmo. Ao mesmo tempo, a classe trabalhadora e a classe média viram-se sem defesas, quase completamente sitiadas em seus guetos nacional e regional, e jogadas uma contra a outra, no livre mercado global.
Corbyn não quis correr riscos
Corbyn não podia dizer nada disso porque seu partido Labour no Parlamento ainda está entupida de Blair-istas que apoiam fervorosamente a União Europeia e vivem desesperados para livrar-se do próprio Corbyn. Se ele tivesse saído em defesa do Brexit, os Blair-istas teriam ali a desculpa perfeita para lançarem um golpe. (Paradoxalmente, os Blair-istas afinal encontraram hoje um pretexto para apunhalá-lo pelas costas, 'porque' o campo do "Fica" fracassou tão redondamente.)
Em vez de expor-se tanto, Corbyn optou pela via que lhe pareceu mais segura, e foi pelo caminho do meio: a Grã-Bretanha deve ficar na União Europeia, mas tentar reformá-la por dentro.
Foi erro duplamente trágico.
Primeiro, que não houve nenhuma figura de peso no campo progressista que defendesse oBrexit com discurso consistente e progressista. Muitos votantes comuns sabem, no fundo do coração, que há algo terrivelmente errado com o consenso neoliberal e a ordem econômica global neoliberal, mas quem lhes ofereceu a lente através da qual interpretar essa experiência vivida foi a extrema direita. Ao afastar-se do confronto direto, Corbyn e a esquerda real deixaram o campo aberto para que Johnson e Farage forjassem, sem que nada e ninguém os contraditasse, o falso argumento do Little Englander a favor do Brexit.
Segundo, os votantes desconfiam ainda mais hoje, do que antes, dos políticos. Nem Cameron nem Corbyn souberam expor suas verdadeiras ideias sobre a Europa; e esse fracasso reforça as razões para pressupor o pior, em todos os casos, contra todos os políticos. Obrigados a escolher entre a posição desconfortável e superficial dos líderes do "Fica", e a convicção da direita de Johnson e Farage, as pessoas preferiram o fervor.
Política de convicções zero
É fenômeno muito mais amplo. A concessão que Corbyn fez aos Blair-istas é mais um exemplo da mesma política sem convicção alguma, feita só de conformismo ante o mal-menor que hoje exige que Bernie Sanders diga a seus seguidores que votem em Hillary Clinton – "killary", belicista em chefe, representante ungida pelo complexo militar-industrial –, para tentar impedir que um bilionário bandido de boca suja, Donald Trump, chegue à presidência.
Cada vez mais, as pessoas sentem-se enojadas ante tantas concessões sem fim, que perpetuam e intensificam a desigualdade e a injustiça, em vez de liquidá-las. Os eleitores/eleitoras e votantes em geral simplesmente já não sabem quais alavancas ainda restam ao alcance deles/delas para mudar a horrenda realidade que veem aí, diante dos olhos.
Resultado disso é uma política cada vez mais febril, frenética e polarizada. Os resultados são cada dia mais incertos, seja Corbyn conseguir chegar à liderança do partido Labour, seja Sanders conseguir deslocar Clinton já à entrada da convenção dos Democratas, seja Trump, que ainda têm chances impressionantes de vir a ser presidente dos EUA.
A velha ordem cai aos pedaços, porque já caiu em completo descrédito, e os que a comandam – uma elite política e econômica – são desprezados mais do que nunca, e nunca tão poucos acreditaram realmente neles. A União Europeia é, em muitos sentidos, parte da velha ordem.
Há uma questão genuína, de se, fora da União Europeia, será possível fazer os reparos de que a Grã-Bretanha carece. O sistema eleitoral britânico é tão pouco representativo, que não se sabe se, ainda que a maioria dos eleitores escolha alguma nova política, ela realmente alcançará maioria de votos dos deputados e representantes.
Mas o que é bem claro para muitos votantes é que dentro da UE será ainda mais difícil consertar o Reino Unido. A união só faz acrescentar mais uma camada de burocratas elobbyistas opacos, transparência-zero, que falam por bilionários sem rosto, e que existem para distanciar ainda mais o povo comum, dos centros de poder.
Para Israel, são tendências perturbadoras
Por fim, vale a pena registrar que as tendências que subjazem à votação pró Brexitprovavelmente perturbarão o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu, como já estão perturbando a classe política na Europa e nos EUA.
Como a UE, Israel é também um dos pilares vitais que sustentam a velha ordem global. Um "lar judeu" emergiu para o mundo sob proteção dos britânicos, quando ainda comandavam um império e viam o Oriente Médio como playground deles.
Depois que as potências coloniais europeias foram penduradas, depois da 2ª Guerra Mundial, o papel de patrão foi transferido para o novo hegemon global em Washington. Os EUA são infinitamente indulgentes com Israel, fazem-se de guarda-costas de Israel na ONU e subsidiam pesadamente as poderosas indústrias militares de Israel.
Assim como os EUA promoveram Israel diplomaticamente e militarmente, a UE é avalista do sucesso econômico de Israel. A UE violou a própria Constituição, para dar a Israel status especial de comércio e, assim fez da Europa o principal mercado exportador de Israel. Foram décadas antes de a Europa pelo menos reconhecer – de remediar e corrigir, ainda não se fala – que negocia também com os assentamentos ilegais na Cisjordânia.
Se a UE começa a se esfacelar, e a hegemonia neoliberal dos EUA enfraquecer, Israel terá problemas. Ficará na posição de precisar desesperadamente de outro avalista-guardião, disposto a apoiar um país que pesquisas mostram repetidas vezes que absolutamente não goza da confiança do mundo.
Mas mais imediatamente, Israel deve temer o novo clima de política polarizada, imprevisível, que vai virando norma.
Nos EUA, especialmente, um consenso suprapartidário sobre Israel está gradualmente rachando. Preocupações sobre interesses locais – do tipo que se viram mobilizadas pelos pró-Brexit – estão ganhando tração também nos EUA, como se viu ano passado, nos ecos do impasse que se criou entre Israel e a Casa Branca em torno do acordo dos norte-americanos com o Irã.
A desconfiança contra a classe política só faz crescer dia a dia, e Israel é um ponto no qual os políticos norte-americanos são supremamente vulneráveis. É a cada dia mais difícil defender, como se tivesse algo a ver com interesses realmente norte-americanos, o apoio monolítico histórico que o Congresso sempre deu a Israel.
Num mundo de recursos que se vão esgotando rapidamente, onde se exige cada dia mais da classe média que aperte o cinto, questões sobre por que os EUA planejam aumentar dramaticamente a ajuda que dão a Israel – uma das poucas economias em todo o mundo que se tem dado bem depois do crash de 2008 – não hão de ser rapidamente equacionáveis.
No longo termo, nada disso aponta futuro promissor para Israel. Brexit é simplesmente uma sirene de aviso.
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
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