Ao longo das últimas três semanas, soube-se que forças especiais da Grã-Bretanha estão engajadas atualmente em combate direto na Líbia e na Síria. Ostensivamente, lá estariam para combater contra o Daech [também chamado "Estado Islâmico", ISIS, ISIL]. Na verdade, o objetivo da 'ação' é impedir que os exércitos sírio e líbio derrotem, eles mesmos, os terroristas do Daech.
Com os desembarques na Normandia, há 72 anos completados semana passada, EUA e Grã-Bretanha afinal abriram um segundo front contra os nazistas na Europa, depois de anos de procrastinação. Apesar de a União Soviética ter assinado um acordo de 'ajuda mútua' com a Grã-Bretanha em 1941, e da aliança anglo-soviética em 1942, EUA e Grã-Bretanha, na verdade, fizeram praticamente nada, em termos de combate real, na luta contra a ameaça nazista. Até que concordaram, por comunicado conjunto distribuído em 1942, com abrir um segundo front na Europa, naquele mesmo ano. Mas imediatamente EUA e Grã-Bretanha logo descumpriram o acordo e puseram-se a adiar e adiar. Assim aconteceu que os soviéticos tiveram de combater sozinhos contra a maior potência industrial da Europa Ocidental durante três anos – resistência que custaria aos soviéticos 27 milhões de vidas.
Parece que EUA e Grã-Bretanha seguiam o que John Mearsheimer, especialista em Relações Internacionais chamou de política de "fisgar e deixar sangrar" – pela qual Alemanha e União Soviética foram deixadas lá, fisgadas, para sangrarem uma a outra até a morte; enquanto EUA e Grã-Bretanha esperavam nas coxias.
"Se virmos que a Alemanha está vencendo, temos de ajudar a Rússia" – declarou o senador (e adiante presidente) Harry Truman dos EUA em junho de 1941 –, "e se a Rússia estiver vencendo, temos de ajudar a Alemanha, e assim eles que se matem entre si, e quanto mais se matarem, melhor."
O ministro britânico da Produção de Aeronaves, coronel Moore-Brabazon ecoou a mesma visão no mês seguinte, ao dizer, num almoço de altos funcionários do governo, que o melhor resultado no front oriental seria que Alemanha e Rússia se exaurissem mutuamente, para que a Grã-Bretanha pudesse chegar e dominar a Europa. Acabou por ser forçado a renunciar, ante os protestos de uma população decidida a obrigar o próprio governo a fazer mais para ajudar os soviéticos então gravemente depauperados.
Afinal, só depois que o destino dos nazistas foi decisivamente revertido, quando já estavam derrotados em Stalingrado, é que se materializou o tal 'segundo front', há tanto tempo prometido e anunciado. Verdade é que, naquele momento, o resultado final da guerra já estava traçado. O "Dia D", portanto, foi encenado não para derrotar os nazistas, mas para garantir que a União Soviética – a quem coubera todo o sacrifício – não colhesse as honras e os frutos da vitória.
"Alguns círculos, nos EUA e na Grã-Bretanha, temiam que se o Exército Vermelho derrotasse sozinho a Alemanha, a União Soviética passaria a ter enorme influência no desenvolvimento do pós-guerra e no progresso social nos países europeus. Os Aliados não poderiam permitir que acontecesse. Por isso afinal resolveram abrir um segundo front na Europa, menos como ação militar do que como medida política, para impedir que forças políticas progressistas chegassem ao poder em países europeus" – escreveu o almiranteKharlamov, comandante da Missão Militar Soviética na Grã-Bretanha, durante a Segunda Guerra Mundial.
Documentos que em 1998 caíram em domínio público, revelaram que Churchill até já ordenara que se construísse um plano para que tropas britânicas e norte-americana avançassem para além de Berlin, acompanhando um exército alemão rearmado, numa guerra nuclear contra os soviéticos.
Hoje a história se repete, dessa vez como farsa. De 2014 até setembro de 2015, o Daech parecia estar varrendo tudo que encontrava pela frente, obtendo enormes vitórias simbólicas em Mosul e Fallujah, no Iraque; em Raqqa e Palmyra na Síria; em Derna e Sirte, na Líbia. Ao mesmo tempo tutelados por turcos e sauditas, a 'Frente Al-Nusra', da Al-Qaeda, avançava na Síria; e a facção Ansar Sharia, na Líbia, tomou Benghazi, preparando o caminho para que o Daech se infiltrasse.
O ocidente pouco fez para ajudar. Na Síria, o Exército Árabe Sírio (EAS) foi deixado para enfrentar aqueles grupos terroristas, e não apenas sem qualquer apoio do ocidente, mas, também, contra um ocidente que só aparentava lutar contra os terroristas. Assim também o Exército Nacional Líbio – representante do Parlamento líbio eleito – foi paralisado por um embargo de armas escrupulosamente observado no que tivesse a ver com armas para os líbios, mas regularmente violado pelos aliados do ocidente no Golfo, no que tivesse a ver com milícias sectárias do 'Despertar Líbio' [ing. 'Libya Dawn’] contra as quais os soldados líbios combatiam. E até os supostos mais próximos aliados dos EUA no exército do Iraque, a divisão de elite 'Divisão Dourada' [ing.‘Golden Division’], enfrentou graves dificuldades para conseguir apoio efetivo dos EUA, quando precisou dele.
Apesar disso, a partir da intervenção dos russos nas Síria, em setembro passado, a maré começou a virar contra o Daech e a Al-Qaeda, pavimentando o caminho para uma sequência de vitórias, especialmente do Exército Árabe Sírio e do Exército Nacional Líbio, e apontando, potencialmente, na direção da plena restauração da autoridade governamental nos dois países.
Na Líbia, o momento chave foi em fevereiro de 2016, quando o Exército Nacional Líbio finalmente reconquistou – depois de 18 meses de combates intensos – o controle em Benghazi, até ali ocupada pelo Daech e pela milícia Ansar Sharia. Os dois eventos, a presença do Daech em Benghazi e a libertação da cidade foram, como se poderia prever que seriam, praticamente apagados do noticiário ocidental, apesar de o destina da cidade ter sido aparentemente tão importante para líderes britânicos e norte-americanos, nos idos de 2011. Dia 3 de maio, o Exército Nacional Líbio começou sua marcha para o oeste, de Benghazi rumo à última fortaleza do Daech na Líbia, em Sirte.
Em fevereiro, também, uma ofensiva massiva pelo Exército Árabe Sírio contra Aleppo começou a realmente obter avanços significativos, recapturando território da Al-Qaeda, do Daech e de Ahrar Al-Sham. Dia 3 de fevereiro, a rota de suprimentos para Aleppo foi fechada, o que interrompeu o sítio que os rebeldes faziam contra duas cidades controladas pelo governo sírio ao sul de Azaz. Na sequência, começaram as rendições em massa, ao Exército Árabe Sírio. Depois, exatamente um mês adiante, a cidade histórica milenar, de Palmyra, foi libertada do Daech, por forças do governo sírio e apoio aéreo de forças russas. No que foi, parece, uma tentativa para fazerem-se de importantes e necessários, os EUA também lançaram alguns ataques aéreos contra a cidade, para 'mostrar' que os EUA"querem muito destruir o Daech – mas não é, assim, tanto-tanto" – disse o jornalista Robert Fisk.
Hoje, a fortaleza original do Daech e dita 'capital' de seu autodeclarado 'califato' está sob ataque. O Times noticiou no início da semana em curso, que um Exército Árabe Sírio novamente com a moral em alta, está "avançando rapidamente na direção da fortaleza do Daech de Raqqa" e que "a unidade Falcões do Deserto, unidade de elite do governo sírio, apoiados pelos aviões da Força Aérea Russa, cruzaram a fronteira sul da província de Raqqa no fim-de-semana – primeira vez que as forças do presidente Assad põem os pés ali, desde que a cidade foi tomada pelo Daech há quase dois anos." E estão avançando rapidamente.
Ao longo de 2016, portanto, as forças armadas nacionais legais dos dois estado, Líbia e Síria, representantes de governos eleitos nos dois casos, nunca pararam de avançar, e os dias do Daech e de seus sectários parceiros e apoiadores podem, sim, estar já contados. É pois sumamente interessante que precisamente agora, nesse momento – nunca antes, quando o Daech estava conseguindo avanços, mas agora, quando estão pressionados e perdendo terreno –, tropas britânicas tenham-se dado o trabalho de, sim, pular na frigideira.
A mesma edição do Times que noticiou que o Exército Árabe Sírio "avança rapidamente (...) rumo a Raqqa" também noticiava, como matéria de primeira página, que "forças especiais britânicas estão na linha de frente na Síria defendendo uma unidade rebelde", observando que "a operação marca a primeira evidência de envolvimento direto de soldados britânicos nos combates naquele país destroçado pela guerra, já não exclusivamente para dar treinamento a rebeldes na Jordânia."
E o mesmo jornal noticiara na semana anterior que forças especiais da Grã-Bretanha haviam cumprido sua primeira missão de combate na Líbia, dia 12 de maio, em apoio ao grupo ‘Libya Dawn’ da guerra civil na Líbia. Libya Dawn é um grupo guarda-chuva composto principalmente de milícias que têm base em Misrata e que surgiram depois das eleições de junho de 2014, com patrocínio do Qatar, para combater contra o Parlamento secular recém eleito e as forças armadas líbias legais, o Exército Nacional Líbio.
O Times tacitamente reconhece que, até agora, o Exército Nacional Líbio lutava sozinho contra o Daech: "Misrata em grande medida ignorou a metástase do Daech em Sirte, a cerca de 270km de distância, desde que as primeiras células terroristas se implantaram ali em 2013". Mas agora, os "coturnos em solo" que Cameron jurou que jamais pisariam terra líbia veem-se repentinamente como "a força de escol", selecionada para a missão de libertar o país.
Como em 1945, depois de esperar sem se levantar da cadeira enquanto um grupo genocida matava milhares sobre milhares de soldados obrigados a lutar sozinhos contra eles, o regime Cameron quer negar aos exércitos realmente vitoriosos, os frutos de seu sacrifício. Cameron prefere ver Raqqa e Sirte ocupadas por milicianos e terroristas sem unidade e sem outro projeto que não seja o próprio sectarismo, do que ver restaurada ali a autoridade de governos eleitos.
Agora, com soldados britânicos lutando ao lado de terroristas na Síria, aumentam as possibilidades de confronto direto com forças russas. Exatamente como Churchill em 1945, Cameron também parece interessado em expor os ingleses a esse tipo de risco insano. Daquela vez, prevaleceram as cabeças mais sãs. A questão é: e hoje? Onde estão as cabeças mais sãs?
Dan Glazebrook, RT
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Nenhum comentário:
Postar um comentário