Assim como o presidente Putin partiu pós-Brexit para discutir com o presidente Xi Jinping em Pequim tudo que encontrassem para discutir sobre a integração da Eurásia, eu também embarquei em jornada conectada, paralela, pelo sul da China.
A partir de minha base em Hong Kong, parti para uma volta pelo Delta do Rio das Pérolas, por Shenzhen e Dongguan e depois Guangzhou, Zhuhai e Macau.
Por quê? Porque essa expansão de uma megacidade pós-moderna, urbanização frenética, em velocidade sem precedentes de inovação tecnológica, é vitrine para nada menos que o futuro sonhado pela liderança coletiva em Pequim. E ninguém perde por saber que o sul da China é o ponto de partida da Rota Marítima da Seda.
Tive o grande privilégio de visitar Shenzhen e Guangzhou apenas uns poucos dias depois de o Pequeno Timoneiro Deng Xiaoping, então com 88 anos, ter embarcado na sua legendária "viagem pelo sul", em janeiro-fevereiro de 1992. Naquele momento, o objetivo dele era superturbinar o milagre da manufatura chinesa (e "enriquecer é glorioso"), que ainda engatinhava.
No início dos anos 1990s, agricultura, mineração e pesca eram responsáveis por 27% da economia chinesa; manufatura e construção respondiam por 40%; e serviços, por 30% – segundo fontes em bancos de Hong Kong. No início da década dos 2010s, a agricultura já caíra para apenas 10%, com a manufatura em 46%, e serviços, 44%. Uma geração de comerciantes, citados muitas vezes como a "Gangue de 92" – quando muitos deles começaram – imprimiam sua marca numa nova China.
Hoje, o Delta do Rio das Pérolas – nodo número 1 da manufatura intensiva em mão de obra da China – está no processo de substituir trabalhadores por robôs em grande escala, mais um sinal de que a China está a um passo de decolar tecnologicamente, em grande estilo. E isso é parte de uma estratégia "Made in China 2025" que Pequim anunciou há apenas dois meses, centrada em incansável inovação – e em comercialização. A nova revolução industrial China 2.0 está em marcha – fazendo muito barulho.
Uma confederação de megacidades
A China hoje, em campo, parece e sente como uma confederação de megacidades competindo ferozmente umas contra as outras por tudo: por investimentos (internos e externos), por indústrias, por talentos tecnológicos, por visibilidade global. Pequim apoia as províncias e as regiões – mais ou menos como fazia a dinastia Song –, mas só até certo ponto. A China de fato já está federalizada. Cabe a cada província determinar a própria estratégia econômica.
Foi estrada longa e sinuosa desde os anos 1960s – quando a China estava sob o poder da Revolução Cultural (para avaliar a mudança sísmica daqueles anos, veja The Cultural Revolution: A People’s History 1962-1976, de Frank Dikotter, professor da Universidade de Hong Kong, que trabalhou com documentos antes sigilosos do Partido). Também é esclarecedor comparar a Revolução Cultural e o fato de que a ONU, nos anos 1960s, começava a promover o conceito de Zona Econômica Especial (ZEE) [ing. Special Economic Zone (SEZ)] como modelo para infraestrutura e crescimento.
Hoje há mais de 4 mil ZEEs espalhadas pelo mundo – vivendo e respirando experimentos de investimento estratégico planejados para absorver massas de trabalhadores e turbinar a modernidade. E Shenzhen, claro, é a mãe de todas as ZEEs.
Em 1979, Deng designou Shenzhen, então nada além de sonolenta aldeia de pescadores ao norte de Hong Kong, como a primeira ZEE da China. Hoje, vivem ali mais de 18 milhões de pessoas – e a população não para de aumentar. Shenzhen começou como uma espécie de reserva de trabalho barato, muito útil para uma China que precisava desesperadamente de investimento externo para criar empregos, treinar uma força de trabalho massiva e importar competências e tecnologia. Foi ganha-ganha, dos grandes. O que o ocidente demorou 200 anos para fazer, a China fez em 20.
Entre as duas, a Grande Xangai e a província de Guangdong – onde está o Delta do Rio das Pérolas – são responsáveis por 80% das exportações chinesas. Hoje, a estratégia chinesa de novo "impulso de urbanização" já ultrapassa Shenzhen, e visa a descentralizar-se para novas megacidades ou mesmo cidades completamente novas, todas autossustentáveis. A ênfase é criar um círculo vicioso*: sobe, sobe, sobe na cadeia de valor; mais produtividade, mais consumo, maiores salários. Ambas, Hong Kong e Cingapura – modelos chaves para Pequim – claramente ascenderam a partir de um círculo comercial vicioso,* até se tornarem cidades globais de primeira categoria. Agora, é a vez de cidades dentro da China, de Shenzhen ao Parque Industrial de Suzhou perto de Xangai, mostrarem o caminho.
O coração do Sonho Chinês é esse impulso de urbanização. E o laboratório no qual a ideia foi concebida é o Delta do Rio das Pérolas – com sua confluência de capital, tecnologia e indústrias do conhecimento.
Conhecimento é poder
Guangzhou, menos de duas horas ao norte de Hong Kong, é a capital do milagre manufatureiro do Delta do Rio das Pérolas. Muito além da zona de livre comércio criada em 1992, a Zona de Processamento e Exportação Guangzhou Nansha [ing. Export Processing Zone Guangzhou Nansha] (montadoras de automóveis, biotecnologia, máquinas pesadas) é perfeitamente conectada ao aeroporto, poucos minutos de viagem; e ao porto ultramoderno de Shenzhen.
Estar próxima de Hong Kong sempre foi um plus a favor de Guangzhou – mesmo antes da mudança de 1997. Assim como Hong Kong foi a fonte seminal para todo o investimento externo direto (IED) na China, a máquina exportadora no Delta progressivamente passou a atrair todo esse investimento para construir infraestrutura ultramoderna que compete com Hong Kong. Shenzhen, para todas as finalidades práticas pode já estar superando Hong Kong em muitos aspectos – mas oficialmente se trata da emergência de uma megalópole de categoria mundial, Hong Kong-Shenzhen.
E não é Foxconn. A "fábrica do mundo" cospe sem parar um tsunami eletrônico monstro, montado essencialmente em Shenzhen, de Apple a Microsoft, de Sony a Samsung. As gigantes chinesas de tecnologia Huawei e Tencent têm base em Shenzhen. A bolsa de ações está entre as mais ativas do muito – vangloriando-se de comerciar com todo o tipo de empresa, das empresas estatais [ing. state-owned enterprises (SOEs)] às start-upstecnológicas.
Guangzhou, enquanto isso, se destaca como grande centro de conhecimento, com sua Cidade do Conhecimento administrada por cingapurenses; e especialmente a Cidade da Ciência de Guangzhou – que rivaliza com a Cidade Digital Samsung em Suwon, Coreia do Sul: é uma espécie de versão à chinesa, do Vale do Silício. Cingapura também contribuiu para o que é ensinado na Universidade de Tecnologia do Sul da China [ing. South China University of Technology], que alimenta as principais start-ups digitais chinesas de tudo, de computação em nuvem a engenharia de materiais, energia renovável e biotecnologia.
Ma versus Ma
Um dos segredos mais top secret da China está num pequeno exército de empresários atilados que estão redefinindo os limites da inovação, não só na China, mas em todo o mundo. E não é coisa que Pequim esteja comandando; ao contrário, o trono não pode controlar – e realmente nem quer controlar – toda essa exuberância muito racional. A história da Haier sediada em Shenzhen é a corporificação do processo no qual os motores da economia chinesa são empresas privadas de classe mundial.
As maiores empresas da China – bancos, seguradoras, energia, telecom, empresas de aviação, grandes metalúrgicas, fabricantes de veículos e construtoras – são todas de propriedade estatal ou controladas pelo Estado. Mas essa não é a história principal. São empresários privados que estão hoje transformando suas indústrias, com mínimo controle pelo governo. Atualmente, a China tem mais de 12 milhões de empresas privadas e 24 milhões das chamadas "proprietorships" – empresas que são propriedade de um indivíduo ou uma família.
Como aprendi na Cidade da Ciência, o setor privado é responsável por mais de 75% do resultado econômico da China; e empresas privadas oferecem hoje nada menos que 2/3 de todo o emprego urbano no país.
Esses empresários são realmente osso duro – de Jack Ma da Alibaba, a Pony Ma da Tencent; de Robin Li da Baidu a Ren Zhengfei da Huawei; de Lei Jun da Xiaomi a Yu Gang de Yihaodian. Sobreviveram, pode-se dizer, a tudo: à crise financeira da Ásia de 1997-1998; à furiosa competição da enchente de atores estrangeiros depois que a China foi admitida na Organização Mundial do Comércio nos anos 2000s; e por fim, mas não menos importante, também à crise financeira global de 2008, obra de Wall Street. O "segredo" deles é muito simples: atendimento impecável ao consumidor.
Alibaba é a maior dessas empresas e a mais notória, em grande medida por causa de sua Oferta Inicial Pública em 2014 [ing. 2014 IPO], de $25 bilhões. Mas Tencent, principal portal de Internet da China, fundado por Pony Ma em 1998, é ainda maior, em vendas e lucros.
Educação caminha com infraestrutura
O Delta do Rio das Pérolas é também uma história de educação de altíssimo nível que desliza por infraestrutura de primeiríssima qualidade – de ferrovias de alta velocidade a rodovias impecáveis e conexões rápidas por hovercraft. É cenário que põe no chinelo qualquer coisa que haja nos EUA – e configura, em cada detalhe, um corredor ininterrupto numa megacidade que em 2030 movimentará uma população de 80 milhões e um PIB de $2 trilhões.
Configurado aqui o papel estratégico do Delta do Rio das Pérolas na divisão global do trabalho, chegamos agora ao ponto em que Alibaba, por exemplo, já se deslocaliza parcialmente para a Ilha Hainan, para trabalhar em computação de nuvem e numa plataforma de governo eletrônico, com um braço da Universidade Taobao focada comércio eletrônico.
O investimento em educação superior sempre foi chave. Na China, de sete milhões de alunos que concluem anualmente a graduação acadêmica, 1,2 milhões são formados em ciência, ou em temas relacionados à engenharia. Regularmente as escolas e universidades chinesas cospem um exército de falantes fluentes de inglês hiperconectados. Como Edward Tse observa em China’s Disruptors, em 2020 eles serão parte de uma força de trabalho de 200 milhões de homens e mulheres com grau acadêmico. É mais que toda a força de trabalho nos EUA.
A expansão global, claro, vem com o terreno. Chicago, por exemplo, se autodenomina a principal cidade dos EUA para negócios chineses. Os chineses estão construindo linhas de montagem final de cadeias de suprimento industrial ao estilo de Shenzhen dentro dos EUA, para evitar as tarifas de importação. As chinesas Minsheng Investment e Advance Business Park estão recuperando as docas Royal Albert no leste de Londres, convenientemente bem próximas do aeroporto City de Londres, como uma ilha tax-freepara negócios chineses. Huawei está construindo um centro de Pesquisa e Desenvolvimento na Tailândia.
Financeiramente, a Shenzhen-Hong Kong Stock Connect – o link para negócios de ações entre as duas bolsas – já concluiu os testes no início dessa semana. A meta, como excitados corretores de Hong Kong contam, é "bombear liquidez para os mercados de ações transfronteiras e servir como ponto de apoio e impulsão para abertura cada vez maior dos mercados de capital em toda a China continental."
Assim sendo... que fim levou o "pivô para a Ásia"?
Os gigantes chineses do e-commerce estão agora entrando nas finanças – oferecendo produtos de money-market com taxas de juros superiores às dos bancos. Huawei, a gigante de equipamento Telecom quer ser o maior player global dos smartphones. BYD, que fabrica baterias para telefones celulares, está entrando no negócio de automóveis. É um frenesi de polinização cruzada nos business. Pode-se apostar que empresas chineses logo aparecerão com iPhone de $50, carros elétricos movidos a energia solar, produzidos em massa e baratos e, por que não, um robô personalizado para você; a China já é o maior mercado de robôs industriais, a maioria dos quais trabalhando na indústria automobilística.
A obsessão da China com inovação, alimentada em grande parte no Delta do Rio das Pérolas, combinada ao impulso de urbanização, está levando a um novo paradigma socioeconômico, uma nação de várias centenas de cidades onde moram de um milhão a dezenas de milhões de pessoas – coisa que ninguém no mundo jamais viu, exceto Deng Xiaoping, em sua visão de "mil Cingapuras".
Dado que 25% das exportações e 40% das importações dos EUA envolvem a Ásia, pode-se dizer que o tal "pivoteamento para a Ásia" tão prezado por Obama e o Pentágono cuida, basicamente, de proteger a cadeia de abastecimento dos EUA. Mas o mesmo se aplica à China. A questão é se o governo dos EUA em Washington algum dia admitirá que a geopolítica da cadeia de abastecimento é muito mais importante que algum imperialismo humanitário.
Acesso a recursos naturais e infraestrutura são agora condições geoestratégicas. E Pequim sabe disso, melhor que todos – daí o alcance eurasiano das Novas Rotas da Seda, também conhecidas como One Belt, One Road (OBOR) [Um Cinturão, Uma Estrada (UEUC)]. Qualquer movimento de pivô para a Ásia para deter a "agressão chinesa" é, portanto, absolutamente sem sentido. Ao expandir o modelo do Delta do Rio das Pérolas, a China está construindo infraestrutura massiva com os vizinhos – e para além deles. Infraestrutura vence "segurança".
Por isso, construir um corredor eurasiano de apoio tem de andar paralelo com a ação chinesa nos Mares do Leste e do Sul da China, onde o grande jogo é construir massiva infraestrutura no Oceano Índico e no Pacífico, para evitar o engarrafado Estreito de Malaca.
A ferrovia Trans-Eurásia de trens de alta velocidade, os canais marítimos no Sudeste da Ásia, as Rotas Marítimas da Seda, remetem todos àquele dia em 1979, quando Deng Xiaoping inventou Shenzhen. Não há o que discutir: o Sonho Chinês para o século 21 começou num sonho para o Delta do Rio das Pedras.
Pepe Escobar, RT
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
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