Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Ver também
Documento da série "PARA NÃO ESQUECER" (2/2):
Putin às elites ocidentais: acabou a brincadeira
Documento da série "PARA NÃO ESQUECER" (2/2):
Putin às elites ocidentais: acabou a brincadeira
"Não se trata de alguns simples negócios locais, ou de alguma partilha na esfera de influência, no espírito da diplomacia clássica, ou da total dominação global por alguma força. Entendo que precisamos de uma nova versão do que seja interdependência. Devemos não temer a interdependência. Ao contrário, pode ser um bom instrumento para harmonizar posições".
(Vladimir Putin, Clube Valdai de Discussão Internacional, Sochi, Rússia, 24/10/2014)
MUITOS, na parte anglófona do planeta, não souberam do discurso do presidente Putin na conferência Valdai em Sochi, há poucos dias, e é altamente provável que mesmo os que ouviram falar do discurso não tiveram chance de lê-lo na íntegra, e ficaram sem meios efetivos para avaliar a importância daquela fala. (Para ajudar, adiante todos encontrarão o discurso do presidente Putin, transcrito na íntegra [e traduzido].) A mídia-empresa ocidental fez de tudo para ignorar o discurso ou distorcer seu significado real. Independente do que um ou outro pense ou não pense sobre Putin (como Sol e Lua, Putin não veio ao mundo para servir de 'substrato' a opiniões de colunistas de jornal) – o chamado Discurso de Sochi, do presidente Vladimir Putin é provavelmente o mais importante discurso político que o mundo conhece, desde o discurso de Churchill, "Cortina de Ferro", dia 5/3/1946.
Nessa fala, Putin mudou abruptamente as regras do jogo. Antes, o jogo da política internacional era jogado do seguinte modo: políticos faziam discursos para manter viva uma ficção confortável de soberania nacional, mas eram só gás colorido, sem nada a ver com a substância da política internacional; enquanto discursavam, também se envolviam em negociações secretas por trás dos panos, nas quais se fechavam os negócios reais.
Putin até tentou jogar esse jogo, na expectativa de que a Rússia seria tratada como país igual aos demais. Mas essas esperanças deram em nada. E no discurso que fez em Sochi, num círculo de especialistas, o presidente russo fez saber que a brincadeira acabou. Violou explicitamente o tabu ocidental que manda só falar às elites; e falou, por cima das cabeças de clãs da elite e de líderes políticos da elite, diretamente ao povo.
O blogueiro russo chipstone resumiu os pontos principais da fala de Putin, como segue:
1. Rússia não continuará engajar-se em conversas sigilosas e jogadas em tornos de minudências. Mas a Rússia está preparada para conversações e acordos sérios, se promoverem a segurança coletiva; se baseados em justiça e equilíbrio e levarem em conta os interesses de cada lado.
2. Todos os sistemas de segurança global estão hoje em ruínas. Já não há absolutamente qualquer garantia de segurança internacional. E conhece-se a estidade que os destruiu: os EUA.
3. Os construtores da Nova Ordem Mundial construíram um castelo de areia e, como agora se vê, fracassaram. Se uma nova ordem mundial será construída ou não, não cabe à Rússia decidir. Mas, ao mesmo tempo, é decisão que não poderá ser tomada sem a Rússia.
4. Rússia favorece uma abordagem conservadora ao processo de introduzir inovações na ordem social, mas não se opõe a que se investiguem e discutam essas inovações, para determinar se é justificável a introdução de uma ou outra inovação.
5. Rússia não tem intenção de pôr-se a pescar nas águas turvas criadas pelos EUA no processo de expansão eterna de seu "império do caos", nem tem interesse em construir império só seu (não é necessário; os maiores desafios da Rússia são conseguir desenvolver o seu já vastíssimo território). Nem a Rússia tem qualquer interesse em agir como salvador do mundo – como já se viu acontecer no passado.
6. Rússia não tentará reformatar o mundo à sua imagem, mas tampouco admitirá que outros se ponham a reformatar a Rússia à imagem deles. A Rússia não se fechará ao mundo, mas quem tente fechar a Rússia do lado de fora do mundo com certeza colherá tempestades.
7. Rússia não quer que o caos se expanda, não quer guerra e não tem nenhuma intenção de iniciar uma guerra. Contudo, a Rússia hoje vê como quase inevitável a eclosão de uma guerra global; está preparada para ela; e continuará a preparar-se para ela. A Rússia não quer guerras – nem teme guerras.
8. Rússia não tem planos para assumir qualquer papel ativo no sentido de diminuir ou paralisar os que ainda tentam contruir sua Nova Ordem Mundial – até que os esforços deles comecem a pesar contra os interesses russos chaves. Rússia sempre preferirá pôr-se de lado e assistir ao espetáculo deles batendo suas pobres cabeças uns contra outros, enquanto suportarem. Mas os que se dedicam a tentar arrastar a Rússia para esse processo, sem qualquer atenção aos interesses da Rússia, esses receberão lição dura e conhecerão o real significado da dor.
9. Na política externa – e ainda mais na política interna –, o poder da Rússia não dependerá de elites e de seus arranjos por baixo dos panos, mas, sempre, da vontade do povo russo.
A esses nove pontos, gostaria de acrescentar um décimo:
10. Ainda há uma chance para construir uma nova ordem mundial que evitará uma guerra mundial. Mas essa nova ordem mundial tem necessariamente de incluir os EUA –, o que só será admissível se os EUA forem integrados em pés de igualdade a todos os demais estados e povos: submetidos à lei internacional e aos acordos internacionais vigentes; com pleno respeito à soberania de outras nações.
Resumo: acabou a brincadeira. Crianças, devolvam os brinquedos. Chegou a hora de os adultos tomarem decisões. A Rússia está pronta; mas... e o mundo?
_______________________________________
24/10/2014, Vladimir Putin, intervenção/entrevista
11ª sessão do Clube Valdai de Discussão InternacionalPlenária final, Sochi, Rússia (vídeo: duração =2h 38’ 33")
Traduzido da transcrição em inglês, tradução publicada em Rede Castorphoto
(texto aqui cortado-colado para facilitar a referência).
PRESIDENTE DA RÚSSIA VLADIMIR PUTIN: Colegas, senhoras e senhores, amigos, é um prazer recebê-los nessa 11ª reunião do Clube Valdai de Discussão Internacional.
Já se informou que o clube, esse ano, tem novos co-organizadores. Incluem-se organizações russas não governamentais, grupos de especialistas e as principais universidades. A ideia foi também ampliar as discussões para incluir não só questões relacionadas à própria Rússia, mas também da política e da economia globais.
Espero que essas mudanças na organização e no conteúdo ampliem ainda mais a influência do clube como fórum avançado de discussão entre especialistas. Ao mesmo tempo, espero que o ‘espírito Valdai’ permaneça – essa atmosfera aberta e livre, e a possibilidade de se conhecerem as opiniões mais francas e diferentes.
Permitam-me dizer que, quanto a isso, não os decepcionarei e falarei diretamente e francamente. Alguma coisa do que eu diga talvez pareça dura demais, mas se não falamos diretamente e com honestidade, reuniões como essa não fazem muito sentido. Seria então melhor manter apenas convescotes diplomáticos, nos quais ninguém diz coisa alguma que tenha significado real e, recordando as palavras de um famoso diplomata, ocasiões em que se percebe que diplomatas têm línguas para conseguir não dizer a verdade.
Nos reunimos aqui por razões diferentes. Nos reunimos para falar com franqueza. Hoje temos de ser diretos e claros, não para trocar farpas, mas numa tentativa de chegar ao fundo do que realmente se passa no mundo, para tentar compreender por que o mundo vai-se tornando menos seguro e menos previsível, e por que os riscos aumentam por toda a parte à nossa volta.
A discussão hoje tem por tema: Ordem Mundial: Ou novas regras ou vale-tudo. Parece-me que essa fórmula descreve acuradamente o ponto de virada histórico que alcançamos e a escolha que todos enfrentamos. Nada há de novo, é claro, na ideia de que o mundo está em rápida transformação. Sei que os senhores já falaram sobre isso nas discussões de hoje. O mais difícil, com certeza, é não ver as transformações dramáticas pelas quais estamos passando na política e na economia globais, na vida pública e nas tecnologias industriais, informacionais e sociais.
Peço desculpas antecipadas, se acontecer de eu repetir coisas que já tenham sido ditas por outros participantes dessa reunião. É praticamente impossível evitar. Vocês já mantiveram discussões detalhadas, mas eu exponho aqui o meu ponto de vista – que coincidirá com alguns e diferirá de outros pontos de vista.
Ao analisarmos a situação de hoje, não esqueçamos as lições da história. Primeiro de tudo, as mudanças na ordem mundial – e o que vemos hoje são eventos dessa grande escala – sempre vieram acompanhadas, quando não por guerras e conflitos globais, por intensos conflitos de nível local, encadeados. Segundo, a política global é questão, sobretudo, de liderança econômica, questões de guerra e paz e sua dimensão humanitária, incluindo direitos humanos.
O mundo é cheio de contradições. Temos de nos perguntar com franqueza se temos instalada para nossa proteção uma rede confiável de segurança. Infelizmente, não há garantia nem certeza de que o atual sistema de segurança global e regional seja capaz de nos proteger. Esse sistema foi gravemente enfraquecido, fragmentado e deformado. As organizações internacionais e regionais de cooperação política, econômica e cultural passam por tempos muito difíceis.
Sim, muitos dos mecanismos que há para garantir a ordem mundial foram criados há muito tempo, inclusive e principalmente durante o período imediatamente depois da 2ª Guerra Mundial. Permitam-me destacar que a solidez daquele sistema então criado dependia não só do equilíbrio de poder e dos direitos ‘de vitória’ dos países vitoriosos, mas também dependia do fato de que, por aquele sistema, os ‘pais fundadores’ não se respeitavam uns os outros, não tentavam não se atropelar uns os outros; o que faziam sempre era tentar alcançar acordos.
O principal é que esse sistema tem agora de desenvolver-se e, apesar dos seus muitos fracassos, tem de ser capaz, pelo menos, de manter a discussão dos problemas do mundo dentro de certos limites, e tem de regular a intensidade da concorrência normal entre países.
É minha convicção profunda que não podemos tomar esse mecanismo de verificações e contrapesos [orig. checks and balances] que construímos ao longo das últimas décadas, às vezes com muito esforço e dificuldades, e simplesmente rasgá-lo em tiras, sem construir algo que o substitua. Sem algum mecanismo que substitua o que houve, só nos restará, como instrumento, a força bruta.
O que precisamos fazer é levar avante uma reconstrução racional e adaptá-la às novas realidades no sistema das relações internacionais.
Mas os EUA, depois de se autodeclararem vencedores da Guerra Fria, não viram qualquer necessidade desse tipo. Em vez de estabelecer um novo equilíbrio do poder, essencial para manter a ordem e a estabilidade, tiveram iniciativas que lançaram o sistema existente de agudo e profundo desequilíbrio.
A Guerra Fria terminou, mas não terminou com assinatura de um tratado de paz com cláusulas claras e transparentes sobre respeitar regras existentes ou criar novas regras e padrões. Assim se criou a impressão de que os ditos ‘vitoriosos’ na Guerra Fria haviam decidido pressionar os eventos e reformatar o mundo para que atendesse às suas próprias necessidades e interesses. Quando o sistema existente de relações, a lei internacional e os ‘checks and balances’ apareceram como obstáculos na trilha rumo àqueles objetivos, todo o sistema existente foi declarado imprestável, antiquado, exigindo demolição imediata.
Perdoem-me a analogia, mas é como agem os nouveaux riches quando, de repente, põem as mãos numa grande fortuna, nesse caso sob a forma de liderança e dominação mundiais. Em vez de administrar com sabedoria a própria riqueza, também para o próprio benefício deles, parece-me que se puseram a cometer loucuras.
Entramos num período de interpretações divergentes e silêncios deliberados, na política mundial. A lei internacional foi forçada a bater em retirada repetidas vezes, ante o massacre que o niilismo impôs à lei. Objetividade e justiça foram sacrificadas no altar da conveniência política. Interpretações arbitrárias e enviesadas assumiram o lugar das normas legais. Ao mesmo tempo, o controle total sobre a impressa-empresa global de massas tornou possível, sempre que interesse, ‘noticiar’ que o preto seria branco e o branco seria preto.
Numa situação em que se via a dominância por um país e seus aliados, quando não os seus satélites, a busca por soluções globais frequentemente se converteram em tentativa para impor as próprias receitas universais ‘deles’. As ambições daquele grupo cresceram de tal modo que começaram a apresentar as políticas que só eles concebiam nos próprios corredores do próprio poder, como se fossem a visão de toda a comunidade internacional. E não são.
A própria noção de "soberania nacional" tornou-se valor relativo para muitos países. Na essência, o que estava sendo proposto era uma fórmula: quando maior a lealdade que manifestasse àquele único centro mundial de poder, mais a legitimidade de um ou outro regime governante.
Teremos adiante discussão aberta, e terei prazer em responder suas perguntas, mas quero usar também meu direito de fazer perguntas. Ao longo da discussão, todos podem tentar demolir o quadro e o argumento que acabo de construir e propor.
As medidas tomadas contra os que se recusam a submeter-se são bem conhecidas e foram tentadas e testadas muitas vezes. Incluem uso da força, pressão econômica e propaganda, intromissão em assuntos domésticos, e apelos a uma espécie de legitimidade ‘supralegal’, quando interventores ilegais tentam justificar a intervenção ilegal nesse ou naquele conflito, e a derrubada de governos que pareçam inconvenientes aos interventores. Recentemente, já há cada dia mais provas de que a chantagem mais desabrida foi tentada também contra vários governantes e líderes. Não é à toa de aquele ‘grande irmão’ está consumindo bilhões de dólares para manter todo o mundo, inclusive os mais próximos aliados, sob vigilância.
Perguntemo-nos nós mesmos o quanto nos sentimos confortáveis com isso, se nos sentimos seguros, se estamos felizes vivendo nesse mundo, e se se tornou justo e racional? Talvez não haja razão real para nos preocuparmos? Talvez não seja o caso de perguntar perguntas difíceis? Quem sabe a excepcional posição dos EUA e o modo como conduzem a liderança deles seja uma bênção para nós, e a intromissão dos EUA em toda parte pelo mundo está produzindo paz, prosperidade, progresso, crescimento e democracia, e o melhor para nós seria relaxar e gozar essas felicidades?
Permitam-me responder que não, absolutamente não é o caso.
Diktat unilateral e a imposição de modelos produzidos por um, não por muitos, produzem resultado exatamente oposto. Em vez de conciliar os conflitos, aquela atitude só os leva à escalada; em vez de estados soberanos e estáveis, o que vemos é a disseminação de caos crescente, e em vez de democracia, o que se vê é os EUA a darem apoio a gente muito duvidosa, que vai de declarados neofascistas a islamistas radicais.
Por que apoiam esse tipo de gente? Apoiam-nos, porque decidiram usá-los como instrumento ao longo do percurso até conseguirem seus objetivos. Mas queimaram os dedos e recolheram a mão. Nunca canso de me surpreender com o modo como nossos parceiros repetem sempre os mesmos erros e caem sempre na mesma armadilha [(como dizemos em russo: "pisam sempre no mesmo ancinho") [1].
Antes, patrocinaram movimentos islamistas extremistas para que dessem combate à URSS. Aqueles grupos aprenderam a combater no Afeganistão e, adiante, formaram os Talibã e a Al-Qaeda. O ocidente, se não os apoiou, no mínimo fingiu que não via o que se passava, e, pode-se dizer, garantiram informação e apoio político e financeiro aos terroristas internacionais que invadiram a Rússia (não esquecemos!) e países da região da Ásia Central. Só depois dos horrendos atentados terroristas cometidos em solo norte-americano é que os EUA acordaram e viram que o terrorismo é ameaça contra todos. Permitam-me relembrar que a Federação Russa foi o primeiro país a oferecer apoio ao povo norte-americano naquela ocasião, o primeiro a reagir como amigos e parceiros, ante a terrível tragédia do dia 11 de setembro.
Em meus encontros e conversas com líderes norte-americanos e europeus, sempre falo da necessidade de combatermos juntos o terrorismo, como desafio numa escala global. Não podemos nos resignar a aceitar essa ameaça nem podemos dividi-la em diferentes ‘fatias’, usando parâmetros duplos, ambíguos. Nossos parceiros manifestaram concordância e acordo. Mas pouco tempo depois, e lá estávamos, de volta ao ponto de partida. Primeiro, foi a operação militar no Iraque, depois na Líbia, que foi empurrada à beira do colapso total. Por que a Líbia foi empurrada para a situação em que está hoje – um país à beira do esfacelamento e que se tornou campo de treinamento para terroristas?
No caso do Egito, só a determinação e a sabedoria do governo atual salvou essa país árabe crucialmente importante, de mergulhar no caos, com extremistas instalados no poder. Na Síria, como no passado, os EUA e seus aliados começaram a financiar e armar diretamente os rebeldes, permitindo que recrutassem mercenários de vários países. Alguém pode me dizer de onde vem o dinheiro que abastece e mantém aquela gente, as armas que usam, os especialistas militares que mantêm a serviço deles? De onde vem tudo isso? Como é possível que o famoso "ISIL" tenha-se convertido em grupo tão forte, já praticamente um exército completo?
Quanto às fontes de financiamento, hoje, o dinheiro já não vem só de drogas, cuja produção aumentou não apenas alguns poucos pontos percentuais, mas multiplicou-se várias vezes, desde que as forças da coalizão internacional instalaram-se no Afeganistão. Todos aqui sabem disso. Os terroristas também estão vendendo petróleo, com grandes lucros. O petróleo é produzido no território controlado pelos terroristas, que os vendem a preços inferiores aos do mercado, produzem e transportam petróleo. Mas alguém compra esse petróleo, revende esse petróleo e lucra nessa venda, sem sequer considerar o fato de que, assim, está financiando terroristas que, mais cedo ou mais tarde poderão estar atacando e semeando a destruição dentro desses países parceiros-de-terroristas.
Onde recrutam? No Iraque, depois que Saddam Hussein foi derrubado, as instituições do estado, inclusive o exército, estavam em cacos. Naquele momento, nós avisamos que tomassem cuidado, muito cuidado. Vocês estão desempregando milhares de pessoas. O que farão elas? Não esqueçam que essas pessoas foram (corretamente ou erradamente) a elite que governou uma grande potência regional. O que vocês estão fazendo daquelas pessoas?
O resultado? Dezenas de milhares de soldados, oficiais e ativistas do antigo Partido Baath saíram às ruas e, hoje, já se incorporaram às fileiras dos exércitos terroristas. Talvez isso explique por que o chamado Estado Islâmico tornou-se tão eficaz, em termos militares. A Rússia alertou repetidas vezes sobre os perigos de ações militares unilaterais, intervenção nos negócios de estados soberanos e flertar com extremistas e radicais. Insistimos para que os grupos que enfrentam o governo central sírio fossem incluídos nas listas de organizações terroristas. De nada adiantou. Apelamos em vão.
A impressão que temos é que nossos colegas e amigos estão sempre combatendo contra as consequências de suas próprias políticas, aplicando o próprio esforço para dar conta dos riscos que eles próprios criaram; e sempre pagam preço altíssimo.
Colegas, esse período de dominação unipolar demonstrou convincentemente que manter um único centro de poder não torna os processos globais mais administráveis. Ao contrário, esse tipo de construção instável está mostrando a própria incapacidade para combater as ameaças reais, como conflitos regionais, terrorismo, tráfico de drogas, fanatismo religioso, chauvinismo e neonazismo. Ao mesmo tempo, abriu amplamente a estrada para o orgulho nacional inflado, manipulando a opinião pública e deixando que o forte persiga e suprima o fraco.
Essencialmente, o mundo unipolar é simplesmente um meio para justificar a ditadura sobre povos e países. O mundo unipolar tornou-se carga por demais desconfortável, pesada e não administrável, até para o autoproclamado líder! Aqui nessa reunião ouviram-se comentários precisamente nessa direção e concordo com eles. Eis porque entendemos que qualquer tentativa, no atual estágio histórico, para recriar qualquer arremedo de mundo semi-bipolar é modelo conveniente para tentar perpetuar a liderança norte-americana. Não importa quem assuma o lugar central do mal, na propaganda pró-EUA, a URSS continua no mesmo antigo posto de principal adversário. O centro do mal pode ser o Irã, porque busca obter a tecnologia nuclear; ou a China, como maior economia do mundo; ou a Rússia, porque é superpotência nuclear.
Hoje, estamos vendo novos esforços para fragmentar o mundo, traçar novas linhas de divisão, montar coalizões não para construir algo, mas dirigida contra terceiros, qualquer terceiro, criar a imagem de um inimigo como se via acontecer nos anos da Guerra Fria, e declarar-se com direito de liderar, ou de emitir o diktat, se os senhores preferirem. Durante a Guerra Fria, a situação era essa. Todos compreendemos e vemos precisamente isso. Os EUA sempre disseram aos seus aliados: "Temos um inimigo comum, um monstro terrível, o âmago do mal, e nós estamos defendendo vocês, nossos aliados, contra esse monstro, e, assim sendo, temos o direito de comandar vocês, obriga-los a sacrificar seus interesses políticos e econômicos e pagar a parte de vocês dos custos dessa defesa coletiva, mas nós, só nós, ficaremos no comando de tudo, é claro".
Em resumo, vemos hoje tentativas, num mundo novo e em transformação, para reproduzir os modelos familiares da administração global, e tudo isso só para assegurar aos EUA aquela sua posição de excepcionalidade e, com isso, recolher dividendos políticos e econômicos.
Mas essas tentativas são cada vez mais distanciadas e divorciadas da realidade e em contradição com a diversidade do mundo. Passos desse tipo inevitavelmente criam confrontação e contramedidas, e têm efeito contrário aos efeitos buscados. É o que se vê acontecer quando a política põe-se a intrometer-se sem qualquer controle na economia, e a lógica das decisões racionais cede lugar à lógica da confrontação, que sempre fere as posições e interesses econômicos de qualquer um, inclusive os interesses das empresas nacionais.
Projetos econômicos conjuntos e investimentos mútuos objetivamente aproximar os países entre si, e ajudar a alisar o contexto dos problemas que haja nas relações entre os estados. Mas hoje a comunidade empresarial mundial enfrenta pressões sem precedentes, que lhe aplicam os governos ocidentais. De que competência e pragmatismo econômico e empresarial e de que pragmatismo se pode falar, se só se ouvem palavras de ordem do tipo "a pátria-mãe está em perigo", "o mundo livre está ameaçado" e a "democracia está por um fio"?! Por isso, todos têm de se mobilizar. Verdadeira mobilização política é, precisamente, mobilizar-se contra o que se vê hoje, no ocidente.
As sanções já estão minando as bases do comércio mundial, as regras da Organização Mundial do Comércio e o princípio da inviolabilidade da propriedade privada. Os EUA estão atacando violentamente o modelo liberal de globalização baseado em mercados, liberdade e concorrência, o qual, permitam-me relembrar, é modelo que beneficiou principalmente, até hoje, os países ocidentais. Agora, arriscam-se a perder a confiabilidade, como líderes da globalização. Já nos perguntamos a nós mesmos, por que as sanções seriam necessárias? Afinal, a prosperidade dos EUA repousa, em grande parte, sobre a confiança que recebem de investidores e possuidores estrangeiros de dólares e de seguros norte-americanos. Essa confiança está sendo minada e já há sinais hoje de desapontamento quanto aos resultados da globalização, visíveis em vários países.
O bem conhecido precedente caso de Chipre e as sanções politicamente motivadas só fazer reforçar a tendência na direção de todos trabalharem para fortalecer a soberania econômica e financeira de seus próprios países ou de seus grupos regionais, com vistas a encontrarem-se meios para os próprios países protegerem-se contra o risco de pressões externas. Já vimos mais e mais países à procura de se tornarem menos dependentes do dólar, construindo alternativas financeiras e sistemas alternativos de pagamento, além de outras moedas de reserva. Minha opinião é que nossos amigos norte-americanos estão serrando o próprio galho onde pousaram. Não se podem misturar políticas e economia, mas é exatamente o que está acontecendo atualmente. Sempre entendi e ainda entendo que sanções politicamente motivadas são erro grave, que feriria todos. Mas com certeza retornaremos a esse ponto, nas discussões, adiante.
Sabemos como essas decisões foram tomadas e que está pressionando. Mas permitam-me destacar que a Rússia não se deixará envolver, nem se declarará ofendida ou baterá a alguma porta, pedindo esmolas. A Rússia é país autossuficiente. Trabalharemos dentro do ambiente econômico que tomou forma, desenvolveremos a produção e a tecnologia doméstica e agiremos de modo mais decisivo para fazer acontecer a transformação. Pressões externas, como se viram em ocasiões passadas, só farão consolidar nossa sociedade, nos manterão mais alertas e nos levarão a nos concentrar ainda mais em nossas metas de desenvolvimento.
Claro que as sanções são grave incômodo. Eles tentam nos agredir com essas sanções, bloquear nosso desenvolvimento, e nos empurrar para o isolamento político, econômico e cultural; em outras palavras, querem no forçar a viver no atraso. Mas fato é que o mundo hoje é lugar muito diferente do que foi. Não temos absolutamente nenhuma intenção de nos deixar tirar da estrada, de deixar que nos empurrem para algum tipo de desenvolvimento fechado, lutando para sobreviver como autarquia. Sempre estamos abertos ao diálogo, inclusive sobre a normalização de nossas relações políticas e econômicas. Contamos, quanto a isso, com a abordagem e a posição pragmáticas das comunidades de negócios nos principais países.
Há quem esteja dizendo hoje que a Rússia estaria supostamente dando as costas para a Europa – são palavras que provavelmente também se ouviram aqui, nas discussões –, e estaria procurando por novos parceiros comerciais, sobretudo na Ásia. Quero dizer aqui e agora que absolutamente não é o caso. Nossa política ativa na região do Pacífico Asiático não começou ontem nem em resposta às sanções: é uma política que seguimos já há muitos anos. Como muitos outros países, inclusive países ocidentais, vimos que a Ásia está desempenhando papel cada dia maior no mundo, na economia e na política, e simplesmente não nos podemos expor ao risco de não dar atenção a esses desenvolvimentos.
Quero repetir que todos os países do mundo estão fazendo o mesmo, e nós faremos exatamente isso, tanto mais que vasta porção de nosso país é geograficamente parte da Ásia. Por que não poderíamos nos servir de nossas vantagens competitivas nessa área? Não fazê-lo seria sinal de visão extremamente estreita.
Desenvolver laços econômicos com esses países e fazer avançar projetos conjuntos de integração também cria grandes incentivos para nosso desenvolvimento doméstico. As tendências demográficas, econômicas e culturais todas sugerem que a dependência de uma única superpotência diminuirá concretamente. É assunto sobre o qual especialistas europeus e norte-americanos também estão escrevendo e falando.
Talvez desenvolvimentos em política global venham a espelha o desenvolvimento que estamos vendo na economia global, a saber, concorrência intensa por nichos especiais e mudança frequente de líderes em áreas específicas. É inteiramente possível.
Não há dúvidas de que fatores humanitários, como educação, ciência, atenção à saúde e cultura estão desempenhando papel maior na concorrência global. E isso também tem grande impacto nas relações internacionais, inclusive porque esse recurso de "poder suave" [orig. ‘soft power’] dependerá em grande medida de realizações objetivas no desenvolvimento de capital humano, em vez de servir-se só de truques sofisticados de propaganda.
Ao mesmo tempo, a formação de um digamos "mundo policêntrico" (quero também chamar a atenção para isso) em si e por ela mesma não promove nenhuma estabilidade; de fato, o mais provável é que aconteça o exato oposto disso. O objetivo de alcançar o equilíbrio global é converter um quebra cabeças extremamente difícil, em uma equação com várias incógnitas.
Assim sendo, o que o futuro nos reserva, se escolhermos viver não por regras – por mais que as regras sejam estritas e inconvenientes, mas viver absolutamente sem regra alguma? E esse cenário é inteiramente possível; não podemos descarta-lo, dadas as altas tensões que se verificam na situação global. Já se podem fazer muitas predições, levando em conta as tendências atuais, e, infelizmente, nenhuma delas é otimista. Se não construirmos um claro sistema de compromissos e acordos mútuos, se não construirmos os mecanismos para administrar e resolver situações de crise, os sintomas de anarquia global inevitavelmente aumentarão.
Hoje já se vê aumento acentuado na probabilidade de todo um conjunto de conflitos violentos com participação, direta ou indireta, das grandes potências mundiais. E os fatores de risco incluem não só os tradicionais conflitos mundiais, mas também a instabilidade interna em estados separados, especialmente se se fala de nações localizadas nas intersecções de grandes interesses geopolíticos dos estados, ou na fronteira de continentes civilizacionais, culturais, históricos e econômicos.
A Ucrânia, tema que, com certeza foi discutido longamente, e que tornaremos a discutir um pouco mais, é exemplo desse tipo de conflitos que afetam o equilíbrio internacional de poder, e creio que, certamente, não será o último caso. Daqui emana a próxima real ameaça de destruir-se todo o atual sistema de acordos para controle de armas. E esse processo perigoso foi lançado pelos EUA, quando unilateralmente se retirou do Tratado dos Mísseis Antibalísticos [orig. Anti-Ballistic Missile Treaty] em 2002, e, na sequência, pôs-se, como continua até hoje, a só trabalhar para criar um sistema global de mísseis de defesa só deles mesmos.
Colegas e amigos,
Quero destacar que nós não começamos nada disso. Mais uma vez estamos deslizando para tempos nos quais, em vez de equilíbrio de interesses e garantias mútuas, é o medo e o equilíbrio na mútua destruição que impedem as nações de se engalfinharem em conflito direto. Na ausência de instrumentos legais e políticos, as armas voltam a ocupar o foco de toda a agenda global; estão já habituados, onde for e seja pelo meio que for, com ou sem sanções aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU. E se o Conselho de Segurança recusa-se a produzir tais decisões, então o próprio conselho é imediatamente declarado instrumento antiquado e inefetivo.
Muitos estados já não veem qualquer outro modo de proteger a própria soberania, senão produzir suas próprias bombas atômicas. É extremamente perigoso. Insistimos em que é preciso continuar as conversações; não só somos a favor de conversações como, também insistimos em dar continuidade a conversações para redução dos arsenais nucleares. Quanto menos bombas atômicas houver no mundo, melhor. E estamos prontos para as mais sérias, concretas conversações sobre o desarmamento nuclear – mas só para conversações sérias, sem dois pesos e duas medidas conforme o caso, e sem duplifalar.
O que quero dizer com isso? Hoje, muitos tipos de armamento de alta precisão já estão bem próximos de serem armas de destruição em massa, pelas suas capacidades; e no evento de que todos renunciem às armas nucleares ou de redução radical do potencial nuclear, as nações líderes na criação e produção de sistemas de alta precisão terão clara vantagem militar. A paridade estratégica será rompida, o que é praticamente o mesmo que gerar desestabilização. O uso de um chamado primeiro ataque global preventivo pode ficar muito tentador: em resumo, os riscos não diminuem, mas intensificam-se.
Outra óbvia ameaça é a escalada ainda maior dos conflitos étnicos, religiosos e sociais. Esses conflitos são perigosos, não só pelo que são, mas também porque criam em torno deles zonas de anarquia, ausência de lei e caos, locais confortáveis para terroristas e criminosos, nos quais a pirataria, o tráfico de pessoas e o tráfico de droga prosperam.
Vale anotar que, no mesmo momento, nossos colegas tentaram de algum modo administrar esses processos, usar conflitos regionais e montar ‘revoluções coloridas’ para fazer avançar os interesses deles. Mas o gênio escapou da garrafa. É como se os próprios pais de teorias do caos controlado não soubessem o que fazer da própria criatura; reina grande desordem naquelas fileiras.
Acompanhamos bem de perto as discussões, tanto da elite governante quanto da comunidade de especialistas. Basta examinar as manchetes da imprensa-empresa ocidental durante o último ano. A mesma gente é chamada "combatentes da democracia", depois "islamistas"; primeiro escrevem sobre revoluções, depois chamam a coisa de "protestos" e "levantes". O resultado é óbvio: só o caos global prospera e se expande.
Colegas,
dada a situação global, é hora de começar a fixar alguns pontos fundamentais. É tarefa muitíssimo importante e necessária; é muito melhor que voltar cada um para seu corner. Quanto mais todos nós encaremos nossos problemas comuns, mais nos vemos no mesmo barco, digamos assim. E a forma lógica para resolver dificuldades comuns é a cooperação entre nações, sociedades, encontrando respostas coletivas a desafios crescentes, e um mesmo gerenciamento conjunto de riscos. Claro que alguns de nossos parceiros, por alguma razão, só se lembram dessa verdade quando serve aos interesses deles.
A experiência prática mostra que respostas conjuntas a desafios nem sempre servem como cura ou panaceia; e temos de compreender isso. Além do mais, em muitos casos, são coisas difíceis de alcançar; não é fácil superar as diferenças entre interesses nacionais, a subjetividade de diferentes abordagens, particularmente quando se trata de nações com tradições culturais e históricas diferentes. Mas mesmo assim há exemplos de que, com objetivos comuns e agindo-se baseados nos mesmos critérios, alcançamos, juntos, sucesso verdadeiro.
Permitam-me recordar a solução que se deu ao problema das armas químicas na Síria e o diálogo substantivo sobre o programa nuclear iraniano, além de nosso trabalho nas questões da Coreia do Norte (República Popular Democrática da Coreia), que também levaram a alguns resultados positivos. Por que não se poderia usar essa experiência no futuro, para superar desafios locais e globais?
Qual seria a base legal, política e econômica para uma nova ordem mundial que garanta estabilidade e segurança, ao mesmo tempo em que estimule a concorrência saudável, impedindo que se formem novos monopólios que impedem o desenvolvimento? É pouco provável que, nesse momento, alguém possa oferecer soluções já prontas e absolutamente exaustivas. É indispensável trabalhar muito, com a participação de ampla coleção de governos, empresas globais, sociedade civil e plataformas de especialistas como essa nossa.
Mas é óbvio que resultados reais e bem-sucedidos só são possíveis se participantes-chaves dos negócios internacionais puderem aceitar que todos têm de harmonizar alguns interesses básicos, que têm de exercitar uma razoável autocontenção, e dar exemplo de liderança responsável e positiva. Temos de identificar claramente onde terminam as ações unilaterais e temos de aplicar mecanismos multilaterais; e, como parte do movimento para tornar mais efetiva a lei internacional, temos de resolver o dilema entre as ações da comunidade internacional para garantir a segurança e proteger direitos humanos e o princípio da soberania nacional e de não intervenção em assuntos internos de qualquer estado.
As colisões nesses campos levam cada vez mais à interferência externa arbitrária em complexos processos internos e, cada vez mais, provocam perigosos conflitos entre atores-líderes globais. A questão de manter a soberania torna-se crucialmente importante para que se mantenha e fortaleça-se a estabilidade global.
Claro, discutir os critérios para o uso de força externa é extremamente difícil; é praticamente impossível separá-los dos interesses de cada nação. Mas é de longe muito mais perigoso quando não há acordos claros para todos, quando não se fixam com clareza as condições para intervenção necessária e legal.
Acrescento ainda que relações internacionais têm de ser baseadas na lei internacional, a qual, por sua vez, decorre de princípios morais como justiça, igualdade e verdade. Talvez ainda mais importante seja o respeito pelos próprios parceiros e seus interesses. Essa é fórmula óbvia, mas apenas com seguir essa fórmula já se pode mudar radicalmente a situação global.
Tenho certeza de que, se houver vontade, podemos restaurar a efetividade do sistema de instituições internacionais e regionais. Sequer precisamos construir coisa alguma de novo, desde o rascunho; esse não é campo virgem, sobretudo porque as instituições criadas depois da 2ª Guerra Mundial são universais e podem receber substância-conteúdo moderno, adequado para que se consiga administrar a situação atual.
É verdade que melhorando o trabalho da ONU, cuja função central é insubstituível, como também a Organização para Segurança e Cooperação da Europa (OSCE), a qual, ao longo de 40 anos, provou ser mecanismo necessário para garantir a segurança e a cooperação na região euro-atlântica. Devo dizer que mesmo agora, no esforço para resolver a crise no sudeste da Ucrânia, a OSCE desempenha papel muito positivo.
À luz de mudanças fundamentais no ambiente internacional, a crescente impossibilidade de manter os eventos sob controle e as muitas ameaças, precisamos hoje de um novo consenso global de forças responsáveis. Não se trata de alguns simples negócios locais, ou de alguma partilha na esfera de influência, no espírito da diplomacia clássica, ou da total dominação global por alguma força. Entendo que precisamos de uma nova versão do que seja interdependência. Devemos não temê-la. Ao contrário, pode ser um bom instrumento para harmonizar posições.
É uma nova versão particularmente relevante, dado o fortalecimento e o crescimento de algumas regiões do planeta, processo que exige objetivamente a institucionalização desses novos polos, criando poderosas organizações regionais e desenvolvendo regras para a interação entre elas. A cooperação entre esses centros acrescentará muito à estabilidade da segurança, da política e da economia globais. Mas, com vistas a estabelecer esse diálogo, temos de assumir, de início, que todos os centros regionais e os projetos de integração que se formam em torno deles têm de contar com iguais direitos para desenvolverem-se, de modo a que possam complementarem-se uns os outros; e ninguém possa empurrá-los artificialmente para a guerra ou para as oposições. Essas ações destrutivas sempre rompem laços entre os estados, e os próprios estados acabam expostos à ação de forças extremas, ou, mesmo, ao risco de total destruição.
Gostaria de rememorar os eventos do ano passado. Dissemos a nossos parceiros norte-americanos e europeus que decisões apressadas, tomadas nos bastidores – por exemplo, sobre a associação da Ucrânia com a União Europeia –, implicam sérios riscos para a economia. Nem chegamos a falar de política; só falamos de economia, dizendo que tais passos, tomados sem qualquer discussão ou acerto prévio, tocam os interesses de muitas nações, inclusive da Rússia como principal parceiro comercial da Ucrânia, e que era indispensável uma ampla discussão de todas as questões. Sobre discussões amplas e demoradas, gostaria de relembrá-los, por exemplo, que as conversações para o ingresso da Rússia na Organização Mundial do Comércio duraram 19 anos. Foi trabalho muito difícil, mas alcançou-se certo tipo de consenso.
Por que estou falando disso? Porque, ao implementar o projeto de associação da Ucrânia, nossos parceiros nos procuraram com os bens e serviços que têm a vender, pode-se dizer, pela porta dos fundos. Não aceitamos aquele tipo de negociação. Não aceitamos. Ninguém nos consultou sobre coisa alguma. Mantivemos discussões sobre todos os tópicos relacionados à associação da Ucrânia com a União Europeia, discussões persistentes, mas quero ressaltar que tudo isso foi feito de forma civilizada, indicando problemas prováveis, mostrando os argumentos e raciocínios óbvios. Ninguém quis nos ouvir e ninguém queria discutir coisa alguma. Disseram-nos, simplesmente: nada disso é da conta de vocês, ponto, fim das conversações. Em lugar de diálogo amplo mas – chamo a atenção para isso – sempre civilizado, a coisa toda acabou reduzida a derrubarem um governo; jogaram o país no caos, geraram colapso econômico e social, inventaram uma guerra civil com número enorme de mortos.
Por quê? Quando pergunto aos meus colegas "por quê?", já nada têm a dizer, ninguém diz coisa alguma. É isso. Estão todos desentendidos, sem saber o que aconteceu: dizem "aconteceu porque... aconteceu". Se aquelas ações não tivessem sido estimuladas, o que aconteceu não teria acontecido. Afinal (e já falei sobre isso), o ex-presidente ucraniano Yanukovych assinou tudo, aceitou tudo, concordou com tudo. Por que fizeram o que fizeram? Com que objetivo? O que é isso? Será talvez meio civilizado de resolver problemas? Aparentemente, os que vivem de inventar novas "revoluções coloridas" consideram-se, eles mesmos, ‘artistas de gênio’, e simplesmente não conseguem parar de "inventar".
Tenho certeza de que o trabalho de associações integradas, a cooperação de estruturas regionais, devem ser construídas sobre base clara, transparente. O processo de formação da União Econômica Eurasiana [orig.Eurasian Economic Union] é bom exemplo de transparência. Os estados que participam desse projeto informaram seus parceiros com antecedência, especificando os parâmetros de nossa associação, os princípios de seu trabalho, que correspondem completa e totalmente às regras da Organização Mundial do Comércio.
Acrescento que também teríamos acolhido bem o início de diálogo concreto entre a União Eurasiana e a União Europeia. Mas eles nos recusaram tudo isso quase completamente, e não se sabe ainda exatamente por quê. O que haveria aí de tão assustador?
E, claro, com esse trabalho conjunto, seria de supor que precisamos nos engajar em diálogo (já falei várias vezes sobre isso, e recebi respostas de concordância de muitos de nossos parceiros ocidentais, pelo menos na Europa), sobre a necessidade de criarmos um espaço comum para cooperação econômica e humanitária, que se estenda do Atlântico até o Oceano Pacífico.
Colegas, a Rússia fez suas escolhas.
Nossas prioridades são aprimorar ainda mais nossas instituições democráticas e econômicas abertas, crescimento interno acelerado, levando em conta todas as modernas tendências positivas que circulam pelo mundo, e consolidando nossa sociedade baseada em valores tradicionais e no patriotismo.
Temos um agenda pacífica, positiva e orientada para a integração; estamos trabalhando ativamente com nossos colegas na União Econômica Eurasiana, na Organização de Cooperação de Xangai, com o grupo dos países BRICS e com outros parceiros. Nossa agenda visa a desenvolver laços entre governos, não em aumentar a dissociação. Não temos planos para emendar blocos que não possam coexistir nem nos envolveremos em trocas de socos.
Todas as alegações e declarações de que a Rússia estaria tentando criar alguma espécie de império, atropelando a soberania dos países vizinhos são absolutamente sem fundamento.
Quero enfatizar que a Rússia não precisa inventar para ela nenhum tipo de lugar especial no mundo, exclusivo ou excepcional. Respeitamos os interesses dos outros e exigimos, simplesmente, que nossos interesses sejam levados em consideração e que nossa posição seja respeitada.
Estamos todos conscientes de que o mundo entrou numa era de mudanças e transformações globais, quando todos precisamos de um grau específico de cautela, e de muita habilidade para evitar passos irrefletidos. Nos anos depois da Guerra Fria, os que participavam da política global perderam, em certo sentido, esses talentos e capacidades. Agora, temos de despertá-los outra vez. Se não o fizermos, todas as esperanças de desenvolvimento pacífico e estável não passarão de perigosa fantasia, quando o torvelinho que se vê hoje se revelar como um simples prelúdio, antes do colapso da ordem mundial.
Sim, é claro, e já disse várias vezes que construir ordem mundial mais estável é tarefa difícil. Falamos aqui de trabalho longo, demorado, penoso. Conseguimos desenvolver regras para interação depois da 2ª Guerra Mundial, e conseguimos construir um acordo em Helsinki nos anos 1970s. Nosso dever comum é resolver esse desafio fundamental no atual novo estágio de desenvolvimento.
Muito obrigado pela atenção de todos. [...]
VLADIMIR PUTIN (a seguir comenta o que disseram o ex-primeiro ministro da França Dominique de Villepin e o ex-chanceler federal da Áustria, Wolfgang Schuessel):
Começo por dizer que, no geral, concordo com que disseram Wolfgang e Dominique. Apoio integralmente o que disseram. Quero, só, esclarecer alguns pontos.
Entendo que Dominique referiu-se à crise ucraniana como causa da deterioração das relações internacionais. Naturalmente, essa crise é uma das causas, mas não é a causa principal. A crise na Ucrânia é, ela mesma, um resultado de um desequilíbrio nas relações internacionais.
Já disse, na minha fala inicial, por que tudo aquilo está acontecendo, e meus colegas já mencionaram. Posso voltar a isso, se necessário. Mas, basicamente, o que se vê na Ucrânia é o resultado do desequilíbrio nas relações internacionais.
Quanto às questões que Wolfgang expôs, voltaremos a discuti-las: falaremos das eleições, se necessário e sobre o fornecimento de recursos energéticos à Ucrânia e à Europa.
Gostaria, porém, de responder ao que disse Wolfgang, que ele é otimista e que a vida é mais dura para os pessimistas. Já contei aquela velha piada sobre um pessimista e um otimista, mas não posso deixar de repetir aqui.
Os russos temos essa piada, muito antiga sobre pessimistas e otimistas: o pessimista bebe seu conhaque e diz "Fede como percevejo". O otimista cata um percevejo, esmaga o percevejo entre os dedos, cheira e diz: "Sinto um toque de conhaque!". Melhor ser o pessimista que bebe conhaque, que o otimista que cheira percevejos [risos].
Por mais que pareça que os otimistas vivam vida melhor, nosso objetivo comum, de todos, é todos vivermos vida decente (sem jamais beber demais). Por isso é preciso evitar crises, dar jeito conjunto nos desafios e ameaças e construir relações tais, na arena global que nos ajudem a alcançar aqueles objetivos.
Adiante, posso responder a outras coisas mencionadas aqui. Obrigado.
Jornalista Seumas Milne, britânico: Gostaria de fazer duas perguntas numa só. Primeiro, senhor presidente, o senhor acredita que as ações da Rússia na Ucrânia e na Crimeia ao longo dos últimos meses foram reação a regras que estavam sendo desrespeitadas e são exemplo de gestão do estado sem regras? E a outra pergunta é: a Rússia vê essas violações globais de regras como sinal de mudança na posição dela? Já se disse aqui que a Rússia não pode liderar a situação global existente; mas fato é que a Rússia está demonstrando que tem condições para liderar. Como o senhor responde a isso?
VLADIMIR PUTIN: Por favor, preciso que o senhor reformule a segunda parte da pergunta, que não compreendi. Qual, exatamente é sua segunda pergunta?
SEUMAS MILNE: Ouvi aqui que a Rússia não poderia aspirar a posições de liderança no mundo, considerados os efeitos do colapso da União Soviética, mas que pode influenciar qualquer líder que haja. Pergunto: É possível que a Rússia altere sua posição, que mude de foco, como o senhor disse, em relação ao Oriente Médio e a questões conectadas com o programa nuclear iraniano?
VLADIMIR PUTIN: A Rússia jamais alterou sua posição. Somos país que tem, tradicionalmente, foco na cooperação e na busca de soluções conjuntas. Isso, para começar. Em segundo lugar, não temos nenhuma aspiração a qualquer tipo de liderança mundial. A ideia de que a Rússia estaria buscando algum tipo de exclusividade é falsa. Já disse exatamente isso, antes. Não estamos pedindo que nos deem um lugar ao sol; simplesmente partimos da premissa de que todos os participantes nas relações internacionais devem respeitar os interesses dos demais. Estamos prontos a respeitar os interesses de nossos parceiros, mas esperamos que nossos interesses sejam igualmente respeitados.
Não mudamos nossa atitude para o Oriente Médio, para o programa nuclear iraniano, para o conflito da Coreia do Norte, para o combate ao terrorismo e ao crime em geral e para o tráfico de drogas. Jamais mudamos nossas prioridades nem sob a pressão de ações pouco amigáveis empreendidas por nossos parceiros ocidentais, liderados obviamente, nesse caso, pelos EUA. Não mudamos nossas posições, nem sob o peso das sanções.
Contudo, também aqui tudo tem limites. Parto da ideia de que pode ser possível que circunstâncias externas nos forcem a alterar algumas de nossas posições, mas até aqui não houve qualquer situação extrema desse tipo e não temos intenção de mudar coisa alguma. Esse é o primeiro ponto.
O segundo ponto tem a ver com nossas ações na Crimeia. Já falei sobre isso em várias ocasiões, mas, se necessário, posso repetir. Tem a ver com a Parte 2 do Artigo 1º da Carta das Nações Unidas – o direito das nações à autodeterminação. Está lá, bem claro, não só como direito à autodeterminação, mas como objetivo das Nações Unidas. Leia o artigo com atenção.
Não entendo por que as pessoas que vivem na Crimeia não teriam esse direito, exatamente como quem vive, por exemplo, no Kosovo. Também isso já foi mencionado aqui. Por que num caso o branco seria branco e, noutro caso, o branco seria preto? Jamais aceitaremos essenonsense. Isso é uma coisa.
A outra coisa muito importante é algo de que ninguém fala, então, gostaria de chamar a atenção dos senhores. O que aconteceu na Crimeia? Primeiro, houve o golpe antiestado em Kiev. Digam o que disserem, para mim é óbvio: o que houve lá foi golpe armado para tomada do poder.
O golpe foi festejado em muitas partes do mundo, por gente que não percebe a que pode levar aquele golpe; em outras partes do mundo há gente muito preocupada porque o poder foi tomado ali, por extremistas, por nacionalistas de extrema direita, inclusive neonazistas. Muita gente temeu pelo próprio futuro e pelo futuro da família, e reagiram de acordo. Na Crimeia, a população realizou um referendo. Insisto em chamar a atenção dos senhores para isso.
Não fomos nós, na Rússia, que decidimos que haveria referendo. A decisão a favor de haver um referendo foi decisão tomada pela legítima autoridade na Crimeia – o Parlamento da Crimeia, eleito há alguns anos, nos termos da lei que regia o país antes desses graves eventos. O Parlamento é corpo de autoridade legítimo e o Parlamento declarou o referendo, e fez-se o referendo e, baseados nos resultados do referendo, a Crimeia adotou sua declaração de independência, exatamente como fez o Kosovo. Na sequência, a mesma autoridade da Crimeia requereu que o país voltasse a ser incorporado à Federação Russa, aceito como parte do estado russo.
A verdade é que, façam o que fizerem e digam o que disserem, tentando encontrar alguma ilegalidade nesse processo, não encontrarão, porque não há, se se considera o que diz a ONU, que declara (o que já se aplicou, antes, ao Kosovo) que a decisão a favor da autodeterminação não requer aprovação pela autoridade suprema de nenhum país.
Quanto a isso, sempre lembro um dito que se repete muito: "Se é permitido a Júpiter, não é permitido ao boi". Não podemos de modo algum concordar com esse tipo de abordagem. É possível que o boi seja impedido de fazer algo, mas o urso nem perde tempo com pedir permissão. Por aqui vemos o urso como senhor da taiga, e tenho certeza absoluta de que o urso não tem planos para mudar-se para outras áreas climáticas – porque só aqui se sente bem. Mas tampouco deixará que lhe roubem sua taiga. Acho que já está bem claro.
Quais são os problemas da ordem mundial atual? Podemos falar com franqueza, aqui todos somos especialistas. Falamos, falamos, somos como diplomatas. O que aconteceu no mundo? Antes, o sistema era bipolar. Houve o colapso da União Soviética, o poder chamado União Soviética deixou de existir.
Todas as regras que governam as relações internacionais depois da IIª Guerra Mundial foram concebidas para um mundo bipolar. A União Soviética, é verdade, era chamada de "o Alto Volta com mísseis". Talvez fosse, mas havia muitos mísseis. Além do mais, tínhamos políticos brilhantes, feito Nikita Khrushchev, que bateu com o sapato na bancada da ONU. E todo o mundo, a começar pelos EUA e OTAN, pensou: melhor não mexer com esse Nikita... E vai que ele dispara um daqueles mísseis contra nós? E ele tem muitos. Melhor respeitá-lo.
Agora que a União Soviética já não existe, qual a situação e quais as tentações? Já não é preciso levar em consideração o que digam os russos, a Rússia é muito dependente, passou por profunda transformação durante o colapso da União Soviética, e podemos agora fazer o que quisermos, sem dar atenção a leis e regras.
É exatamente o que está acontecendo. Dominique [de Villepin], há pouco, mencionou o Iraque, a Líbia, o Afeganistão e a Iugoslávia. E tudo, aí, foi enfrentado sem desrespeito à lei internacional? Por favor, não nos venham com contos de fadas.
Quer dizer que alguns poderiam ignorar tudo, mas a Rússia não poderia proteger os interesses da população russa na Crimeia e dos falantes de russo? Esqueçam. Nunca será feito desse modo. Não acontecerá.
Gostaria que todos compreendessem bem. Temos de nos livrar dessa tentação e das tentativas para arrumar o mundo como um ou outro bem entenda e prefira. Temos de criar um sistema equilibrado de interesses e relações do qual o mundo muito precisa e que o mundo que há muito espera. Para começar, temos de mostrar algum respeito pelos outros.
Como eu já disse, entendemos que o mundo mudou, e estamos prontos a tomar pé nesse novo mundo e ajustar o novo sistema ao novo mundo, mas nunca, em nenhum caso, nunca, permitiremos que seja quem for ignore completamente os nossos interesses.
Se a Rússia ambiciona assumir o papel de liderança? Não temos nem necessidade nem vontade de sermos superpotência – seria para nós um peso extra. Já falei da taiga: é imensa, ilimitável. Só para desenvolver nosso próprio território, precisamos de todo nosso tempo, nossa energia e nossos recursos.
Não precisamos nos envolver em questões, nos pôr a dar ordens à nossa volta, mas queremos que os outros fiquem fora dos nossos assuntos, e parem de fazer de conta que mandam no planeta inteiro. É só isso. Se há alguma área na qual a Rússia poderia liderar seria essa: afirmar sempre o poder da lei internacional.
PERGUNTA: O processo de paz entre palestinos e israelenses entrou em total colapso. Os EUA jamais deixaram que o quarteto trabalhasse adequadamente. Ao mesmo tempo, o crescimento das colônias ilegais de israelenses em territórios palestinos torna impossível criar um estado palestino. Recentemente, testemunhamos mais um violento ataque dos israelenses contra a Faixa de Gaza. Qual a atitude da Rússia nessa tensa situação no Oriente Médio? E o que o senhor pensa dos desenvolvimentos na Síria?
Uma pergunta para M. Villepin: o senhor falou de humilhação. O que poderia ser mais humilhante que a ocupação que a Palestina sofre já há tantos anos?
VLADIMIR PUTIN: Sobre a Palestina e o conflito israelense. É fácil, para mim, falar sobre isso, porque, primeiro, tenho de dizer e creio que todos podem ver, que nossas relações com Israel transformaram-se muito e seriamente, ao longo da última década. Refiro-me ao fato de que muitas pessoas da extinta União Soviética vivem em Israel e a Rússia não pode ser indiferente ao destino daquelas pessoas. Ao mesmo tempo, temos relações tradicionais com o mundo árabe, especificamente com a Palestina. Importante, também, que a União Soviética – e a Rússia é sucessora legal da URSS – reconheceu o estado palestino. Nada disso foi alterado.
Finalmente, sobre as colônias. Partilhamos a visão dos principais atores nas relações internacionais: entendemos que as colônias são erro grave. Já disse isso aos nossos parceiros israelenses. Entendo que as colônias são obstáculo a relações normais, e espero empenhadamente que tenham fim, e que um acordo pacífico entre as partes possa retomar seu curso.
Partimos do fato de que esse conflito no Oriente Médio é uma das principais causas da desestabilidade, não só na região, mas em todo o mundo. Viver de humilhar os povos que vivam naquela região, ou em qualquer outra parte do mundo, é sempre fonte de desestabilidade e não é atitude que se possa manter por tempo algum. Naturalmente, é preciso encontrar os meios e as medidas que sejam aceitáveis para todos os que participam no processo e vivam naquela área.
É processo muito complicado, mas a Rússia está pronta para usar todos os meios ao seu alcance para que se construa um acordo, inclusive suas boas relações com as partes em conflito.
MIKHAIL POGREBINSKY, DIRETOR do KIEV CENTER FOR POLITICAL AND CONFLICT STUDIES: Sr. Presidente, estou voltando da Ucrânia. Pela primeira vez em 70 anos, a Ucrânia passa por tempos muito difíceis. Minha pergunta tem a ver com a possibilidade de um acordo. Sobre o mesmo assunto, gostaria de voltar um pouco no tempo. O senhor disse que houve um momento em que se discutiu um formato trilateral: Rússia-Ucrânia-Europa. Naquela época, a Europa não concordou, depois do que se passaram vários eventos trágicos, inclusive a perda da Crimeia e a morte de milhares de pessoas.
Recentemente, a Europa, com Ucrânia e Rússia, concordavam que aquele formato, afinal, seria possível. Mais importante, foi aprovada uma Resolução sobre isso. Naquele momento, havia esperança de que a Rússia, com Europa e Ucrânia conseguiriam chegar a algum acordo e a Rússia se converteria em restauradora da paz na Ucrânia. Minha pergunta é: O que aconteceu depois? O que aconteceu entre Moscou e Bruxelas, Moscou e Berlin? – porque, hoje, a situação já parece tão totalmente insana! Ninguém sabe a que isso tudo levará. O que o senhor acha que aconteceu à Europa?
VLADIMIR PUTIN: Você sabe: o que aconteceu é que nada aconteceu. Havia acordos prontos e assinados, mas nenhum dos lados cumpriu integralmente o que prometera. De fato, o total cumprimento de todas as promessas pelos dois lados talvez fosse impossível.
Por exemplo, as unidades do exército ucraniano deveriam deixar alguns locais onde se haviam instalado antes dos acordos de Minsk, e o exército das milícias populares deveriam deixar alguns postos que haviam conquistado antes daqueles acordos. Mas nem o exército ucraniano abandonou as posições que teria de abandonar, nem as milícias populares deixaram os postos que teriam de deixar. No caso das milícias, o argumento foi que não podiam sair e deixar ali as próprias famílias, porque temiam pela segurança delas, de pais, mães, esposas, filhos, netos. Aí está um importante fator humanitário.
Estamos dispostos a fazer todos os esforços para conseguir que os acordos de Minsk possam ser implementados. Aproveito sua pergunta para explicar, mais uma vez, a posição da Rússia: somos a favor de que todas as cláusulas e itens dos acordos de Minsk sejam respeitados pelos dois lados.
Qual é o problema? No meu modo de ver, o principal problema é que não vemos nenhuma disposição, do lado de nossos parceiros em Kiev, a começar pelas autoridades, para resolverem a questão das relações com o sudeste do país, por vias pacíficas, mediante negociações. Vemos sempre a mesma coisa, sob várias formas: sempre a supressão pela força. Tudo começou com Maidan, quando decidiram suprimir Yanukovych pela força. Conseguiram e criaram essa onda de nacionalismo e, na sequência, acabaram criando vários batalhões nacionalistas.
Quando o povo do sudeste da Ucrânia não gostou do que viu, tentaram eleger seus próprios corpos de governo e administração do estado, e foram presos durante a noite e metidos em prisões Kiev. Quando se viu o que estava acontecendo, a população armou-se, em vez de parar, pensar e tentar um diálogo pacífico. E Kiev mandou tropas para lá, com tanques e jatos bombardeiros.
Deve-se dizer que a comunidade global recolheu-se no mais profundo silêncio, como se não esteja vendo tudo isso, como se nem existisse o crime de "uso de força desproporcional". Repentinamente, esqueceram de tudo. Lembro muito bem o frenesi que tomou o planeta quando tivemos uma situação complicada no Cáucaso. Dia e noite, eu só ouvia falar que não podia "usar força desproporcional". E, isso, quando eles já haviam usado bombas de fragmentação e até armas táticas.
Vejam, nas atuais circunstâncias, é muito difícil para nós na Rússia conseguir acordo com o povo do sudeste da Ucrânia, de modo que os leve a cumprir a parte deles nos acordos. Eles sempre nos dizem que as autoridades em Kiev também não estão cumprindo a parte delas nos mesmos acordos.
Mas não há outro meio. Quero destacar que somos a favor da total implementação dos acordos pelas duas partes, e o mais importante que quero deixar claro – e quero que todos ouçam: se, que Deus nos livre, alguém for novamente tentado a usar a força para resolver definitivamente a situação no sudeste da Ucrânia, essa ação levará a situação a impasse completo. (Continua)
blogdoalok
Nenhum comentário:
Postar um comentário