Jacques Sapir, Russeurope, Hypotheses
A evolução das forças políticas na Grã-Bretanha depois do Brexit é sintomática dos problemas que os países da União Europeia enfrentam. O Brexit forçou uma mudança importante na orientação do partido conservador. A virada operada por Theresa May, que pôs fim a 30 anos de tatcherismo, é significativa, porque mostra muito claramente que até os conservadores já sabem dos desastres engendrados pela ideologia neoliberal. O partido trabalhista, que vem de reeleger à presidência, com forte maioria, Jeremy Corbyn, também enfrenta hoje problema equivalente.
Abandonando a ideologia do "neo-Labour" que encarnou em Tony Blair, os trabalhistas têm de repensar completamente seu discurso e suas orientações. A oposição de frações importantes da direção desses dois partidos ao Brexit, a derrota dessas frações no referendo de 23 de junho passado, assinala o rompimento do consenso europeísta e neoliberal que reinava no Reino Unido. Ora, o que hoje se constata são as premissas de movimento semelhante em muitos países da União Europeia, sejam França e Itália, Países Baixos ou a Áustria. É absolutamente necessário extrair dessas premissas todas as lições possíveis, para definir o que possa ser tanto uma estratégia política que rompa com a ideologia neoliberal, como, taticamente, considerar sobre qual arco de forças políticas será possível obter a ruptura inicial, indispensável para que, na sequência, se implantem estratégias alternativas.
Neoliberalismo, o câncer
O neoliberalismo se autoimpôs sobre os escombros do consenso "neo-keynesiano" dos anos 1960 e 1970. Apresenta-se, na realidade, como verdadeira guerra de classes que o pico da pirâmide social move contra a todo o restante que não seja "o pico", o "1%", para retomar expressão que está em moda, "o 1% mais rico" da população"[1]. Diversos trabalhos científicos mostram que a concentração de riquezas agravou-se fortemente nos últimos 30 e poucos anos[2].
Essa guerra de classes tomaria a forma de um desmantelamento do que Christophe Ramaux chamou, corretamente, de "o Estado social"[3]. O neoliberalismo avançou sob a cobertura de um discurso de desmantelamento dos serviços públicos, de mercadização acelerada das atividades humana, e das próprias pessoas, do mito do "trabalhador universal", extraído de seu ambiente social e político, sem identidade, se não em comunidades arcaicas, e por isso mesmo intercambiável à vontade e à mercê da exploração. O mito do livre-comércio benéfico para todos e da "multidão" indiferenciada tiveram parte importante no triunfo do neoliberalismo.
Esse discurso enraizou-se numa apresentação da realidade social que poria em oposição, de um lado os "assistidos", de outro os "trabalhadores", mas no qual a noção de "assistidos" era sempre ampliada. Foi o golpe de mestre, para os ideólogos do neoliberalismo, porque lhes permitiu trabalhar o medo da 'desclassificação' (no sentido de 'medo, entre as massas, de ser arrancado de sua classe'), para quebrar a aliança histórica entre as classes populares e as classes médias[4] – aliança que se constituiu nos anos do pós-guerra.
Essa guerra de classes também conseguiu dividir a grande burguesia, opondo de modo violenta a grande burguesia industrial à grande burguesia financeira. Essa última venceu a disputa, organizando, desde os anos 1980 e 1990, uma miséria de capitais, a qual pôs o capital industrial na dependência do capital financeiro. Uma vez construídos os mecanismos bancários para garantir essa prioridade, organizou-se a favor dos bancos a mais extremada fartura de capitais – pelas políticas chamadas hoje de "políticas de alívio quantitativo" (ing. quantitative easing, QE)" implantadas depois das crises financeiras de 2007-2009.
A mesma guerra de classes conseguiu construir instituições específicas as quais, construídas para esse fim determinado, visam a enraizar o sistema neoliberal no sistema econômico. Essas instituições vão desde os bancos centrais ditos "independentes" (só são independentes do poder político, ainda mais independentes do poder político democrático. São absolutamente dependentes e subalternos em relação ao poder financeiro), até instituições que administram o livre-comércio (a OMC) [5], instituições regionais (como a União Europeia), instituições monetárias como o euro, ou, mais precisamente, a União Econômica e Monetária).
Encarnações da luta contra o neoliberalismo
O combate contra um sistema de dominação casado a uma ideologia passa hoje, prioritariamente, pela luta contra as instituições na qual aquele sistema está encarnado. Bem-entendido, podemos – e devemos – lutar também na esfera ideológica, seja confrontando os variados ideólogos neoliberais, no campo das contradições entre suas 'teorias' e as realidades deles, seja desconstruindo os fundamentos dessa ideologia, suas máscaras e disfarces e suas mentiras. Mas o combate no campo das ideias não basta.
É preciso desmantelar as instituições e as organizações que o neoliberalismo instituiu, para romper o domínio que tem sobre as sociedades. Por que o domínio que têm aquelas instituições produz efeitos ideológicos inegáveis, como se pode constatar no surgimento de uma certa 'esquerda' que se aproxima muito da ideologia neoliberal. Nesse ponto precisamente, as lutas políticas sempre serão mais importantes que as necessárias lutas ideológicas. Sempre chega o momento em que se tem de passar das armas da crítica à crítica pelas armas [armas políticas, se forem possíveis].
Abundam os exemplos de governos que se esvaziaram, ou por falta de apoio popular, depois que, claramente, não ousaram atacar algumas das instituições chaves do neoliberalismo. Pensa-se imediatamente no governo de Tsipras na Grécia, que recebeu apoio massivo no referendo de julho de 2015, mas foi obrigado a capitular sem honra, porque realmente nunca pôs em causa as instituições europeias.
Contudo, é perfeitamente claro que três instituições têm papel decisivo na preservação do cancro neoliberal [na UE]: o euro, a União Europeia e a independência do banco central. No que tenha a ver com o euro, a questão já está exposta: múltiplas vozes combinam-se hoje para dizer que o euro é instituição fundamental do neoliberalismo. Mas deve-se examinar um efeito especial do euro.
Na França, como em numerosos países, o salário médio, sim, nunca parou de aumentar. Mas essa 'média' pouco significa, dado que a distribuição de renda é muito desigual. O salário mediano, quer dizer, o salário que corresponde à divisão entre os 50% mais ricos dos assalariados, e os 50% mais pobres, esse permaneceu estável desde 2000. Significa que na realidade uma maioria de assalariados viu os próprios salários estagnar já há quase 15 anos, enquanto os salários de uma minoria, de 10% a 15% da população, esses, sim, aumentaram fortemente [6]. O euro não teve só efeito recessivo sobre a economia francesa; ele também a deformou. Essa deformação tem nome: financeirização. E a financeirização tem a ver com as políticas neoliberais.
Claro, essas tendências são anteriores ao euro. Já dissemos, a ofensiva neoliberal começou nos anos 1980. Mas o euro deu uma pisada decisiva no acelerador dessa transformação, ao mesmo tempo em que garantia que, enquanto o euro existir, a mudança não voltará ao estado anterior. O euro faz o papel de um cadeado que impede o sistema econômico de sair da financeirização. De fato, estabeleceu a preeminência dos bancos (e dos banqueiros) na sociedade francesa; pôs as lógicas da produção ao serviço dessa finança e desses financistas.
Compreende-se assim por que todo esse belo mundo reúne-se para comungar na adoração desse novo Tosão de Ouro, lutará com unhas e dentes para manter o sistema do qual lucra, usará todos os artifícios políticos para conservar essa situação da qual tira o maior proveito. Compreende-se que, se se sai do euro, cada governo reencontrará a liberdade para executar a própria política monetária. Significa voltar à independência do banco central (na França, o Banque de France). Mas uma saída do euro que venha acompanhada de um efetivo controle sobre o Banque de France conduzirá a imensa crise com a União Europeia.
A UE ameaçará a França por várias vias, ou qualquer outro país que queira romper com o neoliberalismo. Por isso é preciso estar pronto para explodir a UE e o mercado único, porque a saída de um país como a França significará na realidade o fim da União Europeia.
As escolhas estratégicas
Assim chegamos diante do problema das estratégicas depois da ruptura. Não da própria ruptura que se impõe. Mas o que faremos depois? Estamos aqui ante uma questão da qual a arte militar cuida já há um século: como desarticular o dispositivo inimigo, depois de furar as linhas de defesa. Porque a luta para sair do euro, para reconquistar o controle sobre o Banque de France e encostar a UE na parede é semelhante ao esforço necessário para quebrar a linha de defesa do adversário. Mas uma vez quebrada aquela linha, é imperativo desarticular o dispositivo, ou o inimigo reconstituirá nova linha de defesa um pouco mais para trás. De fato, a estratégica sempre visa a um objetivo político, não militar. É a arte operacional a que cuida da passagem do momento da ruptura ao momento de desarticular o adversário[7]. Em política, o equivalente da arte operacional são as estratégias com as quais nos armamos para alcançar resultados duradouros.
Pelo menos três estratégias farão a oposição, depois de a defesa ter sido perfurada. A primeira tentará fazer "depois" como fazia "antes", procurando simplesmente utilizar a ruptura para pôr em prática uma estratégia de massiva redução de custos. Deixará o setor produtivo sem qualquer orientação. Vale dizer desde já que essa estratégia pouco nos interessa e, principalmente, tem pouco futuro. É estratégia pela qual a ruptura não leva a questionar o quadro neoliberal.
Uma segunda estratégia buscará reconstruir uma França (ou qualquer outro país) industrial, mas servindo-se prioritariamente da aparente baixa nos custos engendrada pela depreciação da moeda. É estratégia que "brigará" com o neoliberalismo, que buscará utilizar suas falhas, mas que tampouco porá em questão o neoliberalismo. Essa estratégia aplicaria as medidas expressas na "lei trabalhista" e desmantelaria um pouco mais a legislação; prosseguirá nas políticas de desmantelamento dos serviços públicos (educação, saúde, serviços territoriais) que foram criados por vários governos, de Chirac a Hollande, passando por Sarkozy. Essa estratégia, além do mais, é coerente com uma redução nos salários reais e com a concentração na faixa médio-baixa, para a indústria francesa. Essa estratégia tem um espaço de sucesso, se se foca nos setores nos quais a França tem vantagens no curto prazo. Mas esse sucesso, com criação líquida de empregos da ordem de 1 milhão, 1,5 milhão, nos porá definitivamente a reboque de um país como a Alemanha. Essa estratégia implica que não se explorarão as vantagens da ruptura.
Uma terceira estratégia utilizará as vantagens da ruptura contra os ganhos em competitividade obtidos pela ruptura, para pôr em marcha uma ambiciosa política de investimento, tanto no setor produtivo como nos serviços públicos. Essa estratégia visará a aumentar a potência do aparelho produtor, tanto direta como indireta, mediante uma mão-de-obra mais bem educada e mais bem formada; com a disseminação de um sentimento de segurança entre a população que lhe permitirá concentrar-se no trabalho, mas também porque porá à disposição boa quantidade de dinheiro barato acessível às empresas nascentes, para que se desenvolvam rapidamente.
Ela explorará sistematicamente os setores de produção que tenham rendimentos crescentes, e fará mudança radical no quadro de vida, com transição energética e inscrição obrigatória de atenção ao meio ambiente em toda e qualquer atividade. Esta estratégia implicará uma concentração de recursos financeiros a serviço da política de desenvolvimento, com uma mudança de estatuto do Banque de France que consolidaria a nova posição de controlado, mudança profunda do sistema bancário e de poupança, e uma proteção quanto ao fluxo de capitais de curto e curtíssimo prazo. Essa estratégia visaria a alinhavar um "bloco histórico" no qual se aproximariam as classes populares e médias contra os famosos "1%". Ela seria acompanhada por reformas políticas para reforçar a democracia, descartelizar as empresas de mídia e 'comunicação' (as quais são hoje um obstáculo na trilha da democratização) e devolver o significado à ação coletiva.
Por essa estratégia pode-se fixar como objetivo razoável a criação líquida de 2,5 a 3,5 milhões de empregos nos 5 primeiros anos de aplicação, e de 1,5 a 3 milhões para os cinco anos seguintes. Essa estratégia porém porá a França numa situação internacional conflitual, dado que o neoliberalismo encarna-se nas políticas de Estado, e a política internacional da França terá de, mediante os diversos círculos possíveis de alianças, dar-se a ela mesma o objetivo de garantir a própria liberdade para agir internamente.
As estratégias segunda e terceira dividem-se por sua vez em várias subestratégias, conforme e quanto se leve em conta, em cada uma dessas estratégias, a dimensão social. Não é impossível pensar que os governos talvez hesitem entre as duas, porque essas estratégias, sem serem similares, são relativamente próximas em vários pontos. Pode ser o caso do governo de Teresa May que sinalizou vontade de encaminhar-se para a terceira estratégia, mas cujas hesitações atuais podem conduzi-lo na direção da segunda. Daí se pode deduzir a importância da pressão de forças políticas, sejam aliadas sejam de oposição, sobre um governo obrigado a fazer escolhas críticas cruciais, com pontos de inflexão que podem fazer oscilar a trajetória do país, seja na direção da segunda seja na da terceira.
A tática da Ruptura
Resta por discutir a questão das condição nas quais pode dar-se a necessária ruptura. É questão de pura tática.
É hoje claro que os que – comprados ou por convicção – põem-se como defensores do neoliberalismo formam um frontde combate. Essa frente, na realidade dos combates políticos, será marcada por conexão obcecada com o euro, as instituições da União Europeia tais como existem e com a independência dos bancos centrais. Essa frente já extravasou fronteiras políticas tradicionais. Reúne um François Hollande e um Alain Juppé, um Nicolas Sarkozy e um Emmanuel Macron. Essa frente vai portanto do Partido "S" (ou de grande parte dele) aos "Republicanos" (ou de parte deles). Veem-se pontos de acordo. A política social (a "Loi Travail" é lei profundamente de direita) ou a política educacional de Mme.Najat Valaud-Belkacem só fazem continuar (piorada) a política de Luc Chatel, vocês conhecem, o ancião de L'Oreal que fazia o cabelo com programas de história... Uns e outros estão a postos para "salvar o euro" até que não reste nenhum trabalhador francês.
É portando claro que a ruptura só poderá ocorrer se as forças da alternativa soberanista concentram seus golpes contra essa frente do neoliberalismo. O momento aqui é histórico. Compreende-se que alguns sejam desestabilizados. Mas como já escrevi sobre o Brexit, quando uma porta tem de ser aberta, pouco importa quem empurre a porta. Não significa que as divergências políticas no seio do campo "soberanista" tenham de ser apagadas nesse combate. Principalmente porque essas divergências tomarão outra direção quando for o caso de escolher as estratégias para o pós-ruptura. Mas aqui é preciso demarcar a distinção entre o político e a política [orig. il faut ici faire la différence entre le politique et lapolitique].
No primeiro caso, quando se trata do político, fala-se de um enfrentamento amigos x inimigos. Trata-se claramente disso, na luta por uma ruptura decisiva com o neoliberalismo. No segundo caso, quando se trata da política, trata-se de uma luta entre opções diferentes, estratégias diferentes, visões diferentes do futuro dos franceses, mas todas elas se situam num mesmo quadro comum: o quadro de uma ruptura com o neoliberalismo.
Convém pois ser coerente tanto na escolha de uma tática, como na escolha de uma estratégia. Entre os partidários da ruptura, encontramos a esquerda republicana francesa, mas também – como seria de esperar – o gaullisme social e o populismo que se nutre das traições da "esquerda" associada ao neoliberalismo e da direita que definitivamente escolheu o lado do dinheiro. Essas correntes não trazem necessariamente a mesma estratégia, mas partilham a mesma constatação sobre a necessidade de romper com o neoliberalismo. Não devem portanto esquecer onde se encontra seu verdadeiro inimigo.*****
Notas
[1] PIKETTY, Thomas, et Emmanuel Saez. 2003. "Income Inequality in the United States, 1913–1998." Quarterly Journal of Economics, 118(1) : 1–39. PIKETTY, Thomas, et Emmanuel Saez. 2006. "The Evolution of Top Incomes : A Historical and International Perspective." American Economic Review, 96(2) : 200–205.
[2] SAEZ, Emmanuel. 2006. "Income and Wealth Concentration in a Historical and International Perspective." In Public Policy and the Income Distribution, ed. Alan J. Auerbach, David Card, et John M. Quigley, 221–58. New York : Russell Sage Foundation.
[3] RAMAUX C., L’Etat Social, Paris, Milles et Une Nuit, 2012.
[4] Ver EHRENREICH B., Fear of Falling, New York, Harper and Collins, 1990.
[5] SAPIR J., La Démondialisation, Paris, Le Seuil, 2011.
[6] SAPIR J., "From Financial Crisis to Turning Point. How the US ‘Subprime Crisis’ turned into a worldwide One and Will Change the World Economy" in Internationale Politik und Gesellschaft, n°1/2009, pp. 27-44. Ver também Sapir J., "Global finance in Crisis : a provisional account of the ‘subprime’ crisis and how we got into it", Real-world economics review, issue n° 46, 18 May 2008, URL http://www.paecon.net/PAEReview/issue46/Sapir46.pdf
[7] Ver SAPIR J. La Mandchourie Oubliée – Grandeur et démesure de l’Art de la Guerre soviétique, Éditions du Rocher, Paris-Monaco, maio 1996
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