Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Há cerca de dez, doze anos, estava num auditório em Cape Town, assistindo a um painel sobre questões de Direito Constitucional na nova África do Sul. Um dos painelistas, juiz Dikgang Moseneke, falou de modo particularmente impressionante, e lembro a trajetória de vida dele – absolutamente fora do comum, se comparada à de qualquer dos juízes da Suprema Corte dos EUA.
Moseneke alistou-se no Partido do Congresso Pan-Africano, de Mandella aos 14 anos. Um ano depois foi preso e, na sequência, condenado por participar de atividades anti-apartheid. Cumpriu sentença de dez anos na prisão de Robben Island. Ali conheceu Mandella e obteve vários diplomas universitários. Mais tarde, formou-se também em Direito. Teve carreira brilhantíssima como advogado, até ser indicado para a Corte Constitucional da África do Sul – a mais alta de seu país. E lá trabalhou até aposentar-se em 2016.
Não cheguei a estudar detalhadamente o currículo de Moseneke como advogado e juiz. Só conheço dele o que se lê na Wikipedia, em verbete no qual é descrito como "mente brilhante de julgador" e "jurista de pensamento independente e criativo". Mas lembro de ter pensado à época que, se a experiência da cadeia tivesse algo a ver com fazer nascer juízes "de pensamento independente e criativo", a simples condenação já tornaria impossível haver juiz desse tipo, no contexto dos EUA [no Brasil, então, parece que ter "pensamento independente e criativo" só é admitido na direção de lesar a justiça, por exemplo, quando o procurador-geral da República Roberto Gurgel estupra a Teoria do Domínio do Fato e, um ano depois, o ministro Joaquim Barbosa areestupra, no esforço doentio, ambos, para condenarem o ministro José Dirceu; e a juíza Rosa Weber condena sem prova o mesmo ministro José Dirceu, só 'porque' elaacha que alguma 'literatura' autoriza(ria) alguém a condenar sem provas (NTs)].
O sistema judicial nos EUA é construído para impedir a entrada na magistratura de quem tenha tido experiência direta do lado errado da lei. Ou, pelo que se tem visto em anos recentes, que algum dia tenha feito qualquer coisa remotamente controversa.
Os defeitos de Merrick Garland
Estava pensando outro dia sobre a indicação que Obama fez para a Suprema Corte, de Merrick Garland, e aquele painel a que assisti na África do Sul voltou-me à mente. A lembrança ajudou-me a entender exatamente o que me parece tão completamente errado em Obama ter escolhido Merrick Garland, para ocupar o lugar do falecido juiz Antonin Scalia – e, em sentido mais amplo, um ponto que jamais se discute nos debates políticos, sobre quem deve ser juiz da Suprema Corte.
Obama dá a impressão de viver aos murros contra a própria sombra – e aquela coisa doentia, meio simplória, em minha modesta opinião, de ele tanto insistir em 'respeitar' o bipartidarismo – levou-o a errar gravemente na indicação desse novo juiz.
E não se diga que eu estaria analisando a nomeação sob a lente de alguma política de identidade, sempre presente na avaliação dessas nomeações. Quando se consideram os juízes da Suprema Corte – todos sempre com currículos assemelhados e quase idêntica experiência de vida – tendemos a usar aspectos da identidade de homens e mulheres, como se pudessem substituir a real experiência de vida.
Os atuais juízes da Suprema Corte dos EUA não têm nem vestígio da experiência (para nem falar de alguma sensibilidade progressista) que caracterizou vários ex-juízes daquela corte (com exceção, talvez, da juíza Ruth Bader Ginsburg, que julgou com sucesso vários importantes casos de direitos de gênero).
Mas onde está(ria) hoje nosso Louis Brandeis – chamado de "O Advogado do Povo", o primeiro a usar ciências em geral e ciências sociais em especial em seu "Brandeis brief", e que tantas vezes atuou na promoção de causas legais progressistas que desafiaram o poder de monopólios e grandes empresas e sempre cuidou de fazer cumprir e respeitar leis sobre a segurança dos trabalhadores e leis pró-trabalho?!
E nosso Thurgood Marshall, que tão brilhantemente fez valer a justiça em casos em que se disputavam direitos civis, o mais famoso dos quais foi Brown v. Board of Education.
Merrick Garland é, claro, intelectualmente dotado para atuar na Suprema Corte (mas voltarei a esses dotes, adiante). Formou-se como primeiro aluno de sua classe em Harvard College, antes de passar para a Faculdade de Direito de Harvard. Mas aos 63 anos é velho demais, mole demais, em tudo igual aos demais juízes da Suprema Corte dos EUA, para que se o possa considerar boa escolha para aquele posto. Com "velho demais" não estou dizendo que seja intelectualmente velho demais. Mas os presidentes têm poucas chances para modelar o corpo de juízes da Suprema Corte, e Obama teria de ter escolhido alguém mais jovem, cuja influência se pudesse esperar mais duradoura.
Os Democratas evidentemente pensaram que o Senado não aprovar o nome de Garland – apesar de ser juiz suficientemente retrógrado para agradar até o mais retrógrado dos Republicanos – causaria problemas à campanha eleitoral republicana.
Bem, segundo o jornal Politico, não causou:
"De Pennsylvania a New Hampshire e Arizona, candidatos Democratas ao Senado só fazem martelar contra os Republicanos do Senado, porque teriam 'ignorado' a indicação de Garland; servem-se de um discurso "Façam o trabalho de vocês!" que, os Democratas supõem, mobilizaria os eleitores indecisos. Em eventos bem divulgados, ativistas apertaram os senadores Republicanos nos seus estados natais.
"Ouvi praticamente nada sobre isso" – disse o senador Roy Blunt, do Missouri, que está em campanha de reeleição contra um inesperadamente promissor candidato Democrata, Jason Kander. – "Estive com milhares de pessoas. Fizemos 106 eventos, todos para muita gente, e, que me lembre, só uma pessoa mencionou Merrick Garland."
Como se Obama só estivesse interessado em marcar um ponto, sem nem pensar sobre o que, exatamente, estaria ganhando ou perdendo.
Se Obama tivesse escolhido nome menos 'sem sal' e 'sem lado', talvez tivesse galvanizado algum setor da base dos Democratas, para que pressionasse o Senado na direção de aprovar seu indicado. Mas absolutamente ninguém parece interessado em agitar para obter do Senado a confirmação do nome de Garland.
Fato é que os eleitores simplesmente não dão qualquer sinal de interesse ou preocupação com a cadeira vazia na Suprema Corte, especialmente se se compara esse 'problema' com outros que atormentam os norte-americanos. No contexto de uma discussão sobre uma disputa em curso para o Senado, Scott Jennings, estrategista dos Republicanos e que dirigiu um super PAC de apoio a McConnell em 2014, disse que "a ideia de que os eleitores fariam de uma cadeira vazia na Suprema Corte questão mais importante, numa eleição para o Senado, que a falta de empregos ou de atenção à saúde já era cômica, ridícula, no dia em que a inventaram" (novamente, segundo Politico).
O que acontece daqui em diante
Por essas e outras, tudo faz crer que a indicação de Garland morreu no ovo. Dificilmente será ressuscitada, porque Garland jamais seria escolha ideal para nenhum dos candidatos dos dois partidos; parece ser candidato que só Obama apreciaria. Outra vez, cito Politico:
Chuck Schumer estava eufórico, exuberante, no início, porque estava convencido de que tinha um tema 'matador' – disse o senador Roger Wicker do Mississipi e presidente do Comitê Nacional Republicano Senatorial. "Acho que o povo norte-americano está confortável com a ideia de deixar que o eleitorado se manifeste em novembro sobre o rumo da Suprema Corte. Assim sendo, como tema de campanha, acho que Garland é um fracasso.
Eis aqui algo sobre o que o próximo presidente dos EUA deve pensar. Apesar de algumas diferenças de gênero ou de contexto étnico, os juízes da Suprema Corte partilham, todos, uma muito marcada característica.
Faculdade de Direito
Há alguma diversidade, pouca, nas faculdades de Direito nas quais se formaram os atuais membros da Corte Suprema. Três juízes vêm da Faculdade de Direito de Yale (Alito, Sotomayor, Thomas); cinco, de Harvard (Breyer, Ginsburg, Kagan, Kennedy, Roberts, embora Ginsburg tenha-se transferido para Columbia no último ano, para acompanhar o marido que estava trabalhando em New York). E é tudo.
É fato notável – sugerindo que o processo de seleção não tem alcance tão amplo quanto se deve desejar. Não acho que haja alguma senha secreta que só se obtenha na Harvard Square ou em New Haven e que seja indispensável para chegar à Suprema Corte de Justiça dos EUA. E há muitas excelentes faculdades de Direito pelo país, nas quais se formam muitos e muitos excelentes advogados.
Interessante, mas os presidentes Richard Nixon e Ronald Reagan, com suas fortes conexões com a Califórnia, fizeram escolhas um pouco mais diversificadas em matéria de faculdade de Direito onde tivessem estudado os seus indicados. Embora na maior parte Nixon e Reagan tenham escolhido candidatos de Harvard – Powell e Blackmun no caso de Nixon, que, contudo, também indicou Burger, formado pelo então chamado St. Paul College of Law – e Kennedy e Scalia no caso de Reagan.
Mas Nixon e Reagan a certa altura saíram do brete e indicaram dois nomes que não frequentaram nem Harvard nem Yale. Rehnquist (Nixon) e O’Connor (Reagan) – ambos formados pela Stanford Law School, embora, de fato, da mesma classe. Nixon com certeza sabia do significado de classe de cada faculdade em cada caso. Se bem me lembro, Nixon sempre lastimou que a falta de dinheiro o tivesse impedido de se matricular na Harvard Law School, para a qual fora aceito (acabou por cursar a universidade Duke).
Mas não irei ao ponto a que chegou o senador Roman Hruska, que defendeu um indicado de Nixon, G. Harrold Cardwell (acabou por não ser aprovado), que havia sido descrito como medíocre: "Mesmo que seja medíocre, o que não falta por aí são juízes, advogados e gente muito medíocre. Todos merecem ser representados, por que não? Por que não lhes assegurar uma pequena chance? Nenhuma Suprema Corte pode ser formada só de Brandeises, Frankfurters e Cardozos."
Como se sabe, esse argumento foi ridicularizado em incontáveis frentes. Mas há nele uma pequena noz de algo interessante. Permitam-me revelar um segredinho: apesar da reputação impressionante, o Direito Constitucional não inclui quaisquer dificuldades intelectuais insuperáveis. Observem que eu falo de dificuldades intelectuais. Claro que as decisões que a Suprema Corte tem de tomar são difíceis, claro, quase sempre porque obrigam a considerações que têm de ser finamente equilibradas, considerados os méritos dos dois lados de qualquer causa.
De fato, as questões que chegam à Suprema Corte envolvem muitas áreas do Direito. Mas os elementos constitucionais podem ser compreendidos corretamente, sem maior dificuldade, por qualquer advogado competente. Direito Tributário, por exemplo, isso, sim, é difícil (pelo menos era, no meu tempo de faculdade de Direito, quando trabalhava para um grande escritório de advocacia & polainas. Advogados em geral tendem a considerar os colegas tributaristas como os mais brilhantemente dotados de inteligência, operantes num ramo que exige muito, em termos intelectuais). Poucas são as mentes realmente capazes de fazer contribuição não trivial na área tributária. Mas tergiverso.
O que quero dizer é bem simples: quem quer que lhe diga que só seres superiormente dotados têm direito de assentar-se na Suprema Corte não sabe o que diz, ou vive de bajulação. Há milhares de advogados que dariam excelentes juízes da Suprema Corte, a maioria dos quais jamais puseram os pés em Harvard ou Yale. Assim sendo, por que não se vê ninguém desse grupo nomeado para aqueles bons empregos na Suprema Corte?
Religião
Outra coisa que observei, quando pesquisava para esse artigo, é que são poucas as religiões representadas na Suprema Corte, o que com certeza não reflete o quadro da população dos EUA. Três dos membros atuais são judeus (Breyer, Ginsburg, Kagan), cinco são Católicos Romanos (Alito, Kennedy, Roberts, Sotomayor e Thomas), e o recentemente falecido juiz Scalia também era católico. Não estou de modo algum sugerindo que se deve fazer algum tipo de teste religioso para ascender à Suprema Corte – mas, simplesmente, achei interessante que tão poucas religiões tenham 'chegado lá'.
O que eu realmente gostaria de ver considerado, na próxima indicação para a Suprema Corte dos EUA
O processo de seleção de juízes da Suprema Corte é altamente politizado, e já é convencionado que os indicados não discutem nada que tenha qualquer remota, que seja, importância, durante o processo de aprovação/rejeição. Para alguns que se prepararam ao longo de toda uma vida para a posição, essa convenção significa jamais ter tomado ou vir a tomar qualquer tipo de posição controversa sobre coisa alguma, nunca, ao longo de toda uma carreira, seja no governo, seja na academia – e nunca, absolutamente, ter feito coisa alguma que alguém possa considerar radical, ou tomado qualquer tipo de decisão que, seja como for, termine em cadeia.
Mas gostaria que todos prestassem mais atenção ao tipo de experiência que se tem de exigir de um juiz, para bom exercício de seu trabalho. Quem sabe, preferir candidatos que tenham algum dia trabalhado a favor do interesse público, que foram defensores públicos, que serviram em organizações sociais e, muito especialmente, que tenham defendidowhistleblowers – gente como Chelsea Manning, Edward Snowden e Julien Assange, que expuseram e continuam a expor a própria vida e a própria liberdade a riscos terríveis, para levar informação relevante aos cidadãos. Por que parece que só se consideram acadêmicos e advogados de empresas ou profissionais dos meandros do Departamento de Justiça, quando se trata de indicar nomes para compor a Suprema Corte dos EUA?
Acho ainda que é mais que hora de declarar impedido/impedida de ter assento à Suprema Corte – só por um tempo, talvez – qualquer homem ou mulher portador de diploma da Faculdade de Direito de Harvard ou de Yale.
Blog do Alok,/a>
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