Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo coletivo da vila vudu
Então ali, no coração de Bali, ainda fascinado depois de uma conversa séria com um dukun — mestre espiritual —, a ideia surgiu-me: aqui deve ser a nova Ialta, perfeito cenário para uma reunião Trump-Xi-Putin que fixe os parâmetros adiante para o sempre mutável Novo Grande Jogo na Eurásia.
Na cultura balinesa, sekala é o que nossos sentidos podem discernir. Niskala é o que não pode ser sentido diretamente, só pode ser "sugerido". Mas não se demarcam diferenças entre o secular e o sobrenatural. Mudanças geopolíticas massivas à frente não poderiam estar mais envoltas em niskala.
Prisioneiro da vertiginosa velocidade do aqui e agora, o Ocidente ainda tem muito a aprender de uma cultura altamente evoluída que prosperou há 5 mil anos ao longo das margens do rio Sindhu — agora, Indus — em terras que atualmente são o Paquistão, e migrou do império Majapahit em Java para Bali, no século 14, sob pressão do Islã rampante.
Na concepção hindu-balinesa da estrutura cósmica, o homem é uma espécie de modelo em escala do universo. A ordem é personificada pelos deuses; a desordem, pelos demônios terrestres. Trata-se sempre de dharma e adharma. No que tenha a ver com o Ocidente,adharma reina sem rival.
Na filosofia religiosa hindu-balinesa, há um contrapeso que equilibra cada uma e todas as forças positivas, uma força negativa. As duas são inseparáveis – coexistindo em equilíbrio dinâmico. O dualismo ocidental é tão sem sofisticação, comparado a isso.
No Suthasoma — um grande poema épico budista mahayana composto na região central de Java, ao tempo em que o budismo misturava-se alegremente com o hinduísmo sivaísta[1] —um verso destaca-se: Bhineka tunggal ika ("é diferente, mas é um").
É o lema da Indonésia, impresso no escudo do país, sob o pássaro dourado mítico Garuda –, uma mensagem de unidade, como o lema norte-americano e pluribus unum [lat. "De todos, um"]. Hoje, o lema da Indonésia parece mais um presságio da integração eurasiana costurada pelas Novas Rotas da Seda. Não por acaso, Xi Jinping lançou oficialmente na Indonésia, em 2013, a Rota Marítima da Seda.
Um homem que passa lança sua sombra sobre o mapa que ilustra o megaprojeto da China "Um Cinturão, Uma Estrada", no Fórum Financeiro Asiático emHong Kong, China, dia 18/1/2016. Foto: Reuters/Bobby Yip
Com a era Trump marcada para começar daqui a dias, nossa conjuntura geopolítica parece ser e a sentimos como um Wayang kulit —teatro de sombras balinês – tamanho gigante.
A origem histórica do teatro de sombras está muito provavelmente na Índia, embora exista por toda a Ásia. Bem e mal coexistem nas peças do teatro de sombras – mas o hinduísmo procura apresentar a luta como uma espécie de parceria não ortodoxa.
Kulit significa pele, cobertura. Wayang é o boneco, feito de couro de vaca, pintado e montado em varetas que o dalang — o mestre dos bonecos – manipula à vontade.
Cada 'peça' do Wayang kulit é uma história contada por um dalang mediante diferentes vozes (que ele tem de encarnar), sombras sobre uma tela e música para criar diferentes atmosferas. O dalang — uma espécie de sacerdote — faz todos os personagens e têm de conhecer de cor as histórias que narra.
No ocidente, só uns poucos seletos qualificam-se como dalangs — especialmente na esfera geopolítica. Os reais dalangs são completamente invisíveis – mergulhados em profundezas de niskala. Mas há os emissários deles, visíveis, hábeis no uso das mídias, dalangs tratados como deuses pelas mídia-empresas. Em um minuto de New York voltamos a eles.
O touro branco e a moça da Ásia
Compare-se o teatro de sombra balinês – que manifesta sekala e sobretudo niskala — com a abordagem made-in Ocidente, o fio de Ariadne que talvez possa, talvez, extrair-nos do atual labirinto geopolítico, valendo-se de uma mercadoria super super mal usada nesses tempos: lógica.
Primeiro, voltando a fita: voltemos para o nascimento do ocidente, na Europa. Reza a lenda que um belo dia Zeus pôs seu olhar errante numa moça de grandes olhos brilhantes: Europa. Pouco depois, numa praia da costa fenícia, um extraordinário touro branco apareceu. Europa, intrigada, aproximou-se e começou a acariciar o touro, que, claro, era Zeus disfarçado. O touro então anexou a Europa e disparou para o mar.
Zeus teve três filhos com Europa — e deixou com ela um dardo que jamais errava o alvo. Um desses filhos, como todos sabemos, foi Minos, que construiu um labirinto. Mas sobretudo, o que a lenda ensina é que o ocidente nasceu de uma moça – Europa – vinda do oriente.
A questão agora é quem encontrará o fio de Ariadne para nos extrair do labirinto pelo qual, mais de cinco séculos depois de uma Era dos Descobrimentos liderada pelo ocidente, chegamos ao Declínio do Ocidente, com o líder Obama dessa vez, à frente.
Todo o projeto da União Europeia enfrenta colapso absoluto. O mito da superioridade cultural e política europeia/ocidental – cultivado ao longo de cinco séculos – está na poeira, no que tenha a ver com "todas as vagas imensidades asiáticas" [ing. All Asiatic vague immensities], como Yeats escreveu em "The Statues". Esse século está destinado a ser o século eurasiano.
Via firme e confiável adiante teria sido aquela que Putin propôs faz tempo, em 2007 — um empório de comércio continental unificado de Lisboa a Vladivostok. Adiante os chineses pegaram a ideia e a ampliaram via o conceito de Um Cinturão, Uma Estrada [ing. One Belt, One Road (OBOR)].
Não. Em vez disso o governo Obama, liderando o ocidente "pela retaguarda", contra-atacou com pivô para a Ásia (leia-se: para conter a China) e Guerra Fria 2.0 (demonização da Rússia).
Entram os dalangs ocidentais
E isso nos leva, à véspera de uma possível nova era geopolítica, ao que os dalangs ocidentais sobretudo mais visíveis podem estar cozinhando em niskala.
Sekala faz exibição de histeria descontrolada 24 horas por dia todos os dias da semana em setores do estado profundo nos EUA, por causa dos feitos "maléficos" dos russos, com os remanescentes do governo Obama empurrando a Guerra Fria 2.0 rumo aos limites máximos. Noniskala, onde operam Henry Kissinger e o Dr. Zbigniew "Grande Tabuleiro de Xadrez" Brzezinski, é onde há ação (conceitual) de verdade.
Não é segredo que Kissinger, o "urbano", o "cerebral", o "legendário" opera agora como conselheiro de Trump. A estratégia de longo prazo pode ser caracterizada como um "Dividir para Governar" clássico, apenas levemente remixado: nesse caso, uma tentativa para quebrar a aliança estratégica Rússia-China, aliando-se ao nodo – teoricamente –mais fraco, Rússia, para melhor conter o nodo mais forte, China.
De um momento "Nixon na China" para um momento "Trump em Moscou".
Não é difícil compreender que sicofantas fátuos do tipo Niall Ferguson sagrarão a esperteza de Kissinger em rios de hagiografia – sem considerar que Kissinger pode estar ativo num show colateral muito mais lucrativo, na forma de contratos e mais contratos para seu escritório de consultoria Kissinger Associates Inc., atapetado de nomes estelares no ramo, e que é membro do Conselho de Comércio EUA-Rússia [ing. US-Russia Business Council, com cadeira ao lado e ExxonMobil, JPMorgan Chase e Pfizer, âncora da Big Pharma.
Assim sendo, em resumo: sai a mudança de regime, entra a contenção benigna. Aqui está Kissinger na sua Conferência Primakov, há quase um ano, já esquematizando o modo como Washington deve negociar com Moscou: "Os interesses de longo prazo dos dois países exigem mundo que transforme a turbulência e o fluxo contemporâneos num novo equilíbrio que é cada vez mais multipolar e globalizado (...). A Rússia deve ser vista como elemento essencial de qualquer equilíbrio global, não basicamente como uma ameaça aos EUA."
Kissinger multipolar exaltando Rússia que "não ameaça" –, e fica-se a pensar por qual motivo a máquina de Clinton não denunciou o velho, expondo-o também como refém das trampas e amizades coloridas de Putin.
Também meses antes da vitória de Trump, mas em marcado contraste com Kissinger, Brzezinski estava em modo de alerta vermelho profundo, alarmado pela "erosão das vantagens técnico-militares dos EUA" como se detalha por exemplo nesse relatório do Center for a New American Security, CNAS.
Brzezinski melancolicamente reafirma o óbvio – que EUA militarmente inferiorizados "sinalizam o fim do papel global dos EUA" e o resultado local será "muito provavelmente" "caos global".
Propõe como solução então que os EUA "modelem uma política na qual pelo menos um dos dois estados potencialmente ameaçador seja convertido em parceiro na busca de estabilidade regional e depois de mais ampla estabilidade global, assim impedindo a superdistensão da menos previsível mas potencialmente a mais provável rival. Atualmente, quem mais provavelmente pode superdistender-se é a Rússia, mas no longo prazo pode ser a China."
Aí está, tudo outra e outra vez: Dividir para Governar, e assim contra-atacar as "ameaças" indisciplinadas.
Num ocidente previsível, sempre de olhos fixos no próprio umbigo, Brzezinski assume que a China pode não preferir ir contra os EUA como tal, "no seu interesse de pertencer à matilha dominante". Só que a "matilha dominante já não é os EUA: é a integração eurasiana.
Brzezinski, depois da debacle da máquina Clinton/Obama, já não passa de perdedor ressentido. Então foi forçado a embaralhar ligeiramente as cartas. Diferente de Kissinger, e fiel à sua russofobia maníaca, o Dividir para Governar de Brzezinski é centrado em seduzir a China, para atraí-la para longe da Rússia, por cujos meios "a influência norte-americana é maximizada".
À maneira previsível do ocidente, sempre de olhos no próprio umbigo, Brzezinski assume que a China pode não escolher atacar os EUA, 'porque' seria "do interesse dela incorporar-se à matilha dominante". Mas a "matilha dominante" não é mais os EUA: agora é a integração eurasiana.
Um Cinturão, Uma Estrada, ou as Novas Rotas da Seda, é o único projeto de integração geoeconômica/geopolítica de grande alcance no mercado. Se Kissinger pode talvez permanecer como o mais consumado dalang da realpolitik, o mentor de Obama, Brzezinski, só permanece como velho refém de Mackinder. A liderança chinesa, por sua parte, já está muito à frente de ambos, Mackinder e Alfred Mahan. A Novas Rotas da Seda visam a integram, pelo comércio e pelas comunicações, não só a Terra Interior (Um Cinturão), mas também as Terras Franja (a Rota Marítima da Seda).
Uma parceria com a União Econômica Eurasiana (UEE) será essencial para todo o projeto. Poucos se lembrarão que, com a Guerra Fria rolando solta em setembro, o Fórum Econômico Oriental fazia negócios em Vladivostok, com Putin propondo um "espaço de economia digital" sobre toda a Ásia Pacifico e China prometendo maior envolvimento nos projetos para desenvolver o Extremo Oriente russo.
Assim, o que temos agora é os, provavelmente, principais dalangs ocidentais fazendo o diabo para se adaptarem ao novo normal – integração eurasiana via Um Cinturão Uma Estrada/União Econômica Eurasiana — propondo versões conflitantes benignas de Dividir para Governar, com a inteligência dos EUA ainda precariamente pendurada, em desespero que nada tem de calado, ao velho paradigma confrontacional.
Quanto aos nodos chaves – uma Tripla Entente? — da integração eurasiana, Moscou, Pequim e Teerã estão muitíssimo conscientes de um estrangeiro que chega com presentes, envolto em niskala. Um estranho que conta, em momentos alternados, com Moscou entregar Teerã na Síria, e também com o acordo nuclear; Moscou separar-se de Pequim; Pequim entregar Teerã; e entre essas possibilidades, todos os tipos wayang de contenção/trocas do que seja pilhado.
Essa será a história chave a acompanhar mais a fundo pelas novas estradas (Rotas da Seda). Yeats escreveu, em verso memorável que "Espelho refletido em espelho, eis todo o show" ["mirror on mirror mirrored is all the show" (The Statues)] Seja como for, o show sempre tem de continuar – dalangs orientais e ocidentais soltem-se em niskala profundo. Bem-vindos ao Torneio de Sombras do século 21.*****
[1] Essa é a grafia oficial em português do Brasil. Sobre o significado, parece haver informação interessante na Revista Aleph (esp.) [NTs]
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segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
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Teatro de sombras: O Novo Grande Jogo na Eurásia, por Pepe Escobar
Teatro de sombras: O Novo Grande Jogo na Eurásia, por Pepe Escobar
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