MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo coletivo da vila vudu
Na cultura política da Rússia, a palavra escrita impõe-se sobre a palavra falada. E quando a palavra escrita vem assinada pelo Kremlin, é o evangelho dos evangelhos. Assim sendo, o que se lê no website do Kremlin (aqui) sobre a reação russa aos mísseis que os EUA dispararam contra a Síria na 5ª-feira deve ser estudado e analisado muito cuidadosamente.
No todo, a declaração do Kremlin pode ser considerada surpreendentemente suave, dadas as circunstâncias.
Nenhum movimento para defender a Síria como "aliada" – expressão que o porta-voz da presidência Dmirty Peskov usou na reunião com a imprensa –, nem qualquer afirmação de carta-branca de apoio russo a qualquer movimento de Damasco para responder à "agressão" norte-americana. (O Ministério da Defesa da Rússia dissera que a Rússia propõe que se tomem "vários passos (...) no futuro imediato, para reforçar e aumentar a efetividade do sistema de defesa aérea das forças armadas sírias".)
Claramente o presidente Vladimir Putin deixa a porta aberta para futuras discussões com os EUA para que se construa uma coalizão internacional antiterrorismo. O Kremlin diz que o ataque dos norte-americanos na 5ª-feira cria "um grande obstáculo" – mas não se trata de obstáculo intransponível e, com certeza, não é caso para bater a porta e jogar fora a chave.
Moscou espera, em boa disposição, com a mente aberta, a visita do secretário de Estado dos EUA Rex Tillerson, na 4ª-feira. Não há dúvidas de que pode haver conversações sérias à frente, na melhor tradição da diplomacia "soviéticos-EUA".
Interessante: a declaração do Kremlin absolutamente ignora todo o único passo concreto que a Rússia tomou até agora – suspender o procedimento de "desconflitar" expresso em acordo de 2015 com vistas a evitar incidentes aéreos nos céus sírios. Pode-se conjecturar que a suspensão seja mesmo temporária, dado que o acordo de 2015, como tal, permanece, afinal de contas, válido, e interessa aos dois lados evitar incidentes aéreos. É também o que espera o Pentágono, como disse a porta-voz do Departamento de Defesa dos EUA na 6a-feira, via TASS:
- "O Departamento de Defesa mantém o desejo de dialogar pelo canal da segurança de voo. É medida que beneficia todos os envolvidos que operam no céu sobre a Síria, evitar acidentes e erros de cálculo; e esperamos que o Ministério da Defesa da Rússia chegue também a essa conclusão."
A parte mais significativa da declaração do Kremlin é que a Rússia vê e anota as compulsões que podem ter empurrado o presidente Donald Trump a ordenar o ataque com mísseis. Putin acha que o ataque foi tática diversionista, à qual recorreu o atilado presidente dos EUA.
Em resumo, Moscou está vendo a coisa como evento tático – não como movimento estratégico para "mudança de regime". A questão pertinente aqui é se a ação de Trump foi realmente surpresa para Moscou. É razoável supor que Moscou tivesse previsto algum tipo de "ação", partindo de Trump, dada a furiosa pressão que havia sobre ele para "fazer alguma coisa".
Curiosamente, isso, precisamente, parece ser o que os chineses leram nas folhas de chá. Encaixada no texto de matéria não assinada da rede Xinhua, sem data (publicada por People’s Daily), lê-se a seguinte passagem, muito clara:
Mas o movimento não representa necessariamente alguma mudança na política ou na postura dos EUA na Síria.
"Não houve mudança alguma naquele status" – disse Tillerson. – "Nada aí demonstra que o presidente Trump esteja disposto a agir sempre que governos e atores 'pisem na linha'."
O Pentágono disse também em declaração, que o ataque visou a "deter o governo sírio, impedindo que volte a usar armas químicas."
Adam Schiff, alto membro da Comissão de Inteligência da Câmara de Representantes, disse à rede MSNBC na 5ª-feira que "não há atualmente planos para outros ataques" – depois de receber um briefing do Diretor da Inteligência Nacional dos EUA Dan Coats.
Notável também que, em movimento similar, o Ministério da Defesa da Rússia tenha cuidado de reduzir o dano real infligido pelos mísseis à Base Aérea Al-Shayrat. O Ministério da Defesa da Rússia disse que os EUA tinham planos já preparados para aquele ataque, mas concluiu com frase oblíqua: "O show de músculo militar visa exclusivamente a questões internas (domésticas)."
O Kremlin cuidou de não fazer comentários de provocação que pudessem forçar atitude confrontacional. A linha final parece ser 'e a vida segue normalmente'. O Kremlin entende que o evento da 5ª-feira é, sem dúvida, "grave golpe" contra as relações Rússia-EUA, mas, afinal, as tais relações "já estão em estado lastimável." É fato que o ataque dos EUA à Síria não ajuda na luta contra o terrorismo" – mas tampouco impede que a luta continue.
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