Pepe Escobar, Asia Times (escrito antes da eleição)
Traduzido pelo coletivo da vila vudu
O Declínio do Ocidente, o destino da civilização ocidental, o desmonte da União Europeia, até o futuro da própria democracia. Todos os breques acionados, no que tenha a ver com como as eleições presidenciais francesas modelarão a geopolítica de um jovem e turbulento século 21.
E tudo a um passo de se resumir ao destino de três homens e uma mulher – nenhum exatamente talhado para a ocasião, muito mais sucumbindo, todos, sob o peso dela.
A corrida pelo primeiro turno no [próximo] domingo revelou-se uma versão galesa de House of Cards, entretenimento de primeira qualidade.
À direita, sucumbido sob o peso da mais massiva impopularidade, o conquistador da Líbia, ex-presidente Nicolas Sarkozy, codinome "Sarkô Primeiro, foi eliminado logo de saída com o conservador favorito, prefeito de Bordeaux, Alain Juppé.
O vencedor das primárias da direita foi o ex-primeiro-ministro François Fillon – emblema da França católica provinciana encharcada de neoliberalismo o mais empedernido (impostos baixos para empresas, combinados com assalto às instituições do bem-estar social). Mas bem quando Fillon parecia andar confortavelmente para uma vitória de segundo turno, foi espetacularmente jogado para fora dos trilhos, em janeiro passado, pelo combativo semanário satírico Le Canard Enchainé: uma fonte misteriosa e timming diabólico levaram Mr.Limpeza diretamente para o tanque.
Foi o início do "Penelopegate" – estrelado pela discreta esposa escocesa de Fillon, que teria, como dizem as más línguas, embolsado uma pequena fortuna como "assistente" parlamentar do marido, quando, na verdade, vivia completamente fechada em casa. Agora, Fillon talvez enfrente até um processo criminal, acusado de fraude.
Ao longo da saga, a narrativa central nunca mudou. Marine LePen da Frente Nacional – rebatizada "Marine" – sempre apareceu à frente de virtualmente todas as pesquisas desde 2013. Mas era inconcebível que vencesse em segundo turno, porque fosse quem fosse que lá chegasse também reuniria o apoio de todo o establishment francês e sua grande mídia-empresa, todos unidos para "defender os valores da República". "República" é negócio muito sério: afinal, a batalha ideológica esquerda x direita que faz arder o coração da política ocidental foi forjada na França.
Pelo menos, esse era o estado das coisas há poucos dias, quando a (apavorada) Deusa do Mercado e seus incontáveis acólitos começaram a perceber que se configurava o impensável: uma batalha final "populista" entre Marine e Mélenchon – ou alguma coisa como alguma extrema direita versus alguma extrema esquerda.
Avançando devagar mas firmemente pelo flanco esquerdo, Jean-Luc Mélenchon, membro declarado da maçonaria, ex-trotskista, ex-Partido Socialista (deixou o partido em 2008) e agora candidato autodeclarado independente representante da La France Insoumise ("França Insubordinada"), aparece bem posicionado como sério concorrente, apoiado até por vários economistas sérios.
Estamos tão desgostosos
Fascinante é ver o quanto todos eles estão próximos nas questões de política exterior. Como Marine – e Fillon – Mélenchon não é russófobo. Aplaudiu Fillon, que é a favor de protegerem-se os cristãos na Síria, o que se traduz claramente por "Assad tem de ficar". E diferente do candidato oficial do Partido Socialista Benoît Hamon, apelidado "Dumbo" por cínicos de café, mas como Marine, Mélenchon quer a França fora do euro e da OTAN.
Marine por sua vez quer o fim do franco CFA [de Comunidade Financeira Africana] apoiado por Paris, como meio para devolver a independência econômica de nada menos que 14 ex-nações –, mas interesses do business francês não gostaram. Está também interessada em manter os serviços sociais de alta qualidade e os direitos sociais de ampla abrangência dos trabalhadores franceses. Nas questões domésticas, Marine pode ser localizada à esquerda de Fillon. Saúde, desemprego e outros benefícios sociais equivalem a mais de 30% do PIB, comparados aos menos de 25% na Alemanha. Tentem mexer nisso, e a França voltará às barricadas.
Marine é um formidável animal político. Apoiada por seu mais próximo conselheiro Florian Philippot, ela rapidamente superou o pai pró-Vichy, anti-semita Jean-Marie que tanto a atrapalhava e partiu diretamente em busca do voto da classe trabalhadora francesa. Mas seu principal slogan ainda é imigração, combinado à infiltração pelo terror islamista. No mais recente spot de campanha, de 1 minuto, ela navega um luxuoso iate rumo às águas não mapeadas de um… Frexit?
Mélenchon, dono de excelente senso de humor, ganhou por larga margem os dois debates televisionados – uma inacreditável maratona de sete horas e 20 minutos. E Fillon, de fato, foi o único que deu a impressão de que realmente sabia do que estava falando. Diferente do que se vê nos EUA, os debates políticos na França podem ser extremamente articulados, e ouve-se discussão a sério de política real, em detalhes. O tempo de TV é acessível a todos os candidatos, o que implica menos pressão que as 'regras' impostas pelos interesses financeiros/empresariais da mídia-empresa.
Assim se abrem espaços para que fluam também os "pequenos candidatos", como são carinhosamente chamados, que vão do mais idílico-pastoral, aos anticapitalistas urbanos mais hardcore, mas também incluem visionários que propõem um Novo Bretton Woods, a França engajada nas Novas Rotas da Seda da China, co-desenvolvimento com países africanos, relações mais íntimas com os países BRICS, além do Frexit e "França Fora da OTAN". Desnecessário dizer que a grande mídia-empresa ignora igualmente todos esses.
A ascensão que parece impossível de deter de Mélenchon reflete o desgosto dos cidadãos médios com todo o "sistema." Mélenchon aposta numa espécie de terceira via além da globalização neoliberal e do nacionalismo protecionista. Implica serviços públicos – propriedade pública e prestação pública – fortes; economia mais verde; e não à financeirização. O "sistema" jamais o deixará passar.
O pacote total
A questão chave é quem capturará os votos da classe trabalhadora. Certamente não será o queridinho da galáxia neoliberal, baby boyEmmanuel Macron, que entrou, tempo integral, em modo De Gaulle ("nem esquerda nem direita").
Macron – que Fillon descreveu bem como "Emmanuel Hollande" – é produto eleitoral dos sonhos de qualquer marketeiro: sorridente lobo neoliberal em ternos blazers azul-marinho de cordeiro, fulgurando da mais ofuscante cega ambição, pró UE, pró-OTAN, exalando "pragmatismo" por todos os poros e meticulosamente embalado como o choque do novo.
Entra em cena Mimi Marchand – que talvez seja a chave nunca exposta dessa eleição. Mimi é a rainha dos paparazzi em Paris – encarregada de moldar a persona pública das celebridades top. Foi Mimi – íntima amiga da esposa de Macron, Brigitte – que armou um hoje já famoso pic-nic numa praia no Hawaii, decorado com Brigitte de biquini, para vender o futuro Primeiro Casal da França às massas da guerra-relâmpago & glitz.
O principal guru de Macron é Jacques Attali, que praticamente com as próprias mãos converteu os ex-socialistas em neoliberais de linha duríssima. Macron tem raízes profundas no establishment francês; Fundação Saint-Simon Foundation, think-tank Terra Nova, muito próximo da dinastia dos banqueiros Rothschild.
Antes de chegar ao Palácio Eliseu como protegido de Jean-Pierre Jouyet – profissional das portas giratórias, ministro de Sarkozy e secretário-geral do Palácio no governo Hollande – Macron viveu de acolhedor servicinho que prestava aos Rothschild. Em seguida foi nomeado Líder da Fundação Franco-Norte-Americana Jovem; Pesquisador Associado da London School of Economics; esteve presente como convidado de Bilderberg; e por fim, ano passado, a Fundação Saint-Simon/Terra Nova criou seu próprio partido político "En marche!" (Adiante! Em Marcha!)
Até o início de 2017, era partido sem programa/plataforma; apenas uma moldura para o holograma de Macron. No primeiro debate presidencial foi motivo de chacotas, porque concordava com tudo e com todos. No segundo debate Marine o destripou: o homem falou "durante sete minutos sem ser interrompido"... e ninguém entendeu nada. Quem liga? Os seis principais magnatas da mídia-empresa francesa estão todos empregados na campanha eleitora do holograma neoliberal.
O mesmo vale para o Big Business francês – e a City de Londres (antes, depois de coroado como Ministro da Economia, Indústria e Questões Digitais em 2014, Hollande mandou Macron numa missão secreta à City, em Londres, para tranquilizar os banqueiros e informar que tudo era sempre e só business as usual).
O segredo de Macron é o modo como ele encarna o conceito de "competitividade". Para atrair investimento de capitais, o custo do trabalho francês tem de diminuir. Então, deseja mais imigrados. Mais uma vez: a política identitária reina – com a imigração justificada moralmente como "humanitária". Não há portanto nenhuma diferença entre os Democratas nos EUA e os Socialistas na França. O nome do candidato deles todos e da OTAN ao governo da França é hoje Emmanuel Clinton.
Conversas com diplomatas da União Europeia revelam que o estado profundo da OTAN está confiante de que mantém o pleno controle da narrativa. O establishment é hoje tão russofóbico como nos EUA. Marine, que promete proteger seus eleitores contra a "globalização selvagem" está sendo desqualificada como "candidata de Moscou". Mas dirão o mesmo também de Mélenchon e Fillon.
Assim sendo, o jogo está feito – como dizem os croupiers de Mônaco? Não, de fato, não. Assim como o complexo industrial-militar-de inteligência e segurança escolheu Emmanuel Clinton, o vencedor do 1º turno pode ser M. Abstention – sobretudo entre os jovens. Os que anseiam pelo caos inadministrável – inclusive bookmakers londrinos – já estão apostando numa luta Marine-Mélenchon em gaiola de vale tudo eleitoral.
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