Sharmine Narwani, RT
Traduzido pelo coletivo da vila vudu
Todos deveriam ter tomado a esfera luminosa como sinal de que nem tudo era o que parecia. Recursos cenográficos, no mundo da política, quase sempre sugerem que alguma fantasia tenha de ser disseminada para audiências distantes, em algum lugar.
Uma semana depois das imagens do presidente dos EUA Donald Trump, de olhos vermelhos pelas noites mal dormidas para chegar a Riad e visitar a Arábia Saudita, a questão mais insistente hoje é "por quê"? Qual o objetivo de reunir líderes e representantes de 55 países árabes e muçulmanos para saudarem um chefe de Estado norte-americano, com tal pompa, cerimônia e tão espantosa quantidade de câmeras e flashes?
A cúpula de Riad tinha vários objetivos, a maioria dos quais serviram especificamente a interesses políticos sauditas e norte-americanos.
Os ganhos possíveis, para o líder norte-americano, eram fáceis de identificar: ganharia pontos nesse impressionante desfile de líderes muçulmanos que ajudariam a compensar sua péssima reputação doméstica, como inimigo de muçulmanos. Trump também seria bem recompensado sob a forma do maior negócio de armas de toda a história, botim que ele poderá dizer em casa que salvará a economia norte-americana. As negociações acontecerão no Oriente Médio, no coração da luta que ele trava contra "o terrorismo islâmico radical". Trump também sairia com um cheque em branco para sua "paz" palestinos-israelenses, 'confirmada' por um rei saudita sem qualquer autoridade para negociar fosse o que fosse em nome dos palestinos. E, finalmente, o presidente dos EUA poderia ostentar a legitimidade de 55 estados árabes e muçulmanos para redigir uma política para o Oriente Médio contra o Irã, aliados do Irã e a Fraternidade Muçulmana (FM) –, mesmo que nenhum consenso, de nenhum tipo, tenha sido obtido na tal cúpula.
Aos seus próprios olhos, os sauditas conseguiriam muito mais. Os sauditas, em plena crise hemorrágica de dinheiro-e-credibilidade, estão perdendo terreno na sua longa lista de lutas internacionais – na Síria, no Iêmen, no Iraque e contra o Irã. Ali estava uma oportunidade para reunir líderes e representantes de 55 nações árabes e muçulmanas (só 33 chefes de Estado apareceram) para reforçar a posição da Arábia Saudita como guardador do Islã sunita. Para os sauditas ensandecidos por poder, nada mostraria mais eloquentemente a primazia deles, que a presença de um presidente dos EUA, em sua primeira viagem internacional. Mas esqueceram que a legitimidade brota do povo governado, não de algum chefe de Estado ocidental deixar-se ver no abre-alas de uma dança de espadas ao lado do rei, sem povo algum à vista. Depois da cúpula, Riad redigiu unilateralmente uma declaração que, sem ter sido aprovada pelos convidados VIP, foi apresentada como se delineasse as prioridades de política externa de todos os 'convivas' [sobre isso ver "Nasrallah, sobre a cúpula de Riad" (port.) (NTs)].
Mas, mais importante, aquela cúpula estava prevista para pôr os sauditas – apavorados ante as potenciais repercussões que vêm na direção deles, depois de décadas de sustentar e financiar o terrorismo global – publicamente e muito visivelmente sob a proteção do governo Trump. E o presidente dos EUA, que sabe muito bem que os sauditas são o epicentro do terror global, ofereceu-lhes a proteção e a cumplicidade dos EUA, para garantir para si mesmo o seu gordo saco de tesouros.
Esse generoso troca-troca entre os sauditas e os norte-americanos aconteceu no dia da cúpula, entre incontáveis tapinhas nas costas.
Então, poucos dias depois, começou o desmanche.
Primeiro, sauditas versus qataris
Essa semana passada, uma onda de manchetes na imprensa nos alertaram para a primeira fissura entre os participantes da cúpula. Começaram a aparecer matérias em que se lia que o líder do Qatar, Xeique Tamim bin Hamad al-Thani já se afastava dos itens da pauta dos sauditas, e apoiava o engajamento ao lado do Irã e dos grupos da Resistência, Hezbollah e Hamas.
Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos retaliaram rapidamente, bloqueando veículos a mídia qatari, chamando seus embaixadores e iniciando furiosa guerra de palavras contra Doha.
Por que a resposta tão rápida e feroz contra membro do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), de seis países?
O Qatar há muito tempo luta para sair da sombra da Arábia Saudita, sua vizinha no Golfo Persa, maior que ele, e passou os últimos 12 anos construindo redes de noticiário, como a Al Jazeera, e investindo em grandes empresas ocidentais, marcas de think tanks, educação e esportivas, para projetar poder bem adiante, além da própria estatura regional. O maior golpe do pequeno reino, contudo, foi garantir o estabelecimento em seu território, da maior base militar regional, o que permitiu a Doha continuar a provocar seu concorrente saudita, com baixo risco de consequências graves.
Então, em 2011, os qataris jogaram todo seu peso em esforços reunidos na chamada "Primavera Árabe" para derrubar vários governos árabes. Mas a maioria dos regimes que se iniciaram e ativistas de oposição apoiados pelo Qatar eram islamistas, principalmente da cepa Fraternidade Muçulmana – odiada pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos.
No primeiro momento, os sauditas foram apanhados desprevenidos na rápida sucessão de eventos que varreram a região, mas logo se mobilizaram para montar uma contrarrevolução regional, para reverter os ganhos políticos dos grupos da Fraternidade Muçulmana apoiados por Qatar e Turquia. Agentes sauditas canalizaram material humano, dinheiro e armas para restabelecer a influência de Riad. Reviveram suas afamadas redes de jihadistas para inundar a Síria e outros locais com militantes extremistas que poderiam alterar o equilíbrio de poder novamente em direção dos sauditas.
Nem só o Qatar e a FM estavam sob a mira dos sauditas –, também vários levantes regionais, especialmente na Síria, Iêmen e Bahrain, ameaçavam fazer pender a região numa direção que beneficiava o Irã, maior adversário regional dos sauditas.
Em Riad, há dez dias, os sauditas supuseram que tivessem chegado ao veio de ouro. Depois de oito anos lidando com o pouco simpático governo Obama, ali estava Trump, perfeitamente de acordo com todos os desejos dos sauditas. A declaração saudita, distribuída no final da cúpula – bem como discursos proferidos durante o evento – atacavam o Irã, a Fraternidade Muçulmana, o Hezbollah e o Hamas, e prometiam cooperação americana no serviço de isolá-los. Os sauditas estavam por cima, sim. Mas, estavam quase completamente sozinhos.
Ampla divergência de interesses
Além da divisão sauditas/qataris, houve incontáveis outras diferenças em participantes da cúpula, que abalariam o projeto e as ambições de Riad.
Os Emirados Árabes Unidos, EAU, anti-FM, posicionaram-se ao lado de Riad na condenação de Doha, mas divergiram – mesmo dentro das próprias fronteiras – quanto a assumir posição agressiva contra o Irã. Pode-se falar de Dubai versus Abu Dhabi, se quiserem. Dubai, com sua grande população de emigrados iranianos e comércio significativo com a República Islâmica, preocupa-se menos com o seu vizinho persa. Como se lia num telegrama diplomático, de 2009, vazado da embaixada dos EUA em Abu Dhabi: "Embora MbZ (príncipe coroado do Emirado de Abu Dhabi, Mohammad bin Zayed) seja linha-dura contra o Irã, há acomodacionistas dentro do próprio sistema dele, especialmente em Dubai, onde o governante Mohammed bin Rashid Al-Maktoum (primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos) assume posição muito mais próxima da do Qatar."
Outros estados do CCG opõem-se ainda mais fortemente a confrontar o Irã. Omã repetidas vezes ignorou as demandas sauditas para endurecer sua posição em relação ao Irã e permanece como parceiro diplomático chave dos iranianos na região. Os dois estadosparticiparam em exercícios navais conjuntos no Golfo de Omã, há bem pouco tempo, em abril; e Muscat hospedou os encontros EUA-Irã inicialmente secretos, que deram o pontapé inicial no acordo nuclear iraniano de 2015.
O Kwait, também membro do CCG, permanece também relativamente neutro nas questões iranianas. Cerca de 40% dos kwaitianos são xiitas e o país tem conseguido evitar quase toda a luta sectária que aflige a Arábia Saudita e agora o Bahrain. O emir do Qatar, agora, voltou para o Kuwait, para negociar a paz com os sauditas e os Emirados Árabes Unidos, depois das escaramuças da semana passada. Os qataris, que tiveram comportamento oportunista, não ideológico, nas relações regionais, partilham com o Irã o maior campo de gás do mundo, mais um incentivo para manterem-se em posição de neutralidade no que tenha a ver com Teerã.
De fato, a maioria dos estados sunitas que participaram da cúpula de Riad estão absolutamente furiosos com o sectarismo e o extremismo violento que cresceram nos últimos poucos anos. E muitos deles culpam os sauditas por esse desenvolvimento lastimável.
Em agosto passada, uma conferência inédita até então, de 200 importantes clérigos sunitas vindos de todo o mundo reuniram-se em Grozny para determinar "quem é sunita". Foram excluídos do conclave os representantes da seita wahhabista (religião oficial da Arábia Saudita e do Qatar) e da Fraternidade Muçulmana. O mundo islâmico está buscando meios para corrigir o sectarismo e os desvios que geraram grupos como ISIS e Al-Qaeda –, não para ser ainda mais condescendente com eles, como seria o caso se adotassem a 'visão' saudita, em Riad.
Mas num esforço para forçar um "consenso sunita" a qualquer preço, sob a proteção do "poder saudita-norte-americano", os sauditas ignoraram todos os gorilas que lá estavam, na sala de reunião. Não só muitos dos participantes culpam os sauditas por terem libertado da garrafa o gênio jihadista, como, além disso, nem por um momento considerariam pôr-se sob 'liderança' saudita, não fosse pelo dinheiro dos sauditas. Exemplares, aí, são os casos dos gigantes sunitas regionais Turquia e Egito. O presidente turco Recep Tayyip Erdogan sequer apareceu em Riad, citando compromissos anteriores. O presidente do Egito Abdel Fattah al-Sisi sim, lá esteve – um dos três convidados a pressionar as mãos sobre a 'esfera fulgurante' para inaugurar o contraterrorismo saudita, fosse lá como fosse.
Mas mais que qualquer outra coisa, Sisi foi convidado a Riad como importante peça de cenário – para demostrar visualmente que o Egito, grande estado árabe, passava o manto da liderança para o rei Salman da Arábia Saudita.
Os sauditas viam o ex-presidente do Egito Hosni Mubarak como aliado importantíssimo, mas Sisi, não. Sisi pode até concordar com Riad, contra os demônios da Fraternidade Muçulmana, mas absolutamente não admite o apoio que a Arábia Saudita garante a grupos terroristas por toda a região e tem feito ativa oposição na questão da Síria.
O Egito pode apreciar os bilhões dos sauditas – que recebeu aos magotes por seus esforços anti-Fraternidade Muçulmana –, mas os egípcios têm pouca afeição pelos sauditas, o que têm exposto publicamente e privadamente em anos e meses recentes. Por mais que Riad tenha contado com soldados egípcios para apoiá-la nas incursões militares, hoje o Cairo tem rejeitado qualquer participação na guerra dos sauditas contra o Iêmen – como também tem feito outro firme aliado dos sauditas, o Paquistão.
Os sauditas recentemente contrataram o ex-comandante do Exército do Paquistão, general Raheel Shariff para liderar sua "OTAN Muçulmana" de 39 nações, para combater o terrorismo, mas agora já correm rumores de que ele renunciará, por causa da indignação que sua decisão gerou no Paquistão. Os paquistaneses, como outros muçulmanos de pensamento correto, sentem-se pouco confortáveis ante a possibilidade de uma aliança militar que parece concebida, em primeiro lugar, para combater contra o Irã – e os xiitas.
Chegou morto ao hospital
À superfície, o objetivo da cúpula de Riad foi montar uma coalizão de estados árabes e muçulmanos de pensamento convergente, sob a bandeira de EUA-sauditas, para fazer guerra contra o terror. Mas de fato é iniciativa liderada por EUA e sauditas, não para enfrentar o terror, mas para 'reformatá-lo', de modo a incluir adversários políticos.
Vejam-se por exemplo 'especialistas' e políticos já distribuindo novas narrativas, segundo as quais Irã, Hezbollah e Fraternidade Muçulmana seriam tão igualmente perigosos quanto ISIS e Al-Qaeda –, e pouco importa que os primeiros existam e atuem há décadas, sem terem disparado o cataclismo de insegurança global que é obra dos dois últimos.
Em Riad, norte-americanos e sauditas fazem grande show para o anúncio conjunto de novos nomes acrescentados à "lista de terrorismo" deles: primeiro, um alto oficial do Hezbollah; o outro, um alto membro do ISIS.
Essa não é a guerra ao terror em que pensavam os chefes de estado reunidos em Riad. Essa é guerra sectária, concebida por estado sectário que financiou, pagou e organizou o próprio terrorismo global que agora finge estar combatendo. E todos os governos norte-americanos desde os eventos do 11/9 sabem desse papel direto que têm os sauditas na criação e na manutenção do terror.
Em Riad, seja como for, o show continuou. Mas não há naquele salão sequer uma pessoa que não tenha compreendido a jogada. Esqueçam o 'consenso sunita' pós-Riad. Das 55 nações representadas naquela reunião de cúpula, os sauditas terão sorte, se conseguirem manter cinco aliados.
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