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quarta-feira, 28 de junho de 2017

Depois do Qatar,Washington perdeu o Oriente Médio?

F. William Engdahl, New Eastern Outlook

Traduzido pelo coletivo da vila vudu

Há uma tênue linha vermelha que liga as recentes sanções do Congresso dos EUA contra o Irã e agora a Federação Russa, com a decisão de Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo de sancionar o Qatar. Essa linha vermelha nada tem a ver com luta contra o terrorismo e tudo a ver com quem controlará a maior reserva de gás natural do planeta e com quem dominará o mercado mundial daquele gás.

Por mais ou menos todo o século passado, desde 1914, o mundo esteve permanentemente em guerra pelo controle do petróleo. 
Gradualmente, com a adoção de políticas de energia limpa na União Europeia e mais especialmente depois que a China concordou com reduzir significativamente as emissões de CO2 reduzindo a geração de carvão, ato em si não científico, mas político, além dos avanços nas tecnologias de transporte de gás natural, principalmente a liquefação do gás natural (produzindo o Gás Natural Liquefeito, GNL; ing. liquefaction of natural gas, ou LNG), o gás natural finalmente se tornou mercadoria de mercado global, como o petróleo. Com esse desenvolvimento, estamos hoje numa era não só de guerra pelo controle das maiores reservas de petróleo. Hoje vemos o alvorecer da era das guerras pelo gás natural. Senhoras e senhores, apertem os cintos.

Em termos de atores geopolíticos, nenhuma potência foi mais responsável por iniciar as recentes guerras não declaradas, pelo gás, que a gangue corrupta que governa Washington e que faz política em nome dos chamados interesses do estado profundo. Esse movimento começou mais marcadamente com o governo Obama e continua com furor, no atual mega propagandeado Show Trump-Tillerson. A recente viagem de Donald Trump a Riad e Telavive para propagandear a ideia de uma "OTAN Árabe Sunita" para combater o "terrorismo", que agora os EUA passaram a definir como "Irã", inaugurou uma nova fase nas emergentes guerras globais dos EUA pelo gás.

Queimar a casa, para assar o porco 

A política do governo Trump no Oriente Médio – e não há dúvida de que é política e bem cara – pode ser comparada à antiga fábula chinesa sobre o fazendeiro que queimou a própria casa, para assar o porco. Com vistas a controlar o emergente mercado mundial de gás natural de "CO2 baixo", Washington passou a atacar não só a Rússia – onde estão as maiores reservas de gás. Agora, Washington já está atacando Irã e Qatar. Examinemos mais de perto, para entender por quê.

Já escrevi sobre a infame reunião, dia 15/3/2009 entre o então emir do Qatar, xeique Hamad Bin Khalifa Al Thani no Qatar com o presidente Bashar al-Assad da Síria, naquele momento ainda considerado amigo confiável do emir. Quando o xeique Hamad propôs a Assad a construção de um gasoduto, do enorme campo de gás do Qatar no Golfo Persa, atravessando a província síria de Aleppo até a Turquia, para chegar ao grande mercado de gás da União Europeia, Assad não aceitou a proposta, e falou de suas já longas relações com a Rússia em questões de gás. Disse que não desejava interferir, com gás do Qatar, nas exportações russas de gás.

Aquele campo de gás no Golfo Persa, que os qataris chamam de North Dome e os iranianos chamam de South Pars, é considerado o maior campo contínuo de gás do planeta. Quis o destino que esse campo se espalhasse em águas territoriais dos dois países, do Qatar e do Irã.

Então, em julho de 2011, como se noticiou, com concordância de Moscou, os governos de Síria, Iraque e Irã assinaram acordo diferente para construir outro gasoduto, o "Gasoduto da Amizade". Por esse acordo, se construiriam 1.500 quilômetros de gasoduto, para levar o gás intocado do vasto campo iraniano de South Pars até o emergente mercado de gás da União Europeia, via Iraque, Síria e até o Mediterrâneo, pelo Líbano. Claro que esse gasoduto está suspenso desde que OTAN e os reacionários estados wahhabistas do Golfo optaram por destruir a Síria, a partir de 2011. Optaram por destruir Assad e o estado soberano da Síria servindo-se de várias entidades terroristas que agiriam como 'procuradores' locais, sob falsa bandeira, a qual, em diferentes momentos teve diferentes nomes (Al-Qaeda no Iraque e Síria, depois Estado Islâmico no Iraque e Síria, depois simplesmente Estado Islâmico ou na sigla em árabe, Daech). Quanto à OTAN e aos estados árabes do Golfo, um gasoduto Irã-Iraque-Síria alteraria todo o mapa geopolítico de energia da Eurásia, e promoveria a influência política do Irã, contra a dominação dos sauditas wahhabistas.

Não surpreendentemente, quando o misterioso ISIS explodiu em cena em 2014, tratou logo de ocupar Aleppo, para onde estava planejado o gasoduto do Qatar para a Turquia. Coincidência? Pouco provável. Os dois trajetos cruzam aquela região: a rota Qatar-Síria-Turquia-UE (em azul) deve passar pela província de Aleppo; e o trajeto alternativo Irã-Iraque-Síria (em vermelho), pelo Líbano, até os mercados de gás na União Europeia.


2011 foi o ano em que o Qatar pôs-se a fazer jorrar $3 bilhões em sua guerra contra Assad, apoiado pela Arábia Saudita e outros estados árabes sunitas do Golfo e então também pela Turquia, que viu sumirem suas ambições geopolíticas europeias, como base asiática de gás. Logo no mês seguinte, depois de anunciado o acordo Irã-Síria para construção do "Gasoduto da Amizade", em agosto de 2011, os EUA, no Conselho de Segurança da ONU 'exigiram' a derrubada de Assad. Forças Especiais dos EUA e da CIA começaram a dar treinamento, clandestinamente, a terroristas que viriam a constituir a tal "oposição síria" recrutados em todo o mundo sob influência dos wahhabistas, em bases secretas da OTAN na Turquia e na Jordânia. Planejavam assim derrubar Assad e abrir as portas para um regime fantoche em Damasco, controlado pelos sauditas e favorável às suas ambições de construir gasoduto com o Qatar.

Estupidez geopolítica em Washington e Riad

O que tudo isso tem a ver com a demonização do Irã, por Trump e pelo príncipe saudita Salman, para os quais o Irã seria "patrocinador número 1 do terrorismo" e o Qatar, apoiador de terroristas?

Tudo se encaixa, quando se se sabe que o atual emir do Qatar, Xeique Tamim bin Hamad Al Thani, filho do Xeique Hamad, mais pragmático e apercebendo-se de que os sonhos de gasoduto que atravessasse Aleppo para a Turquia e dali à União Europeia já haviam virado fumaça no instante em que a Rússia entrou na guerra síria, começou silenciosamente a conversar com... Teerã.

Aconteceu na primavera passada: o Qatar iniciou conversações com Teerã em busca de um acordo sobre a exploração do campo de gás partilhado entre os dois países (South Pars-North Dome). O Qatar levantou a moratória que impedia a exploração do campo e deu início a discussões com o Irã sobre o desenvolvimento conjunto, acionado pelos dois países. Já se sabe que Qatar e Irã chegaram a um acordo para a construção conjunta de um gasoduto Qatar-Irã, do Irã até o Mediterrâneo ou até a Turquia, que também levará gás qatari até a Europa. Em troca, Doha comprometeu-se a pôr fim ao apoio que dá ao terrorismo na Síria – golpe terrível contra os planos Trump-sauditas para balcanizar uma Síria hoje destruída e controlar os fluxos de gás da região.

Para evitar aquela catástrofe geopolítica como Washington, Riad e Telavive veem as coisas, essa nada santíssima-trindade reuniu-se para culpar Irã e Qatar, por ironia berço das mais importantes bases do Pentágono em todo o Oriente Médio. O Qatar foi declarado o ‘Evel Knievel’ do terrorismo mundial; o secretário da Defesa dos EUA, Mattis 'Cachorro Louco' chegou a declarar que o Irã seria o "maior patrocinador estatal de terrorismo"; e o crime atribuído ao Qatar seria financiar, como financiador chave, o Hamás, a Al-Qaeda e o ISIS. Talvez até fosse verdade naquele momento. Hoje o Qatar busca objetivos diferentes.

Washington convenientemente já saneou o papel da Arábia Saudita wahhabista, que sabidamente canalizou mais de $100 bilhões em anos recentes para construir redes de terroristas jihadistas fanáticos de 
Cabul à China, da Bósnia-Herzegovina ao Kosovo e Síria e até o Irã e a Rússia.

Condenado ao fracasso 

Como as mais recentes estratégias dos neoconservadores em Washington, a demonização de Qatar-Teerã e as sanções estão explodindo pela culatra direto na cara dos apoiadores. O Irã respondeu imediatamente com ofertas emergenciais de alimentos e outros itens de primeira necessidade para quebrar o bloqueio, reminiscência, em contexto muito diferente, da Ponte Aérea (Berlin Airlift) para Berlim em 1948-49.

Assim também, o ministro das Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov encontrou-se com o ministro de Relações Exteriores do Qatar em Moscou e a China e a Marinha Chinesa já aportaram num porto iraniano para iniciar exercícios navais conjuntos Irã-China, no hiper estratégico Estreito de Ormuz. O Estreito de Ormuz entre Omã e Irã na abertura do Golfo Persa para o Mar de Omã, é inegavelmente o gargalo de trânsito por mar mais estratégico do mundo, por onde passa mais de 35% de todo o petróleo embarcado para a China e outros mercados mundiais.

O Irã é candidato à admissão como membro da Organização de Cooperação de Xangai, agora que as sanções de EUA e União Europeia foram semilevantadas; é já é participante estratégico convidado na Iniciativa Cinturão e Estrada, da China, antes chamada "Novas Rotas Econômicas da Seda", de longe o mais impressionante projeto de infraestrutura do mundo para criar vínculos econômicos entre todos os estados da Eurásia, incluindo o Oriente Médio.

O Qatar também não é estranho nem para a China nem para a Rússia. Em 2015 o Qatar foi oficialmente reconhecido pelo Banco do Povo da China como o primeiro centro do Oriente Médio a aceitar transações e fazer compensação em moeda chinesa, o yuan, agora também já aceito pelo FMI como moeda oficial da cesta de moedas da instituição, grande impulso na direção de a moeda chinesa ser aceita internacionalmente. O status do renminbi como moeda que pode ser objeto de compensação permite que empresas qataris transacionem com a China (venda de gás natural, por exemplo) diretamente em renminbi. O Qatar já exporta quantidades significativas de gás natural liquefeito para a China.

Segundo matérias recentes de Amsterdã, o Qatar já está recebendo pagamento do gás que vende à China em renminbi, não mais em dólares. Se for verdade, indica mudança tectônica no poder do dólar norte-americano, base financeira da capacidade dos EUA para fazer guerras pelo planeta e administrar déficit federal e dívida pública de mais de $19 trilhões. O Irã já recusa dólares pelo próprio petróleo e a Rússia vende gás à China ou em rublos ou em yuan. Se tudo isso se definir como mudança significativa a favor do comércio bilateral internacional em renminbi ou em rublos russos e outras moedas 'não dólar', será o ocaso dos EUA como superpotência global. Apaguem as luzes. Basta! 

Não tem sido fácil para a Única Superpotência mundial, como foi, digamos, nos anos 1990s. Nem generais psicopatas com apelidos como "Cachorro Louco" conseguem assustar os que decidam não permanecer cabisbaixos e calados enquanto Washington late suas ordens. Ainda há pouco tempo, nos anos 1990s, por exemplo, era facílimo, pode-se dizer, para os EUA. Fazer guerra na Iugoslávia, desestabilizar a União Soviética depois de uma longa guerra no Afeganistão, saquear as economias do mundo comunista em toda a Europa Oriental. Para piorar, o mundo parece já não respeitar as guerras de Washington, já identificadas como guerras de destruição e saque. Oh... mas quanta ingratidão, depois de tudo que Washington fez de bem ao mundo nos últimos anos... 


Será que futuros historiadores que venham a analisar o Século Norte-americano terão de registrar, como data do óbito, o momento do ano de 2017 – quando Washington perdeu o controle sobre o "prêmio estratégico", como Dick Cheney chamava o Oriente Médio rico em energia?

blogdoalok

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