O que aconteceu a Liz Truss? - Noticia Final

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sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O que aconteceu a Liz Truss?


 
Prabhat Patnaik [*]


A mais intrigante questão a respeito da demissão de Liz Truss como primeira-ministra da Grã-Bretanha, após apenas 44 dias no gabinete, é esta:   o que é que há no seu programa económico que o “mercado” (leia-se o “capital financeiro”) achou intragável? No seu núcleo, afinal de contas, estavam cortes fiscais para os ricos, os quais o “mercado” deveria ter saudado. É verdade que os cortes fiscais deveriam ser financiados através de um défice orçamental, os quais o “mercado” geralmente não aprecia. Mas uma vez que o défice orçamental era destinado a financiar transferências para os ricos, e não a qualquer estímulo direto da procura agregada por parte do Estado, deveria ter havido pouco objeção por parte do “mercado”. Alguns sugeriram que pelo facto de os cortes fiscais serem “não financiados”, isto é, financiados por um défice orçamental que implicava uma venda de títulos do governo, a proposta introduzia incerteza acerca da cotação futura da taxa dos títulos as quais fazem os “investidores” despejarem títulos públicos, elevando drasticamente a taxa dos mesmos e criando pânico no “mercado”. Mas esta é precisamente a questão que precisa ser respondida:  mesmo antes que tivesse ocorrido qualquer venda real de títulos públicos para financiar um défice orçamental, por que o pânico do “mercado”? E se se aguardava taxas mais elevadas então isso deveria ter levado a um fortalecimento da libra esterlina com entradas financeiras a verificarem-se para dentro da Grã-Bretanha, ao invés de um colapso da libra esterlina como realmente assistimos.

Na verdade Liz Truss havia apostado precisamente no facto de que a busca de uma agenda claramente de direita, de efetuar concessões fiscais para os ricos, a tornaria benquista na City de Londres, o lar do capital financeiro britânico. Não há dúvida de que ela não se referiu ao ressuscitar da economia britânica pós-Brexit, mas concessões fiscais para os ricos dificilmente levam ao ressuscitar de uma economia. Se o ressuscitar fosse sua intenção, então ela deveria ter empreendido despesa pública a qual teria certamente e diretamente promovido a procura agregada. Mas a sua intenção real era fortalecer o seu apoio no interior da classe cujos interesses ela e o partido Tory servem. A ironia é que a própria medida que ela concebeu para beneficiar esta classe ricocheteou sobre si de um modo tão desastroso que foi obrigada a abandonar o gabinete 44 dias depois! A questão é:  por que?

Aqui há um outro ponto a considerar. Seu programa de conceder cortes fiscais para os ricos era bem conhecido antecipadamente. De facto foi a sua principal plataforma durante a sua campanha para primeira-ministra contra o seu rival Rishi Sunak. Mas ainda assim, os próprios media de direita e os chamados “peritos” que começaram a incitá-la no momento em que ela anunciava suas propostas exatas eram ruidosos no apoio a seu favor durante a campanha, a qual afinal de contas foi o que a levou a ser eleita em primeiro lugar. Qual era a diferença, se é que há alguma, entre o que ela havia prometido durante a campanha e o que ela propôs depois de ser eleita como primeira-ministra? Certamente não pode ser o facto de os cortes fiscais serem para os ricos; a sua ofensa imperdoável foi que tais cortes fiscais não foram equilibrados por quaisquer reduções alhures na despesa pública, ou por quaisquer aumentos de impostos sobre os trabalhadores. É verdade que tais aumentos de impostos teriam despertado resistência feroz dos trabalhadores que neste momento já estão a travar uma valente luta grevista na Grã-Bretanha, mas um corte na despesa pública, o que de facto teria sido um ataque indireto à classe trabalhadora, é o que esperavam os seus apoiantes; não fazê-lo foi o seu crime do ponto de vista deles.

Dito de modo diferente, o que a finança e na verdade toda a classe capitalista dela esperavam era não apenas transferências para os ricos, mas também, simultaneamente, algumas medidas orçamentais para promover o desemprego, as quais de acordo com a percepção capitalista é o único meio de combater a inflação. Este é o significado real da acusação de que os cortes fiscais são “não financiados”, isto é, são supostos serem financiados por um défice orçamental que nada faz para reduzir a procura agregada, ao invés de serem equilibrados por medidas, tal como redução da despesas governamental, que realmente diminuíssem a procura agregada.

A falha de Liz Truss do ponto de vista do capital financeira não era apenas que os seus cortes fiscais deveriam ser financiados por um défice orçamental, mas que nada houvesse nas suas proposstas para combater a inflação pelo único meio conhecido pelo capital, nomeadamente a criação de desemprego. É verdade que a ascensão das taxas de juro deve “conseguir” isto; mas ter uma política orçamental que vai contra isto é “imperdoável”.

Isto também explicaria toda a sequência de eventos. A Grã-Bretanha atualmente tem uma taxa de inflação que excede os 10 por cento. Um aumento do défice orçamental faria algo pior, o que provocaria uma maior depreciação da libra esterlina em relação ao dólar (uma vez que a taxa de inflação nos EUA é menor). A própria expectativa de um tal aumento da depreciação provocaria uma queda realmente agravada da libra esterlina (como aconteceu) e, ao invés de atrair fluxos financeiros para dentro da Grã-Bretanha, encorajaria fluxos financeiros para fora do país. Por causa dito, títulos do governo britânico, que já se esperava que caíssem de valor devido ao maior défice orçamental, na ausência de qualquer ação contraposta da parte do Banco da Inglaterra, tiveram um tombo particularmente acentuado só como sequela do anúncio das propostas de Liz Truss.

Por outras palavras, o “mercado” reagiu drasticamente às propostas de Liz Truss, apesar de elas envolverem transferências para o ricos, o que aos olhos do “mercado” normalmente justificaria mesmo um maior défice orçamental, devido ao cenário em que estas transferências foram visualizadas, um cenário de inflação, o qual o capitalismo não tem outro meio de conter exceto pela criação de maior desemprego – as propostas nada continham para criar desemprego. E qualquer continuação ou exacerbação da inflação é anátema para o capital financeiro porque ele reduz o valor real de todos os ativos financeiros, com graves consequências para o balanço do bancos, fundos de pensão e outras instituições financeiras.

Liz Truss difere a este respeito de Margaret Thatcher, a qual havia deliberadamente engendrado desemprego em massa, de milhões de trabalhadores, para enfraquecer sindicatos e vencer a inflação. Margaret Thatcher era amada pela City de Londres por fazer isto (a City voltou-se contra ela posteriormente e engendrou o seu afastamento do cargo de primeira-ministra quando o seu isolacionismo arriscou permitir que Frankfurt se tornasse o principal centro financeiro da Europa ao invés de Londres). Não é de admirar que Truss não pudesse arrastar a City consigo apesar de propor grandes cortes de impostos para os ricos.

Ironicamente, cortes fiscais para os ricos financiados por um défice orçamental trazem maiores ganhos para os capitalistas, tudo o mais permanecendo constante, do que os mesmos cortes fiscais financiados através de maiores impostos sobre os trabalhadores ou através de reduções alhures em despesas governamentais. Isto acontece porque numa economia capitalista, assumindo por simplicidade nenhuma mistura com outros modos de produção e que os trabalhadores consomem todos os seus ganhos salariais, o total de lucros após impostos iguala a soma do investimento, do consumo dos capitalistas, do excedente de transações correntes na balança de pagamentos e o défice orçamental. Com transferências para os capitalistas valendo, digamos $100, se o consumo dos capitalistas aumentar em $50, aumentarão os lucros após impostos em $50, se financiadas por uma redução idêntica na despesa governamental alhures, isto é, se não houver aumento no défice orçamental, uma vez que o investimento não tem razões para mudar imediatamente e assumindo que não há mudança na balança externa corrente. Mas se financiado por um défice orçamental, os lucros após impostos aumentarão em $150. O facto de que o capital financeiro ainda objete às propostas de Liz Truss de corte fiscal para os ricos mostra a medida da sua aversão às atuais altas taxas de inflação.

O que temos discutido até agora refere-se a duas estratégias alternativas capitalistas, uma seguida por Liz Truss de efetuar transferências para capitalistas pela ampliação do défice orçamental e outra, que os seus críticos teriam preferido, de efetuar transferências para capitalistas sem ampliar o défice orçamental (nomeadamente, evitando as chamadas transferências “não financiadas”. Ambas são estratégias de direita a favor do big-business, as quais em diferentes graus são contra a classe trabalhadora e portanto anti-democráticas. Uma estratégia genuinamente democrática, de reviver a economia através de maior despesa governamental financiada pela tributação mais forte da riqueza ou dos lucros capitalistas – e do controle da inflação não pela criação de desemprego mas pela imposição de controles de preços diretos (enquanto pressionando por uma resolução pacífica do conflito da Ucrânia) é a necessidade real deste momento.


resistir.info

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