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domingo, 26 de abril de 2015

O que Putin quer?


The Saker
Introdução do Saker: A análise que segue é, de longe, a melhor que li desde o início do conflito na Ucrânia. 
Tenho postado regularmente nesse blog escritos de Ishchenko, porque o considero um dos melhores analistas russos. Mas desta vez Ishchenko realmente produziu uma obra prima, uma análise ampla da posição geoestratégica da Rússia, análise muito clara e, me parece, absolutamente acurada, de toda a “estratégia de Putin” para a Ucrânia. 
Tenho dito sempre que esse conflito não é sobre a Ucrânia, mas sobre o futuro do planeta e que não há solução “novorrussa” nem, sequer, solução “ucraniana”, mas o único resultado possível é uma vitória estratégica, ou da Rússia ou dos EUA, que afetará todo o planeta. Ishchenko oferece aí um panorama soberbo dos riscos e opções para os dois lados e oferece uma “chave” muito ampla para o comportamento aparentemente incompreensível da Rússia, nesse conflito. 
Por fim, Ishchenko compreende também perfeitamente a dinâmica complexa e sutil dentro da sociedade russa. Quando escreve que “o poder russo é poder por autoridade-conhecimento-reconhecimento, não autoritário”  [orig.   authoritative[1] rather than authoritarian] acerta na mosca, e explica mais, em sete palavras [ing.] do que nos bilhões de palavras inúteis escritas pelos ditos “experts” tentando descrever a realidade russa.
Todos temos enorme dívida de gratidão com Denis, Gideon e Robin, pela tradução, do russo ao inglês, desse texto seminal e muito difícil de traduzir. Só podemos ler esse artigo em inglês, graças às incontáveis horas de trabalho desses voluntários, decididos a produzir a tradução de alta qualidade que a análise merece.
Recomendo que todos leiam atentamente o que aí vai. Releiam. O artigo muito merece leitura e releitura. 
The Saker 
 
Vladimir Putin em 16/4/2015
A seguir o artigo: “O que Putin quer?”
Já é gratificante que os “patriotas” não tenham instantaneamente culpado Putin por não ter varrido do Donbass as tropas de Kiev, em janeiro e fevereiro, ou pelas consultas de Moscou com Merkel e Hollande.

Mesmo assim, estão ainda impacientes por uma vitória. Os mais radicais estão tão convencidos como antes, de que Putin “submeterá a Novorrússia”. E os moderados temem que aconteça tão logo seja assinada a próxima trégua (se houver), por causa da necessidade de reagrupar e reabastecer o exército da Novorrússia (o que de fato já poderia ter sido feito sem desengajamento das operações militares), para pôr-se em dia com as novas circunstâncias do front internacional e preparar-se para novas batalhas diplomáticas.

De fato, apesar de toda a atenção que diletantes políticos e/ou militares (os Talleyrands e os Bonapartes da Internet) estão dando à situação no Donbass e na Ucrânia em geral, trata-se só de um ponto num front global: o resultado da guerra está sendo decidido não no aeroporto de Donetsk ou nas colinas em torno de Debaltsevo, mas nos gabinetes da Praça Staraya [2] e da Praça Smolenskaya [3] e em gabinetes em Paris, Bruxelas e Berlim. Porque a ação militar é apenas um de muitos componentes da briga política.

É o componente mais áspero e derradeiro, que traz grande risco, mas a questão não começou com a guerra e não terminará com guerra. A guerra é apenas um passo intermediário que mostra a impossibilidade de acordo. O objetivo da guerra é criar novas condições que tornem possível o acordo, ou mostrar que já não há necessidade de acordo algum, com o desaparecimento de um dos lados do conflito. Quando chega a hora dos acordos, quando a batalha já acabou, os soldados voltaram aos quartéis e os generais já começaram a escrever memórias e preparar-se para a guerra seguinte, aí, afinal, é que o resultado real do confronto é determinado por políticos e diplomatas, à mesa de negociações.
Raramente a população em geral ou os militares compreendem decisões políticas.

 Por exemplo, durante a guerra austro-prussiana de 1866, o chanceler da Prússia Otto Von Bismarck (depois chanceler do Império Alemão) não deu ouvidos às repetidas ordens do rei Wilhelm I (futuro Imperador Alemão) e aos pedidos dos generais prussianos para que tomasse Viena, no que fez muito bem. Assim, conseguiu acelerar a paz em termos que interessavam à Prússia e também garantiu que a Austro-Hungria se tornasse para sempre (OK, até o desmembramento em 1918) parceira júnior da Prússia e, mais tarde, do Império Alemão.

Para compreender como, quando e sob que condições pode chegar ao fim qualquer atividade militar, temos de saber o que desejam os políticos e como eles veem as condições do acordo pós-guerra. Só assim se compreenderá claramente por que a ação militar converteu-se em guerra civil de baixa intensidade com tréguas ocasionais, e não só na Ucrânia, mas também na Síria.

Obviamente, não nos interessa o que pensem os políticos de Kiev, porque não decidem coisa alguma. O fato de que a Ucrânia é governada por estrangeiros já não é segredo. Não importa que os membros do Gabinete sejam estonianos ou georgianos; mesmo assim, são sempre norte-americanos. E também seria grave erro levar em conta o que pense sobre como qualquer dos líderes da República Popular de Donetsk (RPD) e da República Popular de Lugansk (RPL) veem o futuro. Essas repúblicas só existem com o apoio russo e, enquanto a Rússia as apoiar, há interesses russos a serem protegidos, inclusive de decisões e iniciativas independentes. Há coisas demais em jogo, para que seja possível permitir que [Alexander] Zakharchenko ou [Igor] Plotnitzky ou qualquer outro, em qualquer caso, tome decisões independentes.
 
Alexander Zakharchenko em 6/9/2014
Tampouco nos interessa a posição da União Europeia. Até o verão do ano passado, muita coisa dependia da União Europeia, quando a guerra ainda poderia ter sido evitada ou detida no início. Qualquer posição antiguerra firme, fundamentada, que a União Europeia tivesse tomado teria bloqueado as iniciativas dos EUA para começar a guerra e teria convertido a União Europeia em ator geopolítico independente relevante. A União Europeia perdeu essa oportunidade e, em vez de mostrar-se ator independente, agiu como vassalo confiável dos EUA.
Resultado disso, a União Europeia vê-se hoje à beira de preocupante levante por lá mesmo. Nos anos vindouros, a União Europeia tem toda a chance de ter destino igual ao da Ucrânia, só que com rugidos mais ferozes, mais sangue derramado e menos chances de que as coisas venham a acalmar-se em futuro próximo – em outras palavras, com menos chances de que apareça alguém e ponha as coisas em ordem.

De fato, hoje a União Europeia pode escolher se permanece como ferramenta dos EUA ou se se aproxima mais da Rússia. Dependendo dessa escolha, a Europa pode safar-se só com escoriações leves, como o desligamento de partes periféricas e possível fragmentação de alguns países, ou pode sofrer colapso total. A julgar pela relutância das elites europeias ante a decisão de abertamente romper com os EUA, o colapso é quase inevitável.
O que nos deve interessar são as opiniões dos dois principais players que determinam a configuração do front geopolítico e, de fato, estão disputando a vitória na guerra de última geração – a IIIª Guerra Mundial redecêntrica. Esses players são EUA e Rússia.

A posição dos EUA é visível e transparente. Na segunda metade dos anos 1990s, Washington deixou passar a única oportunidade que havia para reformar sem obstáculos a economia da Guerra Fria e, assim, evitar a crise que já se anunciava num sistema cujo desenvolvimento é limitado pela natureza limitada, exaurível, do planeta Terra e de seus recursos, inclusive os recursos humanos, o que conflita com a necessidade infinita de imprimir dólares.

Perdida aquela oportunidade, o saque contra o resto do mundo passou a ser o único meio pelo qual os EUA conseguiriam prolongar a agonia do sistema. Primeiro, saíram à caça dos países do Terceiro Mundo. Depois, atacaram concorrentes potenciais. Depois, aliados e até amigos íntimos. E esse saque só poderá continuar se e somente se os EUA permanecerem o único e incontestado hegemon planetário.

Assim, quando a Rússia declarou o próprio direito de tomar decisões políticas independentes – decisões que tinham a ver com a região, não com o planeta – tornou-se inevitável o confronto contra os EUA. Não há como esse confronto chegar ao fim num pacto de paz de mútuo compromisso.

Para os EUA, pacto de compromisso com a Rússia significaria renúncia voluntária à hegemonia, o que levaria a rápida catástrofe sistêmica – crise que não seria só política e econômica, mas paralisaria as instituições do Estado, com o quê o governo ficaria impedido de funcionar. Em outras palavras, qualquer pacto de compromisso com a Rússia implica a inevitável desintegração dos EUA.

Mas se os EUA vencem, então será a Rússia a conhecer sua catástrofe sistêmica. Consequência de qualquer tipo de “rebelião”, as classes dominantes russas serão punidas com confisco e liquidação de propriedades, e com cadeia, claro. O Estado seria dividido, territórios substanciais seriam anexados, e todas as forças militares russas seriam destruídas.
Portanto, a guerra atual prosseguirá até que só reste um dos dois contendores. Qualquer acordo será sempre trégua temporária – pausa necessária para reagrupar, mobilizar novos recursos e fazer (i.e., pôr no fogo) aliados adicionais.

Para completar esse quadro da situação, só nos falta a posição da Rússia. É essencial compreender o que a liderança russa deseja obter, especialmente o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. Estamos falando do papel chave que Putin desempenha na organização da estrutura russa de poder. O sistema russo de poder é sistema de poder por autoridade – conhecimento – reconhecimento, não é, como dizem muitos, sistema  autoritário   [orig.  authoritative, rather than authoritarian]. Significa que não se baseia em alguma consolidação legislativa da autocracia, mas na autoridade-conhecimento de quem criou o sistema e, como operador dele, o faz efetivamente funcionar.

Durante os 15 anos de Putin no governo da Rússia, apesar da difícil situação externa e interna, ele tentou maximizar o papel do governo, da assembleia legislativa e, até, das autoridades locais. São passos completamente lógicos, tomados para dar completude, estabilidade e continuidade ao sistema. Dado que nenhum político governa para sempre, a continuidade política, independente de quem chegue ao poder, é chave para que o sistema permaneça estável.

Infelizmente, ainda não se alcançou na Rússia o total controle autônomo, a saber, a habilidade para funcionar sem que o presidente tenha de estar supervisionando. Putin continua a ser o componente chave do sistema, porque o povo deposita sua confiança nele, pessoalmente. O povo russo confia muito menos no sistema, representado pelas autoridades públicas e agências individuais.

Por isso, as opiniões e planos políticos de Putin tornaram-se o fator decisivo em áreas como, dentre outras, a política externa da Rússia. Se há exagero na frase “sem Putin, não há Rússia”, a frase “o que Putin deseja, a Rússia também deseja” reflete muito acuradamente a situação, na minha avaliação.

Primeiro, observemos que o homem que durante 15 anos cuidadosamente guiou a Rússia para seu renascimento fez o que fez sob condições de hegemonia dos EUA na política mundial, sob muitas oportunidades significativas para que Washington influenciasse a política interna russa. Com certeza Putin teve de compreender a natureza da luta e do adversário. Sem isso, jamais teria permanecido por tanto tempo no posto.

O nível de confrontação que a Rússia permitiu-se entrar contra os EUA cresceu muito lentamente e, até certo ponto, quase sem que ninguém percebesse o que acontecia. Por exemplo, a Rússia não reagiu (nenhuma reação) contra a primeira tentativa de “revolução colorida” na Ucrânia em 2000-2002 (o caso Gongadze, [4] o Escândalo do Cassette [5] e o movimento de protesto “Ucrânia sem Kuchma” [6]).

A Rússia tomou posição de oposição, mas não agiu nos golpes que aconteceram de novembro 2003 até janeiro 2004 na Geórgia e de novembro 2004 até janeiro de 2005 na Ucrânia. Em 2008, na Ossétia e Abecásia, a Rússia usou suas tropas contra a Geórgia, aliada dos EUA. Em 2012, na Síria, a frota russa mostrou prontidão para confrontar os EUA e seus aliados na OTAN.
 
Mapa étnico da região inter mari (Cáspio e Negro)
(clique na imagem para aumentar)
Em 2013, a Rússia começou a tomar medidas econômicas contra o governo de [Victor] Yanukovich, o que contribuiu para que Yanukovich se desse conta do perigo que seria firmar acordo de associação [com a União Europeia].

Moscou não pôde salvar a Ucrânia do golpe, por causa da incompetência, da covardia, da estupidez dos líderes ucranianos – não apenas Yanukovich, mas todos eles, sem exceção. Depois do golpe armado em Kiev em fevereiro de 2014, a Rússia entrou em confronto aberto contra Washington. Antes disso, os conflitos eram alternados com melhorias nas relações, mas, no início de 2014 as relações entre Rússia e os EUA deterioraram rapidamente e quase instantaneamente chegaram a um ponto em que, na era pré-nuclear, a guerra já estaria automaticamente declarada.

Significa que em cada um e em todos os momentos, Putin envolveu-se sempre precisamente no nível de confronto com os EUA que a Rússia conseguia manobrar. Se a Rússia, agora, não está impondo limites no nível de confronto é porque Putin acredita que, na guerra de sanções, na guerra de nervos, na guerra de informação, na guerra civil na Ucrânia e na guerra econômica, a Rússia está em posição da qual pode sair vencedora.
Aí está a primeira importante conclusão sobre o que Putin quer e o que espera. Putin espera vencer. E se se sabe que Putin prefere sempre abordagens meticulosas e trabalha para antecipar qualquer surpresa, pode-se ter certeza de que, quando foi tomada a decisão de não retroceder sob pressão dos EUA, e reagir, a liderança russa tinha duplas, se não triplas, garantias de vitória.

Gostaria de destacar que a decisão de entrar em conflito com Washington não foi tomada em 2014, nem em 2013. A guerra de 8/8/2008 (guerra entre a Rússia e a Geórgia) foi desafio que os EUA não poderiam deixar passar sem retaliação. Depois disso, a cada novo estágio do confronto, as apostas só subiram. De 2008 a 2010, a capacidade dos EUA – não apenas militar ou econômica, mas a capacidade total – declinou; a da Rússia aumentou significativamente.

Assim se vê que o objetivo principal foi subir lentamente as apostas, não de modo explosivo. Em outras palavras, confronto aberto, quando caem todas as máscaras e pretextos, e todos sabem que há guerra, será adiado pelo maior tempo possível. Melhor se tivesse sido descartado já desde antes, completamente.

A cada ano, os EUA foram enfraquecendo, e a Rússia foi-se fortalecendo. Foi processo natural e impossível de deter, e se pode projetar com alto grau de certeza que, à altura dos anos 2020-2025 – e sem qualquer confronto – estará terminado o tempo da hegemonia dos EUA. Os EUA, hoje, muito melhor fariam, se pensassem mais, não sobre como conseguir mandar no mundo, e sim sobre como deter seu rápido declínio interno.

Aí se vê claramente o segundo desejo de Putin: manter a paz ou uma aparência de paz, pelo maior tempo possível. A paz é vantajosa para a Rússia, porque, em condições de paz, sem despesas gigantescas, a Rússia obtém o mesmo resultado político, mas em situação geopolítica muito melhor. Por isso a Rússia frequentemente estende o ramo de oliveira. Assim como a Junta-de-Kiev entra em colapso em condições de paz no Donbass, o complexo militar-industrial e o sistema financeiro criado pelos EUA, havendo paz, ficam condenados a se autodestruir. As atitudes do governo russo confirmam a lição de Sun Tzu:
A maior vitória é a batalha que não houve.
É claro que Washington não é governada por idiotas, não importa o que digam os programas de televisão e blogs. Os EUA compreendem perfeitamente a situação em que estão. Compreendem, sobretudo, que a Rússia não tem planos de destruir os EUA e está realmente preparada para cooperar de igual para igual. Mas, por causa da situação política e socioeconômica nos EUA, essa cooperação não é aceitável para os norte-americanos.
Haverá colapso econômico e explosão social, muito provavelmente, antes que Washington (mesmo com ajuda e apoio de Moscou e Pequim) tenha tempo para introduzir as reformas de que precisa, especialmente se se considera que a UE também terá de passar por reformas ao mesmo tempo. Para piorar, a elite política que emergiu nos EUA nos últimos 25 anos acostumou-se ao status de donos do mundo. Eles sinceramente não compreendem como alguém pode desafiá-los.

Para a elite governante nos EUA (nem tanto a classe empresarial, mas a burocracia do governo), deixar de ser país que decide o destino de povos inferiores, e tornar-se país que negocia com eles em pés de igualdade é intolerável. Corresponde, provavelmente, a oferecer a Gladstone ou a Disraeli o posto de primeiro-ministro do Reino Zulu, recebendo instruções do rei Cetshwayo kaMpande. Assim, diferente da Rússia, que precisa de paz para desenvolver-se, para os EUA, vitalmente importante, só a guerra.

Em princípio, qualquer guerra é disputa por recursos. Tipicamente, o vencedor é quem tem mais recursos e pode pois mobilizar mais soldados e fabricar mais tanques, navios e aviões. Apesar disso, às vezes os menos favorecidos do ponto de vista estratégico, podem virar a situação, com alguma vitória tática no campo de batalha. Há muitos exemplos, das guerras de Alexandre Magno e Frederico O Grande, à campanha de Hitler de 1939-1940.

Potências nucleares não se podem confrontar diretamente. Mas a base de recursos dessas potências tem importância decisiva. Por isso exatamente, Rússia e EUA estiveram em disputa alucinada por aliados ao longo do ano passado. Essa disputa foi vencida pela Rússia. Os EUA só podem contar, como aliados, com UE, Canadá, Austrália e Japão (e nem sempre incondicionalmente). A Rússia obteve o apoio dos países BRICS – o que lhe dá um firme ponto de apoio na América Latina e permite começar a deslocar os EUA de seus postos na Ásia e no Norte da África.

É claro, embora não seja visível a olho nu. Mas se se consideram os resultados das votações na ONU, assumindo que, se não há apoio aos EUA há discordância e, portanto, o apoio vai para a Rússia, o que se vê é que os países alinhados com a Rússia, somados, controlam cerca de 60% do PIB mundial, têm mais de 2/3 da população e cobrem mais de ¾ da superfície do planeta. A Rússia, portanto, conseguiu mobilizar mais recursos a favor dela.
Aí, os EUA têm duas opções táticas. A primeira parecia ter grande potencial e os EUA a usaram nos primeiros dias da crise ucraniana.

Foi tentativa de obrigar a Rússia a escolher entre uma situação ruim e outra ainda pior. A Rússia seria obrigada a aceitar um estado nazista junto às fronteiras e, assim, sofreria perda dramática de autoridade no plano internacional e no plano do apoio de seus aliados; assim, passado algum (pouco) tempo, já estaria vulnerável à ação interna e externa de forças pró-EUA, sem chance de derrotá-las.
 
O BLEFE
Ou, então, a Rússia poderia mandar soldados para a Ucrânia, varrer de lá a Junta antes que pudesse organizar-se, e restaurar o legítimo governo de Yanukovich. Mas esse segundo movimento provocaria acusações de agressão contra estado independente e repressão contra a revolução do povo. A situação assim criada resultaria em altos níveis de desaprovação pelos ucranianos, o que tornaria indispensável consumir repetidas vezes muitos recursos militares, políticos, econômicos e diplomáticos para manter um regime-fantoche [dos russos] em Kiev, porque nenhum outro governo seria possível sob tais condições.
A Rússia evitou esse dilema-arapuca. Não houve invasão direta. O Donbass é quem combate contra Kiev. E são os norte-americanos quem tem de aplicar recursos escassos para defender aquele regime-fantoche em Kiev. A Rússia pode ficar à margem, dedicada a fazer propostas de paz.
Por isso, agora, os EUA estão trabalhando na segunda opção – velha como as colinas no horizonte. O que não se conseguirá mesmo conservar e acabará tomado pelo inimigo, tem de estar o mais destruído possível, para que a vitória do inimigo saia-lhe mais cara que qualquer derrota, e o inimigo tenha de consumir todos os seus recursos para reconstruir o território destruído. Portanto, os EUA já não fornecem coisa alguma à Ucrânia, além de retórica política; agora só encorajam Kiev a expandir a guerra civil pelo país inteiro.

A terra ucraniana tem de arder, não só em Donetsk e Lugansk, mas também em Kiev e Lvov. A tarefa é simples: destruir a infraestrutura social o mais completamente possível, e deixar a população no limite mínimo da sobrevivência. Com isso a população ucraniana será convertida em milhões de pessoas famélicas, desesperadas e pesadamente armadas, gente em situação tal que se matarão uns os outros por comida. O único meio para deter esse banho de sangue será intervenção internacional massiva na Ucrânia (só as milícias das Repúblicas Populares e de defesa nacional da Ucrânia não serão suficientes) e injeções massivas de fundos para alimentar a população e reconstruir a economia, até que a Ucrânia consiga recomeçar a se autoalimentar.

Evidentemente, esses custos recairão sobre a Rússia. Putin avalia corretamente que não apenas o orçamento, mas todos os recursos públicos em geral, incluindo os recursos militares da Rússia, serão superexigidos e provavelmente insuficientes. Portanto, o objetivo imediato é não permitir que a Ucrânia exploda, antes que as milícias possam repor a situação sob controle. É crucial minimizar as baixas e a destruição de patrimônio, e salvar o máximo que seja possível, dos recursos econômicos e da infraestrutura das grandes cidades, de modo que a população sobreviva. Então, os próprios ucranianos darão conta dos bandidos nazistas.

Nesse ponto, Putin encontrará um aliado: a União Europeia. Porque os EUA sempre tentaram usar a maior quantidade possível de recursos europeus na luta dos EUA contra a Rússia, a União Europeia que já está enfraquecida hoje, até lá terá chegado à total exaustão; e terá, afinal, de enfrentar seus problemas, que há muito tempo sofrem processo acelerado de infecção grave.
 
Rotas das máfias de drogas através da Ucrânia
A Europa tem hoje, na fronteira oriental, uma Ucrânia totalmente destruída. Daí fugirão milhões de pessoas armadas e furiosas, não só para a Rússia, mas também para a União Europeia, levando com elas passatempos alucinógenos como tráfico de drogas, mercado negro de armas e terrorismo. A União Europeia não sobreviverá. Mas a Rússia estará razoavelmente bem protegida: entre a Rússia e a União Europeia em colapso lá estarão, como amortecedor de choques, as repúblicas populares da Novorrússia.

A Europa não pode desafiar os EUA, mas padece de medo mortal de uma Ucrânia destruída. Por isso, pela primeira vez no conflito, Hollande e Merkel não apenas tentam sabotar as exigências dos EUA (impuseram sanções, mas limitadíssimas), mas, também começaram a empreender ações bastante independentes, com o objetivo de conseguir algum pacto – talvez não a paz, mas, pelo menos, um cessar fogo, uma trégua, na Ucrânia.

Se a Ucrânia pegar fogo, queimará muito depressa. E se a União Europeia se tiver convertido em parceiro pouco confiável, pronto, se não para passar-se para o campo russo, pelo menos para assumir posições independentes, nesse caso, Washington, fiel à sua imutável estratégia, será obrigada a pôr fogo na Europa.

Claro que um quadro de várias guerras civis e interestatais num continente superpopuloso, atopetado de armas de todos os tipos, onde vivem mais de meio bilhão de seres humanos, é muitíssimo pior que uma guerra civil na Ucrânia. O Atlântico separa EUA e Europa. Até a Grã-Bretanha pode tentar manter-se lá, do outro lado do Canal. Mas Rússia e União Europeia partilham fronteira muito muito longa.

Absolutamente não interessa à Rússia ter conflagração que se estenda do Atlântico até os Cárpatos, quando o território dos Cárpatos até o [rio] Dnieper ainda fumega. Daí que o outro objetivo de Putin é, na medida do possível, prevenir os efeitos mais negativos de uma conflagração na Ucrânia e de uma conflagração na Europa. Dado que é impossível prevenir completamente esse desdobramento (quando os EUA querem incendiar alguma coisa eles incendeiam), é imprescindível ser capaz de extinguir rapidamente o fogo para salvar os itens mais valiosos.
Assim, para proteger interesses legítimos da Rússia, Putin avalia que a paz é item de importância vital, porque a paz é o fator que tornará possível alcançar o objetivo ao qual ele visa, com máximo efeito e com o menor custo possível. Mas, porque a paz já não é possível, e as tréguas estão-se tornando cada dia mais teóricas e mais frágeis, Putin realmente precisa que a guerra termine o mais depressa possível.

Mas é preciso não esquecer que, se há um ano teria sido possível firmar algum compromisso em termos os mais favoráveis para o ocidente (a Rússia também obteria o que queria, mas adiante, o que é pequena concessão), hoje já não é possível, e as condições só fazem piorar progressivamente. À primeira vista, a situação permanece a mesma; a paz ainda interessa à Rússia sob quase quaisquer condições. Só uma coisa mudou, mas é item de máxima importância: a opinião pública.

A sociedade russa anseia pela vitória e por retaliação. Como disse acima, “o poder russo é poder por autoridade-conhecimento-reconhecimento, não é poder autoritário”; na Rússia portanto a opinião pública realmente conta – diferente do que se vê em “democracias tradicionais”.
Putin só pode manter seu papel como eixo de distribuição do sistema se tiver o apoio da maioria da população. Se perder esse apoio, e porque não emergiu qualquer outro nome de sua estatura na elite política russa, todo o sistema perderá a estabilidade. Mas o poder só pode manter a própria autoridade se encarna com sucesso os desejos das massas. Assim a derrota do nazismo na Ucrânia, ainda que seja diplomática, tem de ser clara e indiscutível – só nessas condições é possível qualquer pacto de paz com a Rússia.
 
… novamente não tem nada..!
… outro jogo..?
Por tudo isso – independente do que Putin deseje e dos interesses da Rússia, e dado o equilíbrio geral de poder, bem como as prioridades e capacidades dos protagonistas –, uma guerra que deveria ter acabado no ano passado dentro das fronteiras da Ucrânia quase com certeza respingará para dentro da Europa.
Pode-se apenas supor ou tentar adivinhar quem será mais efetivo: os norte-americanos com suas bombas de gás, ou os russos com seu extintor de incêndios? Mas uma coisa é absolutamente clara: as iniciativas de paz dos líderes russos serão limitadas não só pela vontade deles, mas por suas capacidades reais. É perda de tempo tentar ir contra os desejos do povo ou o curso da história; mas quando coincidem, só resta, ao político sábio, compreender os desejos do povo e a direção para a qual caminha o processo histórico. Depois, é apoiar e defender essas duas forças, custe o que custar.

As circunstâncias expostas acima tornam extremamente improvável que o estado independente da Novorrússia venha a ver atendidos os seus desejos. Dada a escala da conflagração que se aproxima, nem chega a ser muito difícil determinar o destino da Ucrânia como tal, mas, ao mesmo tempo, não é destino que venha sem custos.

É perfeitamente lógico que o povo russo pergunte: se russos que nós salvamos dos nazistas vivem na Novorrússia, por que teriam de viver em estado separado? E se eles querem viver em estado só deles, por que a Rússia teria de reconstruir as fábricas e as cidades deles? Essas duas respostas só têm uma resposta razoável: a Novorrússia tem de ser integrada à Rússia (especialmente porque eles tem bons combatentes por lá, mas a “elite” governante é problemática).

Bem, se parte da Ucrânia pode unir-se à Rússia, por que toda a Ucrânia não poderia? Com alta probabilidade, essa questão já está na agenda, sobretudo porque a União Europeia não continuará a ser alternativa [para a Ucrânia] à União Econômica Eurasiana.

Consequentemente, a decisão de reunir-se à Rússia terá de ser tomada por uma Ucrânia federada, e não só por algumas entidades sem status claro. Parece-me prematuro redesenhar o mapa político. É provável que o conflito na Ucrânia esteja concluído à altura do fim de 2015. Mas se os EUA conseguirem estender a guerra para dentro da União Europeia (e os EUA tentarão), a solução final das questões territoriais exigirão alguns anos, talvez muitos.

Em qualquer situação, a paz beneficia a Rússia. Em condições de paz, com a base de recursos russos crescendo e com mais e mais novos aliados (ex-parceiros dos EUA) aproximando do lado russo – e com Washington sendo cada vez mais marginalizada – a reestruturação territorial tornar-se-á muito mais simples, e temporariamente menos significativa, sobretudo para os que estejam sendo reestruturados.

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Notas de rodapé

[1] O dicionário de língua portuguesa da ABL não registra “autoritativo” na acepção que seria útil aqui, e que se aproxima do uso da palavra “autoridade” em expressão como “o prof. X é autoridade em Idade Média”. Tentamos aí uma tradução expletiva, que, nos parece, põe em evidência os traços relevantes do termo: “autoridade por conhecimento [do que faz ou diz/fala] e por reconhecimento [pelos pares e/ou eleitores], sem perder completamente o efeito, que há em inglês, com authoritative / authoritarian[NTs]

[2] Rua, em Moscou, onde ficam os prédios e gabinetes da presidência da Rússia.

[3] Praça, em Moscou, onde está localizado o Ministério de Relações Exteriores da Rússia.

[4] Georgiy Gongadze, jornalista ucraniano e diretor de cinema nascido na Geórgia, que foi sequestrado e assassinado em 2000.

[5] O Escândalo do Cassette irrompeu em 2000 quando se divulgaram gravações em fita nas quais Leonid Kuchma estaria falando sobre a necessidade de silenciar Gongadze, por estar noticiando corrupção no alto nível do governo.

[6] Efeito do Escândalo do Cassete, houve um movimento de massa com protestos anti-Kuchma, na Ucrânia em 2000-2001.
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[*] Rostislav Shchenko é Presidente do Centro de Análise Sistemática e Previsões políticas da Ucrânia


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